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Mattia Denisse: Pau-podre

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José Marmeleira

 

Não será exagerado afirmar que a obra de Mattia Denisse (França, 1967) se tem vindo a desvelar, progressiva e lentamente, ao público. Ou seja, a ganhar uma existência que não aquela determinada apenas pelas condições do atelier. Depois dos desenhos de Duplo Vê, na Galeria Zé dos Bois, em 2017, das serigrafias e dos desenhos em Hápax, na Culturgest de Lisboa, chegou a vez da pintura, agora, em Pau-podre no Rialto6, com a curadoria de João Maria Gusmão.

Trata-se de uma exposição exuberante que dispensa, como de certo modo já havia acontecido nas precedentes, o formato mais tradicional do cubo branco. Em boa verdade, o trabalho de Mattia Denisse sempre se caracterizou por uma bem-humorada e, por vezes, circunspecta imoderação. Habitada por referências paraliterárias ou literárias e alimentada por leituras diversas (que não apenas as provenientes da história das belas-artes), raramente encontrou a melhor recepção no carácter purificado da galeria moderna. Dito de outro modo, as suas serigrafias e os seus desenhos, por exemplo, solicitavam uma certa cenografia ou ambiente que, precisamente, se estendia às paredes. Não se entrava apenas numa exposição de Mattia Denisse, entrava-se no mundo caleidoscópico de Mattia Denisse (como ainda se podia ler no texto de divulgação de Hápax, na Cultugest, com a curadoria de Bruno Marchand).

É o que volta a acontecer, mas agora no campo mais expansivo, colorido e sedutor da pintura. As duas salas do piso principal do Rialto6 têm as paredes pintadas em marrom pastel. E o espaço, onde se encontram quatro poltronas e duas meses, convida a um relaxamento do espectador, para o qual contribui, aparentemente, a possibilidade de tomar uma bebida alcoólica. Aquele vê-se como que isolado, quase que se diria protegido do mundo, livre para viajar pelos elevados domínios da arte pictórica.

Dentro das molduras, em telas de tamanhos consideráveis, as pinturas de Mattia Denisse, agrupadas em conjuntos no piso principal, convidam a uma contemplação distanciada, mas sem distrações. Nas superfícies, pintadas com acrílico, lápis de cor, óleo, vão assomando representações de coisas: algas, raízes, ramos, ossos, plantas, bolbos, pérolas, heras. Algumas destas coisas parecem ligada entre si, perfazendo outras. Obervam-se fundos, impressões de perspectivas, planos. Paisagens! Mas, um novo olhar rouba qualquer certeza. O que quer possa estar ali, fascinante e absurdo, comunica uma peculiar sensação de mal-estar. Um mal-estar delicado, mas ainda assim um mal-estar. Ou, antes, uma perturbação trazida pelas cores, pelas formas, pelo escorrer morto da tinta, pela textura seca das pinturas. Talvez, também, por causa dos seus nomes: Trou-mur-meurt, Meta-raízes e Pata-rocha, Só osso ou Proto-cipó.

 

 

A alusão a um tempo e a um espaço surgem pertinentes. No seu texto, o curador fala de “uma pintura pastoril mas depois de uma guerra”, “numa espécie de memória futura sem gente e história, só fósseis e fungos, metamorfoses lentas, decomposição e produção de tempo sedimentar”. Uma pintura não apenas depois da pintura, mas sobretudo após, claro está, a humanidade, acabados os motivos ou as questões que a haviam alimentado durante séculos.

Nas telas, vemos raízes que encimam uma pata que se transformou numa rocha. Um osso que segura ou empurra uma nuvem doente, um cipó que espreitamos do interior de uma gruta liquefeita. Se estas podem ser paisagens de um mundo do qual já desaparecemos, não vemos nelas qualquer melancolia ou luto, sentimentos tão caros a Freud depois da Primeira Guerra Mundial. Apenas um olhar lúcido e quieto, um humor impassível ainda que (muito) vivo. Tal é muito evidente na série composta por três pinturas nas quais Mattia Denisse permite-se olhar para trás, ainda que sem parar, na direcção da história da pintura. Ele vê (e pinta) fagulhas do fauvismo, do expressionismo, do neo-impressionismo, do surrealismo. O efeito não é jubilatório e muito menos nostálgico, ainda que se perceba a crença do artista numa poética do devaneio que a pintura ainda anima e abre. Com ou sem fim do mundo, estas obras espantam enquanto precisamente pinturas.

Quando chegamos ao outro conjunto de pinturas, regressa o estado de perturbação. Ao volante de uma viatura, vemos num retrovisor uma espécie de yellow brick road e noutro uma estrada cor de salmão. A referência ao exterior — das mais cristalinas na obra do artista — deixa-nos num estado de suspensão. O que se afasta (sem se afastar): um mero reflexo, outra imagem dentro da imagem, um não-paraíso, um lugar fantástico? De volta à chave da interpretação inicial — de que estas são paisagens de um mundo pós-apocalíptico, do fim dos tempos, sem pintura, sem homens, mulheres e outros humanos — também poderíamos acrescentar que são materializações fantasmáticas de um tempo por vir ou, porque não, de um mundo que já chegou e que as pinturas tornam mais visível, mais real. E, por isso, tão exuberantes na sua violenta, colorida, vibrante e fantástica aparição. Resta saber se diante delas ainda podemos ouvir, em paz, a sexta sinfonia de Ludwig van Beethoven.

 

Rialto6

 

Livro TOUT encyclopaedia

 

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— Entrevista por Catarina Rosendo

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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Mattia Denisse: Pau-podre. Vistas da exposição no espaço Rialto6, Lisboa, 2023. Fotos: Vasco Stocker de Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6.

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