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Cosima von Bonin: Boy At Work 

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José Marmeleira

 

Boy At Work, patente até 23 de Julho na Lumiar Cité, consiste na primeira exposição de Cosima von Bonin em Portugal. É caso para regozijo e, até, algum espanto se se tiver em conta a extensa carreira desta artista alemã e a sua correspondente notoriedade internacional. Nascida em Mombaça, Quénia em 1962, Cosima von Bonin iniciou o seu percurso nos finais dos anos 80, envolvida na cena artística da cidade de Colónia. Foi neste contexto, também, que se relacionou com Martin Kippenberger, Georg Herold, Rosemarie Trockel, Isa Genzken, Albert Oehlen, Jutta Koether Michael Krebber, entre outros nomes.

Considerando a produção da maioria destes artistas, é possível situar a obra de Cosima von Bonin num certo universo: aquele influenciado pela crítica que a arte conceptual e a performance, nos Estados Unidos dos anos 60 e 70, dirigiu (ou tentou dirigir) ao mercado da arte e à fetichização do objecto artístico. Com efeito, a arte que podemos encontrar na Lumiar Cité ainda é tocada pelo fervor contracultural desse período, ou pelo menos, por aquilo que dele resta.

Um dos condutores desse contágio tem o nome de Mike Kelley (1954-2012). Afirmado nos Estados Unidos, nos finais dos anos 80, este artista combateu (artística e teoricamente) uma concepção disciplinadora e conservadora da arte e da história da arte. Para tal recorreu, sem a condescendência da distância, aos produtos da cultura de massas, convocando uma narrativa que começara nos surrealistas e encontrara o seu pináculo nas promessas da contracultura do EUA. Assumindo uma postura crítica, paradoxalmente concertada com a do fã, Kelley foi pugnando por uma alteridade, que nascida nos lixos do espectáculo capitalista, teria com fim (ainda que difuso) o desmantelamento desse mesmo espectáculo. Ora, sabemos que o projecto de Mike Kelley não se realizou. Ou, na melhor das hipóteses, o que dele se manifestou tem a sua origem precisamente no lastro da contracultura e nos fantasmas de objectos e práticas marginais da cultura popular.

Mas se exceptuarmos o falhanço do social, o modo como o artista dos EUA (na companhia de outros artistas) reformulou o uso do ready-made e da assemblage viria a revelar-se bastante frutífero. Insuflou tais práticas com outros sentidos, mais prosaicos e profanos: patético, ultrapassado, arruinado, excessivamente adornado[1].

Ora, diante das obras de Cosima von Bonin aclara-se o sentido das afinidades com Kelley. As metodologias, os meios, as opções parecem reconduzir-nos, de facto, ao universo do artista (do qual a folha de sala recupera uma frase), ainda que com assinaláveis diferenças.  Cosima é conhecida por não gostar de explicar as suas obras, furta-se a dar-lhe um sentido por meio das palavras. Não oferece chaves para a interpretação daquilo que faz e mostra. Em simultâneo, declina, a competência ou a habilidade para pintar. Não é — já confessou — uma boa pintora. Portanto, o trabalho manual — entendido num sentido convencional — não é a actividade em que se sente mais à vontade.

 

 

Estes dois elementos colocam a obra da artista num espaço que, a julgar pelas correntes que actualmente têm maior visibilidade na arte portuguesa, será a de um estranho, quando não desconfortável limbo. Ironicamente, e ainda que trazendo para a sala da arte, as coisas da cultura de massas, é como se a arte de Cosima reclamasse agora uma espécie de autonomia. Que autonomia? A do discurso que a obra de arte pode espoletar. É que nesta exposição as coisas que vemos e ouvimos não nos dizem nada, a não ser o sentido que delas podemos retirar.

É nesse intervalo, por vezes opaco (nada sabemos das intenções da artista), por vezes disruptivo e não sem humor (como na peça The Boy) que a exposição coloca o visitante/espectador. Assim que entra, observará um objecto que, sem esforço, classificará de mau gosto: um peluche, reproduzido em vários outros peluches. Pendurados em fila, num estendal de roupa, vemos do menor ao maior, porcos de peluche. De cabeça para baixo, os lombos virados, partilham o estendal com um peluche de personagem Miss Piggy (da famosa série televisiva The Muppet Show), pendurado por molas e almofadas onde se podem ler, bordadas, as palavras Que Le Fuck (da autoria da irmã da artista Livia von Bonin). Noutra parede, estão mais peluches, de vários universos, a maioria pendurada pelas orelhas.

O efeito é estranho. Somos transportados para a infância (porventura, não a nossa), para a perversidades triste da indústria cultural, para o amortecimento da reificação. Aqueles animais tão amorosos estão, estiveram sempre mortos. A destoar a frase Que Le Fuck, parece dirigir-nos, dos confins do design e do consumo, a pergunta: o que é isto? O que estão aqui a fazer? Até que The Boy começar a cantar. Do cimo das escadas, colocada num estranho púlpito, outro boneco, agora do personagem Elmo de Sesame Street (na versão portuguesa, com o nome de Simão), canta, conta anedotas, brinca com espectadores, ameaça espirrar ou cair.

O púlpito não é um verdadeiro púlpito. Dito outro modo, replica, em madeira lacada, um mobiliário do emblemático restaurante-café lisboeta Gambrinus. É por esta estrutura, pintada de amarelo, que os visitantes têm de passar. O contraste das cores — vermelho e amarelo — o boneco que canta e a presença da superfície limpa da madeira, evocam, numa montagem inesperada, a escultura minimalista, a insolência de Mike Kelley e o espaço social (cada vez mais acossado) da boémia: a provocação é, sobretudo, dirigida ao espectador informado. De resto, a frivolidade e a arrogância do meio da arte ameaçam resplandecer, como se num espelho.

O sorriso ou o riso (mais ou menos espontâneos) serão nestas condições atenuados pela possibilidade de ficamos a sós com as obras, de enfim de nos atermos à inefável e inesgotável capacidade que elas têm de gerar ideias. Por exemplo, a propósito do título de The Boy: noutros trabalhos, a palavra boy reaparece agora formando um anónimo pedido: Boy Wanted. Vemo-lo bordada nas pinturas Britney, Work Bitch (2023) e em Missy Misdeeamenaor, Work It (2023). A que se refere este estranho pedido: ao trabalho, ao trabalho masculino, ao trabalho sexual, ao trabalho do artista (homem) que pinta? O facto de os títulos destas pinturas e das restantes serem compostos de nomes de divas do r&b (Britney, Rihanna) e do hip hop (Missy Elliot), trazem à memória os termos “empoderamento”, “poder”, “dança”, “força”. E se quisermos, até, feminismo. É evidente que estas canções e as suas autoras e intérpretes fazem parte do gosto da artista, mas persiste algo para lá do gosto. É que as canções falam todas de trabalho e é de trabalho que as pinturas — feita de vários tipos de tecidos — também falam. Do trabalho da artista? Do trabalho daqueles que trabalham com a artista? Do nosso diante dos seus trabalhos? Do trabalho humano não alienado? Do trabalho de quem trabalha para si, sem transformar os outros em objectos? Não sabemos. O que sabemos é que nos rimos, perplexos.

 

Cosima von Bonin

Lumiar Cité

 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

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Cosima von Bonin: Boy At Work. Vistas gerais da exposição no espaço Lumiar Cité. Fotos: © DMF Fotografia. Cortesia da artista e de Maumaus/Lumiar Cité. 

 


[1] Hal Foster, Bad New Days (London, 2015) , pag. 201

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