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A Quem Possa Interessar: Uma Coleção, uma Carta

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Eduarda Neves

Entrevista a Ricardo Nicolau

  

Acumulação e dispersão, uma máquina que nos conta histórias

 

  

Ricardo Nicolau é um curador de exposições que trabalha desde 2006 no Museu de Serralves como adjunto da direcção. Entre as últimas exposições que comissariou destacam-se individuais de Nora Turato (2019), Hugo Canoilas (2020), Lourdes Castro (2022) ou ainda colectivas como Zéro de conduite (2018) e Uma Exposição Escrita (2022). Além disso, desenvolveu em 2022 um projecto com os estabelecimentos prisionais de Custóias e Santa Cruz do Bispo para os quais convidou os artistas Tiago Madaleno e André Cepeda a aí intervirem. Actualmente, prepara com uma equipa de curadores de Serralves a exposição inaugural da extensão do museu (a inaugurar em 2024) e a próxima edição de O Museu como Performance (4 e 5 de Novembro). Publicou recentemente o livro Ana Ana Ana, dedicado à artista Ana Jotta. A quem possa interessar: uma coleção, uma carta , foi o ponto de partida desta conversa.

  

 

Eduarda Neves(EN): A quem possa interessar: uma coleção, uma carta é o título da exposição que comissarias com Isabel Braga no Museu de Arte Contemporânea de Serralves ­­e que convoca um posicionamento crítico sobre a própria ideia de exposição, tanto formal como conceptualmente. Que ligações, viagens, formas, usos e reciprocidades encontraste entre os potenciais destinatários e as noções de colecção e de carta?

 

Ricardo Nicolau (RN): As cartas e os seus usos sempre me fascinaram (interessar-nos-emos por tudo o que está em vias de desaparecimento?), em particular no campo da arte. Dar voz aos artistas, esse objectivo tão reclamado nos últimos tempos (talvez para refrear – temperar, pelo menos – a presença esmagadora dos curadores, que durante muito tempo pareceram deter o exclusivo do discurso), tem no formato epistolar uma tradução bastante exemplar; e quem diz cartas diz tanto folhas de sala escritas por artistas como verdadeira correspondência, por exemplo posta em marcha por curadores que enviam a artistas cartas-convite para determinada exposição e deles recebem missivas que espoletam um diálogo (casos de Harald Szemann e do “aluno” atento Ernesto de Sousa). É esta relação entre as cartas-como-sementes-de-diálogos-potencialmente-perpétuos e o formato exposição que quisemos explorar. Uma exposição não será também ela uma carta, perguntámo-nos. Depois, e visto tratar-se de uma exposição colectiva, confrontámo-nos obrigatoriamente com a questão do discurso: como controlar a cacofonia e dar alguma homogeneidade a obras (vozes) tão diversas, e tentando evitar a violência de as usar para abordar/ilustrar grandes temas? Talvez, paradoxalmente, sublinhando a inevitabilidade dessa cacofonia, sem medo da dispersão, conscientemente desatentos a cronologias e geografias e recepções críticas… E, e este é um exercício de equilíbrio particularmente complicado, sem demasiado receio de estar a desrespeitar obras e artistas ao não obedecer às convenções de como devem os trabalhos ser idealmente apresentadas (nunca a uma altura que dificulte a sua percepção, ou demasiadamente próximos de outras obras, por exemplo). Alguém me perguntou depois de ver a exposição, esperando “entalar-me”, se determinado artista iria gostar de ver a sua obra assim apresentada, lá no alto, praticamente inacessível. A minha resposta foi imediata: “Não, provavelmente não.” A verdade é que aquilo que agora está lá no alto foi e vai voltar a ser apresentado ao nível dos nossos olhos e que se agora parece preencher uma parede mais do que “preencher os sentidos” isso deve-se a uma composição que, de certa maneira, obedeceu aos princípios do cadáver esquisito. Como as cartas circulam e encetam diálogos, também na exposição nos interessaram mais as conversas do que o lugar dos interlocutores.        

 

EN: Uma colecção, como uma carta, situa-se no tempo. A exposição que apresentas, num museu de arte contemporânea, confronta-nos não só com uma atmosfera que nos recorda o tradicional Salon mas também com aproximações surpreendentes e até inesperadas entre obras e artistas, alguns deles nunca apresentados neste museu. Queres indicar alguns exemplos e abordar as razões subjacentes a estas opções curatoriais?

 

RN: O espaço da galeria de arte e a sua ideologia é um tema que, apesar de já ter sido amplamente discutido, não perdeu actualidade. Lembramo-nos que o espaço do museu não é exactamente neutro quando artistas ou exposições nos vêm recordar que as formas de expor podem influenciar decisivamente a maneira como olhamos para determinados objectos artísticos (mesmo que eles sejam “clássicos” desenhos, colagens, pinturas, fotografias). O Salon, que obviamente nos inspirou, mais do que trazer o conforto da familiaridade, quis trazer para o museu o desconforto (a interrogação, pelo menos) de quem se descobre longe da neutralidade. Como quisemos descartar grandes temas (dar voz a artistas para depois os obrigar a exercícios de ventriloquismo) optámos por um modelo premeditadamente humilde: e se reuníssemos trabalhos porque antes de tudo correspondem a retratos, ou a paisagens, ou porque estão ligados pela atenção ao inconsciente? Desconfiávamos que esta simplicidade poderia dar origem a conversas complexas. Estávamos certos, parece-me. Dois exemplos: o facto de Jorge Queiroz — um artista perseguido pelo anacrónico adjectivo “surrealista” — ser apresentado ao lado de outros artistas que, para lá das diferenças (desde logo geracionais, geográficas) também parecem privilegiar o inconsciente (a arte, parafraseando alguém, que “não luta, labuta”, que não se faz de intenções), não amplia as formas de olhar para o seu trabalho?  Apresentarmos em paredes próximas exemplos de pinturas expressionistas e “apropriacionistas” (em que o pintor aplica a inexpressividade de um copista) de Pedro Casqueiro não nos pode fazer pensar que o expressionismo era afinal simulado, ou que não está assim tão longe da cópia?  

 

EN: Decidir o que mostrar e o que excluir implica uma decisão crítica e, por vezes, contextual. Imagino que, e parafraseando Benjamin a propósito da figura do coleccionador, tenha ocorrido alguma luta contra a dispersão, apesar das imensas obras que povoam as paredes do espaço à maneira de um Salon. É assim?

 

RN: Acumulação e dispersão são as duas palavras que talvez melhor descrevam ou sintetizem esta exposição (e o processo que lhe deu origem). Uma exposição, qualquer exposição, é o dispositivo que mais eficazmente nos mostra que aquilo que vemos depende da forma como é apresentado, nomeadamente ao lado de quê (ao ponto de 1+1 raramente serem dois); uma coleção, qualquer coleção, é acima de tudo uma máquina de contar histórias. Senão vejamos: além de poder narrar a sua própria feitura (quem a começou e a continuou, quando, onde e porquê), ela é composta de obras que podem ser apresentadas de mil formas, desde mil perspetivas. Putativos “curadores-Xerazade”, todos quantos trabalham a partir de uma máquina-coleção devem antes de mais reconhecer que ela contém em si mesma todas as derivações, possibilidades, vizinhanças, variações, conversas, declinações, justaposições — das mais expectáveis às mais improváveis. Isto para dizer que mais importante do que qualquer exclusão, neste caso o fundamental foi mostrar o máximo (e o objectivo de preencher paredes levou-nos naturalmente ao modelo do Salon), fazer desta primeira carta uma espécie de catálogo, ou de arquivo, que alimente futuras correspondências.     

 

EN: Mencionas que optaram por não submeter a exposição a um qualquer tema mas, antes, por uma estratégia que teve como ponto de partida núcleos que actualmente podem ser considerados académicos, tais como os de retrato ou paisagem, entre outros. No entanto, se admites que é possível trabalhar a partir desta condição, também  reconheces que as práticas artísticas contaminaram e tornaram fluída essa ordem de classificação (onde começa o retrato e acaba a paisagem?). Em que medida esta permeabilidade tornou objectivável uma outra articulação das obras, artistas e sentidos?

 

RN: Digamos que a exposição teve origem tanto na desconfiança em relação a temas (uma recusa em forçar artistas a falar/ilustrar temas considerados incontornáveis) como na convicção de que os supostamente obsoletos géneros académicos poderiam dar origem a diálogos complexos e sofisticados. Explico melhor: os géneros foram apenas um pretexto para começar a agrupar obras e pôr em marcha o referido cadáver esquisito. O carácter lúdico da composição/exposição, o facto de nela se baralharem tempos e lugares (absoluta permeabilidade), também se deve ligar à consciência de que determinadas categorias que sempre nos ajudaram a localizar e hierarquizar (valorizar) obras de arte, nomeadamente o seu carácter vanguardista, singular ou pioneiro, talvez não sejam hoje demasiado produtivas.    

 

EN: Até que ponto essa convencional dicotomia entre tema, géneros ou outras categorizações, se encontra obsoleta e até mesmo improdutiva sobretudo perante exposições que tendem a reflectir cada vez mais um modus operandi liberto desses constrangimentos ou juízos a priori ?

  

RN: Temas, géneros e categorizações são improdutivos quando correspondem a tentativas mais ou menos violentas de homogeneizar, de subtrair diferenças. No caso desta exposição os segundos serviram, pelo contrário, para dar o microfone a cada artista. Foram produtivos, portanto — até porque permitiram aos curadores esquecerem quaisquer tendências, os ângulos urgentes, todos os quadros de recepção considerados verdadeiramente contemporâneos.   

 

EN: A quem possa interessar não deixa de ser um apelo, uma espécie de questionamento sobre a condição dos destinatários. Hoje, que podem eles esperar de um museu de arte contemporânea?

 

RN: Duas respostas são possíveis, e talvez não se excluam mutuamente: podemos pensar em destinatários distraídos, obedientes a regimes de (des)atenção de que o museu não só está refém como promove – e que são pouco propícios a trocas epistolares (que, voilà, não são imediatas) ou podemos defender o museu de arte contemporânea como o último guardião da não-evidência, da não-imediaticidade, do inframince. Que esta exposição, que não tem textos, sequer tabelas (as fichas de obras devem ser consultadas no roteiro, o que dá origem a autênticos quizzes), tenha destinatários/espectadores atentos, curiosos e pacientes é a este título elucidativo.  

 

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

 

Eduarda Neves é professora, ensaísta e curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria articula os domínios da arte, filosofia e política.

 

A autora escreve segundo o anterior acordo ortográfico.

 

 

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Vistas da exposição A Quem Possa Interessar: Uma Coleção, uma Carta na Fundação de Serralves: Museu de Arte Contemporânea, Porto. Fotos © Filipe Braga. Cortesia da Fundação de Serralves. 

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