13 / 20

João Gabriel: De Noite, Todos os Gatos 

Vista 8.jpg
Sérgio Fazenda Rodrigues

A pintura no olhar

De Noite, Todos os Gatos é uma exposição de João Gabriel, com curadoria de Marta Espiridião que está patente na galeria do Teatro da Politécnica, em Lisboa.

A exposição ocupa a sala em três partes contíguas e desenvolve-se num percurso sinusoidal que, na sombra, embrenha-nos gradualmente nas obras do artista. Trabalhando uma envolvência que nasce nas pinturas e se prolonga ao espaço, a exposição apresenta um conjunto de obras de pequena e grande dimensão, e cria um diálogo que ocorre, por vezes, de par em par. A imagem de um gato acompanha o trajecto e adopta uma presença fugidia que habita, fugazmente, algumas das imagens.

As pinturas reportam-se a situações que implicam silêncio e intimidade, e desenrola-se de forma introspectiva, mesmo quando nos apresentam mais do que uma personagem. Mostrando uma série de instantes que integram algo maior, as obras imanam a ideia de uma narrativa suspensa. Nelas, na penumbra da sala, alguém se esgueira da luz, alguém conversa sob a luz do entardecer, alguém toca na água, e alguém interage sob a luz de um estúdio de cinema.

No início do seu percurso, João Gabriel começou por eleger espaços vazios, de natureza esquemática, que partiam de registos fotográficos. Nesse período, num gradual processo de síntese, o artista desconstruía a imagem e a rigidez dos locais apontados. Em 2015, a sua pintura começa a incorporar movimento e figuração, onde a presença de corpos masculinos (que retira do cinema pornográfico gay, dos anos 70 e 80), ensaiam um conjunto de situações expectantes. Na verdade, o que sobressai dessas imagens é a natureza intersticial que antecede e precede uma dada acção. Trata-se, então, de captar momentos de espera e de passagem, que não afirmam um acontecimento, mas apontam, antes, aquilo que o envolve.

Podemos falar no carácter cinematográfico que emana da sua pintura, porém importa salientar que isso não se vincula aos filmes que lhe servem de base, mas sim à capacidade que as obras têm de indiciar um olhar e marcar um tempo próprio. Um tempo que equilibra a pintura e a torna autónoma desses mesmos filmes que, para o artista, são sempre, e apenas, um ponto de partida. Dir-se-ia, por isso, que as obras de João Gabriel prometem uma estória, mas não ilustram nem detêm uma narrativa.

O seu imaginário transporta-nos a um mundo simultaneamente real e fantasiado, onde as personagens habitam espaços e momentos indefinidos, difíceis de circunscrever. O erotismo que as obras emanam provém desse lado efabulado e encantatório que o artista explora, mas também, da natureza da própria pintura que assume o prazer da sua execução. Algo que advém da expressão do suporte e da languidez do material que, camada a camada, ensaia um conjunto de movimentos onde, mais do que afirmar, se esboça, sugestiona e alicia. De modo intuitivo e certeiro, a gestão da distância pertence à imagética do trabalho (onde as figuras estão mais além) mas, também, ao magnetismo da sua plasticidade (que convoca a proximidade do olhar). Essa dinâmica, que é pendular, mantém o mistério e a introspecção das obras, e transforma o observador em voyeur. Curiosamente, as figuras não encenam nada. Elas simplesmente estão no seu mundo, em silêncio, alheias à nossa atenção que, à distância, as perscruta.

A exposição respeita a natureza das pinturas que, alheias à nossa presença, existem de forma espontânea, mas, de modo sensível, encena uma outra forma de as dar a ver.

Numa feliz conjugação, a penumbra e o silêncio em que as figuras residem passa para o interior da sala onde, na sombra, se corrobora a sedução do olhar. Um olhar que, ao mesmo tempo, se desloca e se demora, indaga, e é surpreendido. Algo que se apoia na seleção e no posicionamento das obras (gerindo o modo como, ao longo do caminho, as imagens se ligam, ou se afastam, se anunciam, ou desaparecem) mas, também, no controle da luz, e no equilíbrio da escala encontrada.

Um dos momentos mais surpreendentes deste diálogo está no centro da exposição, quando a pintura de João Gabriel, repentinamente, inverte a posição e nos coloca perante o olhar da lente de uma câmara de filmar. Num jogo entre quem olha e é olhado, esta é uma situação inesperada que acontece depois de se contornar uma parede. Na verdade, só após encontrarmos uma pintura que vem do escuro, que nos chama e nos mostra o ambiente de um estúdio de gravações, percebemos a existência de uma outra que, nas nossas costas, nos fita (filma), sem disso inicialmente termos dado conta. A pintura assume uma maleabilidade inteligente e uma sensibilidade apurada na maneira como envolve, e surpreende o observador. A curadoria ensaia uma delicada e perspicaz articulação de conteúdos, reforçada pela cuidada relação com o espaço.

Neste cativante jogo de inteligência e emoção, onde o olhar persiste e o passo se perde, a nossa presença é como a dos gatos que destramente se esgueiram, mas que, habilmente, nos reflectem e acompanham.

João Gabriel

Galeria do Teatro da Politécnica

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da coleção de arte contemporânea do Arquipélago – C.A.C.

Vista 7
Vista 6
Vista 4
Vista 3
Vista 2
Vista 1

João Gabriel, De Noite, Todos os Gatos. Vistas gerais da exposição: Fotografias: Bruno Lopes. Cortesia do artista e galeria Lehmann + Silva

Voltar ao topo