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El ojo eléctrico

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Isabella Lenzi

Um olho que tudo vê

El ojo eléctrico, exposição inaugurada em outubro passado na instituição madrilena La Casa Encendida, apresenta uma seleção de obras da Coleção Treger/Saint Silvestre realizada pela italiana Antonia Gaeta e pela espanhola Pilar Soler. Desde 2015, a curadora italiana trabalha com a coleção, iniciada na década de 1980 por Richard Treger e António Saint Silvestre tendo como recorte a chamada arte bruta ou art brut — termo cunhado pelo artista francês Jean Dubuffet (1901-1985) em meados dos anos 1940 para designar uma criação artística livre, autodidata, distante dos valores canónicos e eruditos das belas-artes.

Em 1945, em viagem à Suiça, Dubuffet começa uma busca por obras realizadas por pessoas que considerava à margem da tradição oficial e do sistema da arte: crianças, isolados da sociedade, pessoas fechadas em prisões e hospícios, médiuns e místicos. A procura e aquisição do que ele na época define por art brut — assim como a constante redefinição deste conceito por parte do próprio Dubuffet— se dará ao longo de quase toda sua vida, resultando em uma coleção com mais de mil obras. Por muitos anos, as peças reunidas pelo artista são conservadas de maneira quase secreta, mostradas para amigos e interessados no gênero e exibidas publicamente em ocasiões pontuais. Nos anos 1970, são doadas à municipalidade de Lausanne, na Suíça, e pouco depois tornam-se visíveis ao público no Château de Beaulieu, onde permanecem até hoje.

A coleção formada pelo artista francês marcou a trajetória de Richard Treger e António Saint Silvestre, que durante duas décadas expuseram e comercializaram peças de art brut em uma galeria em Saint-Germain de Prés, Paris. Hoje eles possuem uma das maiores coleções privadas com este recorte no mundo, desde 2014 em depósito no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira. O conjunto reúne aproximadamente 1700 peças de mais de 300 autores, oriundos dos tradicionais "centros da arte bruta", da Europa Ocidental e da América do Norte, mas também da Europa do Leste, América do Sul e Central, Ásia e África —onde ambos colecionadores nasceram, em ex-colônias europeias. Nas palavras de Saint Silvestre, além de uni-los, a África, "o mais fabuloso dos continentes, que soube guardar a sua verdade apesar de terríveis guerras internas, de massacres que fizeram correr rios de sangue, de invasores ávidos e desenvoltos, dos quais nós fazíamos involuntariamente parte, [...] deu-nos o gosto pelo natural, pelo primitivo, pelo popular e incentivou-nos a tentar apreender o sentido oculto das coisas que nos rodeiam, a apreciar os mistérios que as mesmas escondem e a transmissão do espírito aos objectos manufacturados".

O esotérico, o oculto e o misterioso são também alguns dos conceitos centrais da exposição El ojo eléctrico. O recorte da mostra reúne quase oitenta obras de mais de quarenta autores diferentes, grande parte deles já falecidos. Nas paredes das três salas expositivas vejo sistemas, referências ao campo da ciência, da astronomia e da matemática, escritos e anotações difíceis de decodificar, sobrepostas, desordenadas e, algumas vezes, em línguas que desconheço. Um mesmo vocabulário de elementos, formas e símbolos parece repetir-se em trabalhos de diferentes autores. A ocupação quase total das superfícies bidimensionais — conhecida como "horror ao vazio"— é recorrente, assim como o uso de materiais pobres e disponíveis, como fita adesiva, carimbos, envelopes, papel, lápis e caneta esferográfica de quatro cores. Em muitas das peças não há diferenciação entre texto e desenho, que convivem em pé de igualdade.

Na mostra não há peças tridimensionais, somente algumas obras nas quais as duas faces do plano são utilizadas. A expografia é clássica, com poucas obras, grande parte delas alinhadas na altura do olhar. Em uma das paredes mais preenchidas, alguns trabalhos chamam mais atenção do que outros, não necessariamente por sua dimensão ou pelas cores empregadas, mas por seus detalhes e camadas de significação, pela complexidade de suas tramas e por sua profundidade subjetiva. Reparo em um pequeno desenho de Jaime Fernandes (1908-1987), figura eternizada no curta-metragem de Margarida Cordeiro (que não figura nos créditos como diretora) e António Reis. Jaime vinha do campo, de um ambiente muito humilde. Começou a desenhar e pintar aos 65 anos e seguiu até morrer, quatro anos depois. Paciente por mais de trinta anos do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, de Lisboa, utilizava caneta esferográfica e pequenos pedaços de papel que acabavam por determinar a posição e a forma do que ele representava, normalmente animais, alguns deles acompanhados por camponeses. Em muitas de suas obras o mais marcante são os olhos, por vezes, a única parte não preenchida do todo. Olho elétrico, choque elétrico, cadeira elétrica. Um olho que tudo vê, um panóptico, uma arquitetura da "correção", como o Miguel Bombarda e tantas outras instituições que aspiram o normativo.

As artistas mulheres também me chamam especial atenção e seus percursos e obras são analisados em detalhes em um belo texto de Pilar Bonet Julve, «Las estrelas bajan a la tierra», publicado no catálogo da mostra. Logo na entrada de uma das salas, os retratos de meio perfil da alemã emigrada aos Estados Unidos Agatha Wojciechowsky (1896-1986) funcionam como imãs. Suas figuras, feitas com pastel a óleo sobre papel colorido, tem um aspecto esfumaçado, sem grandes detalhes, definições ou contornos. São figuras andrógenas, com o olhar perdido, voltado ao vazio, e parecem esboçar um sorriso tímido, discreto. Força do hábito, não consigo não pensar nas pinturas da colombiana Beatriz González, em Uncle Booonmee de Apichatpong Weerasethakul ou nos polêmicos retratos de Gauguin feitos na Polinésia Francesa. No caso de Agatha, o exercício do desenho está relacionado com sua condição de médium espiritual e, segundo contava, o ato de desenhar era realizado pelas diferentes entidades que habitavam seu corpo, entre elas, o espírito da índia Mona que a conectava com as tradições ancestrais do território hoje ocupado pelos Estados Unidos.

 

 

Em seu texto, Pilar Bonet Julve explica que as peças dessa e de outras quatro artistas mulheres presentes na mostra são produzidas já em uma fase madura, em situações de isolamento clínico ou solidão doméstica. São peças que nascem do corporal, feitas na calada da noite, na mesa de jantar, quando todos dormem, como uma forma de liberação das dominações e limitações que sofrem. Essas mulheres dedicaram a vida a criação de mundos que o olho não vê, como uma possibilidade de "não esquecerem delas mesmas". Muitas de suas obras emergem de experiências extra-sensoriais. São imagens germinadas tendo como referência tradições ancestrais e práticas religiosas do Ocidente e do Oriente, como a teosofia e o espiritismo, amplamente difundidas entre as classes mais humildes, no final do século XIX, início do XX, como forma de equilíbrio entre mente e espírito. As pequenas tramas preto e branco de Magde Gil (1882-1961), que mais parecem tecidos ou tapeçarias. As flores volumétricas da tcheca Anna Zemánková (1908-1986), construídas com desenho e pedaços de papel a partir da tradição do bordado. Olhando esses trabalhos me pergunto o que separa essas mulheres e sua produção daquelas outras, poucas, que puderam mesmo que tardiamente penetrar no sistema da arte. Ao referir-se à art brut há quem prefira não utilizar o termo "artista" justificando que alguns autores —ou algumas autoras— não se consideravam, ou consideram, artistas ou não buscavam produzir arte. É muito inocente perguntar-se o que é a arte? Seria algo com uma intenção ou interesse estético ou conceitual? Ou seria algo classificado, nomeado e legitimado por indivíduos, instituições e por um sistema específicos? Será que uma pessoa excluída do sistema se sentiria confortável para considerar e nomear o que produz "arte"?

Poderia passar horas descrevendo muitas das obras presentes na exposição, cada uma delas um mundo, uma espécie de portal que leva a muitos outros mundos e a realidades paralelas, muitas vezes sofridas. A mostra pretende abordar a impossibilidade de decifrar na íntegra a mensagem inscrita nos trabalhos. Segundo as curadoras, isso se dá pelo fato de muitos dos artistas presentes atuarem como mediadores entre o mundo racional e outro mundo desconhecido ou transcendental. Em sua maioria, tais autores são apresentados como médiuns, visionárias e visionários, profetas, indivíduos advindos de contextos marginais, solitários ou que vivem exílios interiores, algumas vezes fechados em hospitais psiquiátricos e prisões. Me pergunto, quando somos capazes de decodificar um trabalho artístico em sua totalidade? Seria a biografia dos artistas uma possível porta de entrada em sua produção? Ou, em uma lógica contrária, seria sua biografia determinante para que sua produção fosse considerada arte ou art brut? —se é que existe qualquer sentido em separar os dois conceitos.

É fundamental lembrar que o interesse por este tipo de produção vem de muito antes de Dubuffet e daqueles que o seguiram, do início do século XIX, momento de desenvolvimento da psiquiatria como disciplina autônoma e dos seus primeiros laços com a produção artística e a arte moderna. Nestes anos, alguns poucos médicos, em diferentes locais da Europa, passam a utilizar para diagnóstico de doenças de saúde mental materiais produzidos por seus pacientes —então tidos como "loucos", afastados e invisíveis para os olhos de uma sociedade regida pela produtividade e pela "razão". Em Illustrations of Madness (1810), o farmacêutico londrino John Haslam reproduz uma compilação de desenhos de seus pacientes. Pouco antes, no cerne do ideário romântico, há uma defesa da liberação dos instintos e uma reinvindicação da proximidade entre os conceitos de "genialidade" e "loucura", muito antes disso já assinalada por Aristóteles.

Ao longo do XIX, a loucura é tida como fonte de inspiração artística e cresce o interesse por fenômenos paranormais e pelo recém criado espiritismo —o que leva a realização de escritos e desenhos «automáticos», tempos depois, uma prática central no movimento surrealista. Nas primeiras décadas do século XX, a produção de pacientes com doenças de saúde mental passa a ser apreciada também por seu valor estético, analisada como fonte capaz de esclarecer a gênese de processos criadores, além de possível caminho para cura. Enquanto alguns artistas do circuito oficial se dedicam a representação da «loucura», uns poucos médicos constituem «pequenos museus da loucura». Entre os estudos realizados no período, está a monografia do doutor Walter Morgenthaler, Um doente mental como artista (1921), sobre Adolf Wölfi (1864-1930), um dos artistas mais fascinantes da mostra El ojo eléctrico. Interno desde 1895 no hospital suíço de Waldau, Wölfi produz uma complexa cosmogonia que mescla escritos, desenhos, colagens e partituras musicais. No ano seguinte à monografia de Morgenthaler, o psiquiatra e historiador de arte Hans Prinzhorn (1886-1933) publica Expressões da loucura (1922), resultado de seus anos de trabalho e contributo a coleção da clínica universitária de Heidelberg, na Alemanha, que em 1920 incluía mais de 4 mil obras produzidas por pacientes diagnosticados com doenças de saúde mental. Como não lembrar que parte desta coleção foi posta ao lado de trabalhos de arte das vanguardas na exposição Arte Degenerada, organizada pelos nazistas em Munique em 1937? Ironia ou a razão que levou os alemães a realizarem tais aproximações, fato é que o interesse dos médicos por este tipo de obra foi acompanhado pelo dos artistas modernos.

No mesmo ano da publicação de Expressões da loucura, Max Ernst presenteia Paul Eluard com a obra de Prinzhorn, que por sua vez a difunde entre André Breton, Antonin Artaud e André Masson. Das mãos do último, o livro chega a Dubuffet. Em um momento de crise do racionalismo, estes e outros artistas e teóricos das vanguardas encontram em outras disciplinas —na etnologia, antropologia e psicologia— e em outros saberes —no ocultismo, na teosofia e antroposofia— material para ampliação e liberação do campo da arte dos antigos cânones. Sua atenção é dirigida à produção infantil, dos então chamados «alienados» e dos "primitivos" —noção forjada no bojo de um pensamento colonial, ligada a um fascínio pelo "mais além" espacial e temporal. Na base do que mais tarde dará origem ao conceito de art brut está o deslocamento e a apropriação por parte destes artistas dos postulados da recém criada psicanálise e de uma série de conhecimentos e criações provenientes do ambiente psiquiátrico. Além da exploração do inconsciente e de fenômenos que escapam ao controle da razão, como o sonho, o automatismo, a hipnose e a vidência, artistas do movimento surrealista se interessam pelo pensamento "primitivo" e primigênio e concebem a "loucura" como metáfora de liberdade.

Dubuffet é formado neste meio. Em seu texto A Arte Bruta Preferida às Artes Culturais (1949), publicado no catálogo da mostra homônima, que reuniu na galeria parisiense René Drouin duzentas obras de sessenta artistas autodidatas, o artista deixa clara sua concepção de art brut e as diferenças dessa produção em relação à arte oficial: "Entendemos pelo termo as obras executadas por pessoas alheias à cultura artística, para as quais o mimetismo contrariamente ao que ocorre com os intelectuais desempenha um papel menor, de modo que seus autores tiram tudo (temas, escolha de materiais, meios de transposição, ritmo, modos de escrita etc.) de suas próprias fontes e não dos decalques da arte clássica ou da arte da moda. Assistimos à operação pura, bruta, reinventada em todas as fases por seu autor, a partir exclusivamente de seus próprios impulsos".

A intenção de Dubuffet era enaltecer essa arte e chamar atenção para seu valor e pureza. No entanto, ao repassar essa e outras tantas afirmações suas não consigo evitar questionar até que ponto as "pessoas alheias" —os chamados brut— estavam de fato alheias a cultura artística e ao restante dos saberes que circulavam no período. Ou, talvez ainda mais importante, o quanto não possuíam outras formas de cultura e conhecimento não legitimadas ou invisíveis aos olhos do sistema dominante no qual o artista francês estava, apesar de tudo, inserido.

Nos anos 1960, Michel Foucault já argumentava que os conceitos de sanidade e loucura são construções sociais que não refletem padrões quantificáveis de comportamento humano e que antes são apenas indicativos do poder dos "saudáveis" sobre os «loucos». Ao longo do tempo o entendimento da «loucura» mudou. Com o movimento da antipsiquiatria, as reformas psiquiátricas e a Lei Basaglia do fim dos anos 1970, as portas de muitos dos antigos "manicômios" ou "hospícios" foram abertas e em diversos contextos as doenças de saúde mental passaram a ser tratadas pela comunidade, dentro da sociedade. Como consequência de outras tantas lutas, dos estudos feministas e decoloniais, hoje é também cada vez maior a pressão para uma revisão das Histórias, nomenclaturas, vocabulários, classificações e separações. Qual, então, o sentido e o interesse no uso do termo e da categoria de art brut atualmente? Legitimar essa produção afirmando que ela está presente no circuito das bienais e nos grandes museus não é, uma vez mais, jogar o jogo do sistema? Apresentar a obra desses artistas não basta enquanto os termos e as leituras atreladas a ambos não sejam aprofundadas, contextualizadas, problematizadas e alteradas.

La Casa Encendida

Coleção Treger Saint Silvestre

Isabella Lenzi. São Paulo, Brasil 1986. Curadora independente, editora e pesquisadora. Desde 2013 dirige o espaço cultural do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, no qual consolidou um local de experimentação para jovens artistas e difusão de artistas portugueses históricos. Em 2017, atuou como pesquisadora na Whitechapel Gallery, em Londres, e, mais recentemente, colaborou na primeira grande individual do artista brasileiro Alfredo Volpi realizada, em 2018, no Nouveau Musée National de Monaco. De 2013 a 2015 também integrou o núcleo de programação da Videobrasil, associação cultural focada na difusão e mapeamento da arte contemporânea do Sul geopolítico. Antes disso, trabalhou na Galeria Vermelho, em São Paulo, e, em 2011, foi assistente de curadoria na XI Bienal de Cuenca, no Equador.

 

O texto foi escrito em português do Brasil.

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Vistas da exposição El Ojo Eléctrico. La Casa Encendida, Madrid. © Fotos: Manuel Blanco/La Casa Encendida, 2019. Cortesia La Casa Encendida e Coleção Treger/Saint Silvestre.

 

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