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Entrevista a Mattia Denisse

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Catarina Rosendo

Mattia Denisse:

O Erro como «Lugar da Verdade»

— uma conversa com Catarina Rosendo

 

Nos desenhos de Mattia Denisse há animais, seres imaginários e pessoas, algumas de escafandro, outras nuas, árvores, grutas, construções que parecem encastradas nas rochas, fenómenos atmosféricos, máquinas estranhas e aparelhos de medição, máscaras ritualistas, esqueletos, sexo e experiências mais ou menos incompreensíveis. As histórias que lhes dão sentido enquanto conjuntos perdem-se no emaranhado de referências que os percorrem. Cada desenho torna-se um acontecimento em que os desvios intencionais à clareza enunciativa servem a construção de uma mitografia muito pessoal onde se cruzam e sobrepõem o natural e o laboratorial, os mitos de origem e as acções experimentais.

Desenhador compulsivo, Mattia Denisse conjuga pedaços de narrativas que vivem numa tensão entre a ciência e o esoterismo, entre o texto e a imagem, entre o saber erudito e a cultura popular, acumulando ideias sem se importar com a sua saturação pois, no final, o resultado é um universo visual especulativo que mostra o contra-pensado que existe, em potência, em todas as coisas. A Contemporânea falou com o artista na Culturgest, a propósito de Hápax, a sua mais recente exposição, que é também a mais extensa de todas as apresentadas até agora em Portugal, com curadoria de Bruno Marchand. 

 

 

 

Catarina Rosendo (CR): Esta conversa vem a propósito da exposição patente na Culturgest, a que deste o nome de Hápax. O que é que esta exposição representa no conjunto do teu trabalho e no teu percurso artístico? 

 

Mattia Denisse (MD): A exposição na Culturgest é a maior que já fiz numa instituição em Portugal, e com certeza a mais consistente. Mas não é a maior em absoluto: há dois anos fiz uma exposição no West den Haag, na Holanda, um espaço enorme e singular, a antiga embaixada americana projetada por Marcel Breuer, onde tinha ainda mais trabalhos. Também foi a primeira vez que trabalhei tanto tempo e com tanto pormenor com um curador, o Bruno Marchand, com quem já tinha trabalhado em projectos mais modestos. 

 

 

CR: Mostras sobretudo desenho e algumas monotipias. O que é que o desenho representa para ti, enquanto modo de expressão e enquanto linguagem artística?

 

MD: Quando comecei a expor não fazia trabalhos em desenho, mas grandes instalações in situ, obras efémeras. Desenhava constantemente, mas esses desenhos eram sobretudo desenhos preparatórios para as instalações. No entanto, sempre gostei do lugar do desenho na história da arte, que é primordial apesar de não ocupar o lugar principal. Está um pouco nas margens, que é um espaço onde me sinto à vontade. Os artistas utilizaram muitas vezes o desenho como um espaço de liberdade, mesmo quando não era a sua prática principal. É frágil e não é muito espectacular. Há uma espécie de modéstia intrínseca e uma economia de meios de que gosto. Transporta-se com facilidade, não precisas de muito espaço para o fazer... E, claro, é o meio mais parecido com a escrita. 

 

 

CR: Tudo isso permite que possas desenhar em qualquer lugar. 

 

MD: Sim, teoricamente. Mas na verdade não é isso que faço. Nunca desenhei nas minhas viagens. Transporto sempre o material para desenhar e não faço nada com ele. Mas é uma possibilidade, um potencial. É como teres um carro onde podes dormir e fugir [nunca se sabe], mesmo que nunca o vás usar para isso. 

 

 

CR: Como é tua rotina de atelier? Olhando para os teus desenhos, fica-se com a sensação de que passas muitas horas no atelier, dedicas muito tempo aos teus desenhos. 

 

MD: Passo muitas horas no atelier, todas as que puder. O atelier é o meu espaço: é um laboratório, um espaço secreto onde posso ficar sozinho, condição para mim indispensável ao pensamento. É também o melhor lugar para não fazer nada.

 

 

CR: Esta exposição chama-se Hápax, um termo proveniente da expressão grega “hápaks legómenon” que significa “o que foi dito uma vez”. Porque escolheste este nome? Tem alguma relação com as monotipias que mostras, feitas numa técnica de impressão que apenas permite uma tiragem? 

 

MD: Hápax aqui é paradoxal. Na exposição, o que é “dito só uma vez”, é-o várias vezes; ou muitas vezes uma vez. É um acto singular, idiossincrático, mas que se repete infinitamente. Repetir é uma maneira de fazer romper o sentido. Alguém o disse a propósito das Variações Goldberg de Bach. O desenho é a possibilidade de acumular actos únicos e irrepetíveis. É talvez daí que resultam as séries, ou os conjuntos. Na verdade, eu gosto mais da noção de conjunto. Para mim, a série tem implícita uma hierarquia e uma sequência, o primeiro, o segundo, etc., uma tendência para progredir. Um conjunto não tem ordem preestabelecida. É como um baralho de cartas que está continuamente a ser baralhado.

 

 

 

CR: O universo literário informa uma parte do teu imaginário conceptual e ideográfico. A tua condição de nativo francês escrevendo em português leva-te a explorar isso de forma intencional, criando jogos de linguagem para os títulos das obras e os textos que incluis nos desenhos e nos teus livros?

 

MD: O meu interesse pela linguagem vem de uma dificuldade. Eu sou desordre-ortográfico, disortográfico de dis [desvio] + ortho [correto] + graphos [escrita], uma espécie de dislexia que, no meu caso, incide apenas na escrita e em particular na ortografia. Durante muitos anos, isso frustrou a minha vontade de escrever. Quando era miúdo, escrevia naturalmente histórias e contos, só que eram ilegíveis para os outros. Isto sempre me perseguiu. Sou um extraterrestre da minha própria língua. Escrevo em francês de forma quase fonética e introduzo a desordem absoluta nas regras ortográficas e gramaticais. Tenho uma relação equivalente com a língua portuguesa, apesar de achar que tenho mais facilidade, o que é provavelmente uma ilusão... Tentei transformar esta dificuldade numa ferramenta, aproveitando os acidentes, os tropeços nas palavras, a maneira baralhada de escrever...

 

 

CR: Isso é uma das aplicações práticas da retrocausalidade, o fenômeno que referes no livro editado a propósito desta exposição e onde os efeitos precedem as causas? 

 

MD: Acho que é uma boa metáfora, sim. A retrocausalidade é uma teoria da física quântica. O efeito a preceder a causa desconstrói toda a nossa maneira de pensar o mundo; na verdade, é-nos impensável. Mas a arte permite imaginar isso, criar um lugar onde acontece. E na linguagem e na escrita também, sobretudo se tratarmos o erro como o lugar da verdade. 

 

 

CR: As capas para as edições Tripé também existem antes dos próprios livros, que nunca foram feitos. Como surgiu o projecto das edições Tripé?

 

MD: Isso é um pouco como a contrafactualidade, as ideias surgem e crescem, não se sabe bem como. Só posteriormente conseguimos fazer a história do seu aparecimento. Encontro uma solução conceptual para os meus trabalhos quase sempre depois de feitos. 

 

 

CR: A que te referes quando falas de uma “solução conceptual”?

 

MD: Às lógicas internas das coisas, que aparecem muitas vezes de uma maneira clara a posteriori. Isso não significa que elas não estejam lá no momento em que estou a desenhar, mas subjacente. 

 

 

CR: Os teus desenhos têm sempre uma explicação sobre aquilo que lhes deu origem: o 2666 de Roberto Bolaño, usar como suporte as páginas de uma antiga enciclopédia, o estudo de Vladimir Propp dos contos populares russos, etc. Mas estes referentes dão poucas ou nenhumas pistas para aquilo que está representado. Parecem mais pretextos que andam à roda dos desenhos. 

 

MD: Os desenhos são livres. Até podem prescindir de qualquer explicação. Mas existe, sim, uma acumulação de camadas de referências. Por exemplo, faço uns desenhos inspirados num texto ou num livro, mas a seguir leio outro e acho que os desenhos que fiz têm mais a ver com as ideias contidas naquele. Não abandono por isso a primeira ligação, mas acrescento a nova à precedente. Até mudo os títulos se necessário ou então acrescento ao título um comentário. Tiro o desenho do conjunto no qual estava para o introduzir noutro. O desenho [e o seu título] só se estabiliza definitivamente quando já não me pertence. Sabes a imagem clássica do louco com o funil em cima da cabeça? Agora imagina o contrário. O funil não está posto à maneira de um chapéu do qual saem todas as ideias apertadas e condicionadas pelo tubinho estreito; mas posto em equilíbrio sobre a cabeça. Com esta inversão, os pensamentos saem da parte estreita do funil na direcção mais larga para espalharem-se, como as palavras, num altifalante. Assim se abre uma multitude de leituras e interpretações possíveis. Os adeptos dos conceitos utilizam o funil no sentido convencional: canalizam, procuram a palavra certa e a leitura inequívoca. Eu imagino o meu trabalho ao contrário: tenho uma ideia bruta ou uma imagem simples à qual acrescento, por camadas e acumulação de sentidos, dados, cores, linhas, formas e, sobretudo, histórias. 

 

 

CR: É nessa espécie de indeterminação, se calhar até confusão, semântica e diegética, que eles existem, como forma de abrir o campo à imaginação?

 

MD: Acho que sim.  As obras de arte que funcionam comigo são aquelas com as quais tenho uma experiência estética que me deixa mais perguntas que respostas. Não me chateia não compreender, pelo contrário…

 

 

 

CR: Falemos do conjunto “Enciclopédia Psicopompo”. O que quer dizer Psicopompo? E porque é que os desenhos não são feitos sobre folhas em branco, mas sobre as páginas de uma enciclopédia, já bastantes preenchidas com textos e imagens?

 

MD: Psicopompo é a divindade que leva as almas para o país dos mortos... Gosto muito de enciclopédias. Antes de existir a Internet, eu passava muito tempo em bibliotecas a procurar ao acaso em dicionários e enciclopédias. São objectos um pouco patéticos, sobretudo tendo em conta a ambição descomunal, quase monstruosa, que lhes subjaz, do conhecimento total; e porque ficam obsoletos praticamente no momento da sua publicação, logo após a qual é preciso repetir novamente todo o esforço, como a performance infinita de Sísifo. Nos anos 90 comprei num alfarrabista o volume V da Enciclopedie Française, dedicada aos seres vivos, com a ideia de fazer qualquer coisa com ele. Guardei-o durante vinte anos, viajou comigo, resistiu a todas as minhas mudanças… Até que, no ano passado, comecei finalmente a desenhar sobre as suas páginas. 

 

 

CR: Fizeste os desenhos antes ou depois de separares as folhas da enciclopédia?

 

MD: Não tive de separar as folhas porque a enciclopédia funcionava em fascículos, as folhas já estavam praticamente soltas. Foi um acontecimento. Depois de usar a primeira folha, achei o resultado  surpreendente: o desenho parecia ter sido impresso. Fiz dez, vinte, trinta desenhos e logo surgiu a necessidade de tornar o trabalho também ele enciclopédico. Foi o próprio objecto que me empurrou nesta direcção. Encomendei outras enciclopédias, da mesma colecção, para continuar. Para remediar a obsolescência das enciclopédias, as editoras elaboraram um sistema de fascículos que tinha por ambição atualizar os conteúdos de tantos em tantos anos. O que eu fiz, tornou-se claro para mim agora, é uma nova actualização. Operei uma espécie de ressurreição, como um Psicopompo, mas invertido: a enciclopédia voltou do mundo dos quase mortos ao mundo dos quase vivos. 

Mattia Denisse, Hapáx_Culturgest 2022_Fotos de António Jorge Silva (10)
Mattia Denisse, Hapáx_Culturgest 2022_Fotos de António Jorge Silva (11)

 

 

CR: Às vezes brincas com os protocolos expositivos. Por exemplo, no caso do conjunto “Duplo Vê”, jogas com a forma de identificação dos desenhos e acabas por criar um novo conjunto de trabalhos. 

 

MD: Temos tendência a pensar mais no desenho artístico, mas há também o desenho esquemático, o desenho técnico... O desenho responde a várias necessidades e são todas interessantes. Os “Desenhos tautológicos” foram feitos para tentar resolver um problema muito prático. Na Casa das Histórias Paula Rego, em 2016, apresentei mais ou menos 500 desenhos expostos em cima de mesas e precisava de encontrar uma solução para os títulos de cada um deles. Por um lado, não queria sobrecarregar a mesa de informação e tornar confusa a leitura dos desenhos; por outro, os títulos na parede implicariam o olhador/leitor num vai-e-vem impraticável… Nesta procura de soluções tentei facilitar o reconhecimento através da execução de desenhos esquemáticos dos próprios desenhos, o que se revelou, como é óbvio, duplamente ineficaz. Fazer esses desenhos foi também uma tentativa de dar autonomia e de valorizar os títulos. Mas, para complicar, nesta vontade de facilitar, e porque muitas vezes não havia espaço suficiente para escrever os títulos inteiros, utilizei acrónimos. E em vez de se tornarem mais explicativos, os desenhos tornaram-se mais encriptados, densos, complexos e intrincados. É a síndrome do funil invertido. Finalmente, a solução foi uma “folha de mesa” transportável. Mas gostei muito do resultado dos desenhos, a Sofia Gonçalves e o Rui Paiva da editora Dois Dias também, e juntos fizemos o livro Duplo Vê: O Táutologo.

 

 

CR: Esse desenho esquemático torna-se um outro desenho, autónomo do primeiro?

 

MD: Sim, torna-se independente do desenho original. Tem uma vida autónoma como os fantasmas ou os espectros da vida real. 

 

 

CR: Observando os “Desenhos tautológicos”, de 2016, e os desenhos de “Húmus”, de 2021, salta à vista que são muito diferentes, os primeiros muito esquematizados e esparsos, praticamente feitos apenas a linha, e os segundos, muito elaborados, com bastante cor e sombras, volume, etc. Como articulas essas diferentes formas de desenhar? 

 

MD: A partir de um certo momento, utilizar as mesmas técnicas e fazer um único tipo de desenho torna-se aborrecido. Esgota-se o prazer e a surpresa, fatores indispensáveis. Uma outra experiência vem substituir-se à precedente, é um jogo de descoberta. Experimento muito. Isso é o trabalho de atelier. Há momentos em que muitas coisas vão para o lixo, e há momentos — acho que a ideia é esta — em que reconheço o que estou a fazer. “Ah!, não sabia que isto era possível”, e faço dois, três desenhos, e vou por aí fora, faço vinte, cinquenta, no caso da enciclopédia, duzentos. E se não perco o prazer, o interesse e o resultado não deixa de me surpreender, continuo. O pior que pode acontecer é imitar-me.

 

 

CR: Nos “Desenhos tautológicos” as figuras aparecem em ambientes interiores rodeadas de aparelhos e máquinas, ocupadas com actividades experimentais, talvez científicas; nos desenhos de “Húmus”, as pessoas estão quase sempre em ambientes naturais, muitas vezes nuas, e há sexo e escatologia e viscosidade, animais... Parece que inscreves as tuas cenas [e podemos invocar aqui o significado freudiano de “cena”, imagino], em dois tipos distintos de espaços: interiores laboratoriais e ambientes naturais. 

 

MD: O laboratório é por excelência uma recriação artificial do espaço natural. Como a natureza é instável, a ciência precisou de artificializá-la, isolando-a dos seus fluxos, para observá-la e compreendê-la à sua maneira. A gruta do conjunto de desenhos “Eva fuma", por exemplo, pode ser vista como um laboratório psicológico, uma tentativa de  perceber as relações amorosas e conflituais de Adão e Eva ainda no Jardim do Éden. Imagina um Freud primordial a olhar para uma fenda nas rochas da gruta, como um voyeur, e que divaga sobre os primitivos sintomas das primeiras semanas de uma humanidade balbuciante. Nos meus desenhos, os mitos e os temas como a morte, a sexualidade, a guerra, a violência e a natureza são metafísicos, são experiências de pensamentos. E como a metafísica é demasiado universal, e consequentemente séria, utilizo antes a patafísica, que tem mais sentido de humor e é uma ligação natural ao absurdo. Além disso, é a ciência que trata das excepções, dos Hápax.

 

 

CR: Em ambos os casos parece estar em causa a ideia de experiência. 

 

MD: Sim, é verdade. É só uma diferença de pontos de vista. No laboratório o objecto estudado está no centro, o olhar é centrípeto; na natureza, é o contrário, são as coisas que olham para o observador, o olhar é centrífugo. No caso de húmus trata-se de um lugar de impregnação, simbiótico. A matéria transforma-se por dentro, cresce e desenvolve-se ao mesmo tempo que destrói partes de si própria. É um lugar onde a morte e a vida trabalham juntas, numa espécie de fim e início permanentes. A cor vibra por dentro, como se estivesse a apodrecer.

 

 

CR: Tens interesse por teorias científicas antigas, ultrapassadas, nomeadamente as dos séculos XVIII-XIX que operam nas fronteiras de diversos tipos de conhecimento, entre a ciência e a magia, por exemplo. Em que é que isso auxilia ou alimenta o teu trabalho? 

 

MD: Há períodos na história que são muito criativos. Por exemplo, no século XVII, Leibnitz construiu um sistema hiper sofisticado para conciliar as mais recentes descobertas em matemática e em geometria com a sua defesa da existência de Deus. É um pensador funambulista. A sua teoria está inteiramente construída sobre a aposta que o mundo no qual vivemos é o melhor dos mundos possível. Ele colocou toda a sua energia, a sua criatividade e a sua erudição na construção de um castelo de cartas. Fascina-me esta vontade de construir sistemas muito elaborados, aparentemente indestrutíveis. É bom tentar o impossível. E, para mim que leio livros filosóficos ou científicos como se fossem romances, todas estas construções valem mais pela sua beleza do que pela sua verdade. 

 

 

CR: Falemos um pouco dos teus livros e das tuas publicações de artista. Como é que os definirias?

 

MD: São ao mesmo tempo obras autónomas e próteses das exposições, quase sempre feitos em paralelo. Quando trabalho um novo conjunto de desenhos, muito rapidamente me vem a vontade de o transformar em livro, talvez porque é o objecto mais eficaz para revelar a dimensão ficcional de meu trabalho. Cada livro é uma experiência editorial totalmente diferente. Para mim, o mais importante é que o livro sobreviva além das exposições, e que seja pertinente mesmo para quem não as viu nem conhece o meu trabalho. No fundo, têm o mesmo estatuto que uma obra, com uma diferença significativa: é a parte menos solitária do meu trabalho por implicar a participação de muita gente como editores, revisores, designers, impressores, outros autores, etc. A autoria não é tão impermeável e é atravessada por muitas intenções alheias. Enquanto objecto em si, o livro permite que meu trabalho seja acessível. Fico feliz que qualquer pessoa possa levar para casa uma obra minha.  

 

 

CR: O livro que fizeste para esta exposição tem muitas reproduções, até de desenhos que não estão expostos. Chama-se Cata-log cata-strophe, mas não é um catálogo, nem é essa a intenção. No entanto, folheando-o parece mesmo um desses catálogos antigos onde as obras apareciam todas listadas num tamanho muito pequeno. Foi intencional, isto?

 

MD: Foi. Tive sempre um fascínio, em primeiro lugar, pelo livro de bolso, que é o formato desta edição. Leio muito neste formato. A ideia de produzir um livro acessível e desenhado enquanto extensão do corpo do leitor é genial. Ando e viajo com ele, leio-o na casa de banho, na cama, no trânsito, no metro, torna-se um objecto íntimo, vivido. Posso oferecê-lo, partilhá-lo, sujá-lo. Antigamente, os livros de arte eram enormes e caríssimos… Lembro-me bem de, em adolescente, ir comprar a Histoire de l’art, de Élie Faure, da editora Le Livre de Poche. O facto de ver as pinturas a preto e branco [tinha apenas algumas a cores] trazia-me uma certa decepção ao mesmo tempo que obrigava a um esforço de imaginação que era recompensado quando mais tarde te encontravas com o original.

 

 

CR: Como funciona a concepção destes livros?

 

MD: Neste caso, a editora é a Dois Dias, que publica o livro em coedição com a Culturgest. Foi um trabalho muito intenso com o Bruno Marchand, a Sílvia Gomes e o Mário Valente da Culturgest, o Rui e a Sofia, da Dois Dias.

 

 

CR: Nunca pensaste ter uma editora?

 

MD: Na verdade, tenho uma! Inventei a Tripé, através da qual faço os meus próprios livros, colecções, capas, e invento até os próprios escritores… É mais fácil. Até publiquei, também com a Dois Dias e no contexto da Bienal de Coimbra, o catálogo das edições Tripé. Foi a primeira vez que uma editora editou o catálogo de uma outra editora [sem a ter comprado, claro!]. A ideia para o Cata-log cata-strofe era fazer um livro de literatura no sentido mais abrangente do termo. Queria que as pessoas pudessem ler este livro como se estivessem a ler um romance. O livro de bolso permite isso, pois há livros de bolso de romance, de história, de ciências, de artes... A única coisa que têm em comum é o formato. Fizemos aquilo que se faz num livro deste tipo, mas ao contrário: o texto principal ocupa a parte central, onde normalmente estão as imagens. A intenção foi criar espaço para os títulos, que muitas vezes são quase textos. O Cata-log cata-strofe oferece-nos a possibilidade de pôr as obras junto com os seus títulos e de dar títulos aos títulos. As imagens a preto e branco funcionam como mnemónicas, como os “Desenhos tautológicos” relativamente aos seus desenhos originais. Mas as técnicas mnemónicas tornam-se obsoletas com o desconhecimento ou esquecimento do que se quis lembrar. A função do desenho torna-se inoperante, logo o desenho torna-se autónomo. Torna-se desenho.

 

 

CR: Fazes muitas auto-representações. Nesta exposição tens uma sala apenas com auto-retratos como se fosse a sala dos espelhos da antiga Feira Popular, mas há outros que aparecem nos vários conjuntos de desenhos expostos. Como é que eles aparecem?

 

MD: Muitas vezes aparecem quando já não tenho ideias. São uma espécie de lugar onde volto quando não tenho o que desenhar. São uma reconcentração num ponto que está sempre disponível… eu próprio. Talvez não seja muito evidente nesta exposição, mas utilizei muitas vezes a minha figura como uma espécie de duplo, no sentido cinematográfico do termo, o actor que faz as coisas perigosas em substituição do principal. É um personagem que é parecido comigo e que faz as coisas que eu teria desejado fazer mas que são proibidas, perigosas ou tabu.

 

 

CR: Há um momento perigoso nas narrativas, e o cinema explora muito isso, que é o da anagnórise, aquele em que o personagem, numa situação de impasse existencial, se vê reflectido numa qualquer superfície espelhada, reconhece-se a si próprio como que pela primeira vez e a narrativa sofre uma viragem em direcção ao desfecho. 

 

MD: Sim, exatamente, só que não sei se no meu caso tudo se revela e fica claro ao protagonista. Tem a ver com o efeito surpresa. Ver-me, olhar para mim, é sempre uma surpresa. Apesar de fazer muitos auto-retratos, nunca consigo chegar ao que acho que deveria ser. Há uma espécie de impossibilidade na representação. Nunca sou eu nos desenhos, é parecido com a sensação que tens quando encontras uma pessoa que não viste durante muito tempo, tem um ar familiar mas há uma hesitação… No meu caso, como em todo o meu trabalho, há uma parte fundamental que é ficcional. Um auto-retrato é também o personagem de uma história inventada. 

 

 

 

CR: Há quanto tempo fazes auto-retratos?

 

MD: Há muito tempo. Acho que foi o meu pai que me deu isso como exercício. Ele dizia-me sempre que saber desenhar era fundamental, que quando se sabe desenhar sabe-se fazer tudo o resto. O tipo de conselhos exagerados que os pais dão… Repara que Denisse é o anagrama de dessine [desenha]. Quando não sabia com o que me entreter, dava-me um exercício: desenhar à vista. Qualquer coisa… uma flor, um casaco pendurado, um animal, as pinturas do meu avô. Um deles foi copiar um auto-retrato de Picasso, de 1906. Fiz umas dezenas de retratos desse auto-retrato e ficou-me este fascínio pelos auto-retratos, sobretudo na pintura, como pelo retrato do Courbet, cujo rosto se aproxima da superfície para se mirar na tela como o Narciso se mira no reflexo da água. É o lugar paradoxal onde se junta, num mesmo imago, a figura da verdade e da mentira. E é sempre um Hápax.

 

 

 

 

 

 

Mattia Denisse

 

 

Culturgest

 

 

 

 

Catarina Rosendo [Lisboa, 1972] Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte [FCSH-UNL]. Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea [Almada]. Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar [2008]. Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 [2007]. Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes — Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

 

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Mattia Denisse, Hápax (2022). Vistas de exposição. Curadoria de Bruno Marchand, Culturgest, Lisboa. Fotografia: António Jorge Silva. Cortesia do artista e Culturgest.

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