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Pedro Barateiro: Poems for Tourists

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Sofia Nunes

 

 

Poems for Tourists, a mais recente exposição de Pedro Barateiro está em apresentação na Galeria Filomena Soares e resulta, em certa medida, numa proposta inesperadamente clássica. Clássica porque os trabalhos tendem, desta vez, a conservar maior grau de
independência uns em relação aos outros, embora permitam remissões entre si. Clássica também porque toda a exposição assenta num género artístico — a paisagem — estabelecida, como tal, no ocidente, há mais de quinhentos anos. Mas mais do que um género, Poems for Tourists deixa claro que a paisagem para Barateiro vale, sobretudo, como uma construção e lugar de conflitos, tão sensitivos, quanto políticos, e, nesse sentido, é também ela já muito pouco clássica.

Não temos arcádias, nem visões do sublime, nem apocalipses, nem vistas naturalistas. Antes uma meditação crítica sobre a transformação da paisagem à luz do aceleracionismo global, assente em processos artísticos sofisticados, alguns recursos de humor e um sem número de mediações que ligam o natural ao cultural e o orgânico ao artificial. Por essa razão, não espanta que a paisagem regresse constantemente como extensão do corpo e da agência humana e vice-versa. Longe de representar uma alteridade inviolável, una e total, ela é aqui um fragmento híbrido, difuso e tensional que desperta uma relação corporal (visual e física) igualmente tumultuosa. 

A exposição organiza-se em duas seções e em cada uma encontramos uma tipologia de paisagem diferente, assegurada por elementos mínimos. Os desenhos da primeira sala, doze no total, correspondem, maioritariamente, a vistas sobre a praia, trabalhadas a partir da linha do horizonte e do espaço cultural e imaginário que esta representa. Mais visível ou prestes a desaparecer, a linha repete-se e é ela que começa por recrutar o nosso olhar. Sentados em bancos vermelhos, concebidos para o efeito, contemplamos os desenhos, um a um, mas com o ponto de vista baralhado. Em vez de separar, a linha torna-se um marcador de reversibilidades, como um jogo de espelhos em loop. Não sabemos quando termina a areia, onde começa o mar ou se o céu tomba e as nuvens mergulham na água. Os espaços contaminam-se, à semelhança dos meios. O meio assumidamente líquido pode adquirir qualidades sólidas e a ambiência atmosférica gasosa, configurações líquidas.

São paisagens ambíguas, captadas algures entre o amanhecer ou o cair da noite e cujos elementos compositivos se aproximam da matéria onírica ou dos cartoons. Há um pôr do sol que se transforma num ecrã de cinema, um nascer do sol que desenha uma cabeça humana com trança, vista de costas, um organismo aquático formado por olhos humanos, pestanas postiças que voam como pássaros, uma cena de sexo plasmada no mar, outra cabeça vista de costas com extensões de cabelo, tanques de guerra a caminhar sobre o horizonte, gráficos de cotação de mercado que desenham uma cordilheira, bombas e ogivas a rebentar e um terceiro pôr do sol transparente, à semelhança de um fantasma, que nos dá os parabéns. O ambiente está quente, sempre quente. Pelo meio, três desenhos apresentam sinaléticas a indicar o caminho até uma “promissora” praia deserta de nudistas com bar garantido. Nestas paisagens artificiais, são as rápidas alterações do mundo que se implicam e ganham definição: o aquecimento da terra, a mutação dos corpos, a guerra na europa, a massificação do turismo ou a indistinção plena entre o lazer e o consumo. Já a conflitualidade latente é ela própria intrínseca ao medium. Se o traço duro e rápido do lápis introduz violência; o guache, combinado com a tinta-da-china, permite transparências, velaturas e transições tonais aquosas, suaves. Acresce o facto de o contraste de cores escolhido, o verde-água veronese e o amarelo nápoles alaranjado, ser igualmente feliz. Não apenas reforça a sensação de temperatura quente das paisagens, como ajuda a intensificar a qualidade sideral da atmosfera envolvente.

Na segunda sala, Barateiro opta por uma relação com a paisagem mais tátil e física, onde apresenta três instalações escultóricas iluminadas com luz baixa. A instalação principal, que dá título à exposição, remete-nos para um excerto de paisagem citadina. Esta é constituída por um manto de pedras da calçada lisboeta, espalhadas aleatoriamente no chão como se tivessem sido arrancadas do pavimento, e um banco de esferovite com uma toalha de praia dobrada em cima, a servir de almofada. O lugar está vazio*. Sabemos que os violentos protestos do Chile, em 2019, contra o modelo socioeconómico neoliberal, foram testemunhados pelo artista e estiveram na origem deste trabalho, mas a sua dimensão abstrata permite, de forma hábil e contundente, reenviar a instalação para inúmeras outras revoltas passadas ou novos motins por acontecer. Se as palavras de ordem e imagens do Maio de 68 ainda nos fitam lá atrás no horizonte, a tensão vivida nas cidades de hoje, altamente pressionadas pela especulação imobiliária, exclusão social ou racismos crescentes, parece reverberar neste conjunto de pedras. A violência ausente, fantasmática, intui-se
ora como opressão, ora como recurso de resistência, estendendo-se às duas esculturas
readymade, que aqui se juntam: Cowboy e Hammer, de 2022. Ambas simulam duas figuras fálicas solitárias, meio humanas, meio objetos, diante do espelho, reconhecendo as suas funções culturais de dominação e de arma, respetivamente. 

Os opostos vão assim de mãos dadas numa dialética, cuja estrutura poética procura suscitar compromisso com a paisagem e o mundo, ao invés de uma passagem turística sem afetação. Poems for Tourists é o nome desta dialética.

 

Pedro Barateiro

Galeria Filomena Soares

 

Sofia Nunes. Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado/MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém [2000 a 2007]. Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa [2009 a 2011]. Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 


 

*Na inauguração da exposição, Pedro Barateiro convidou Marcelo Tavares a fazer uma pequena performance musical de canto e viola, sentado no banco de esferovite. À semelhança das pedras da calçada, a palavra parecia literalmente “arrancada” de cenas do quotidiano e adquiria uma dimensão fortemente material pelo facto de ser dita num registo próximo da conversa.

 

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Pedro Barateiro: Poems for Tourists. Vistas da exposição na galeria Filomena Soares, Lisboa, 2023. Fotos: João Neves. Cortesia do artista e galeria Filomena Soares.  

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