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CAConrad com Alice dos Reis e Isadora Pedro Neves Marques: Escondidas na caverna que forjamos umas das outras

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Maria Kruglyak

 

Comissariada pela e em conjunto com a Pântano Books (Alice dos Reis e Isadora Pedro Neves Marques), a exposição Escondidas na caverna que forjamos umas das outras, de CAConrad, no Batalha Centro de Cinema, revela-se uma teia mágica tecida a partir das formas da poesia, do cinema, da edição, da exposição e da performance. Sensível e generosa, esta mostra apresenta CAConrad, lenda viva da poesia norte-americana, e a sua obra poética e ritualista ao público e à cena artística portuguesa, abrindo também caminho à criação de uma comunidade genuína.

Reis e Neves Marques, por sua vez, são jovens artistas portuguesas consagradas por direito próprio que trabalham nos campos da arte visual, textual e cinematográfica. Em conjunto, são responsáveis pelo projeto editorial Pântano Books, que se dedica a traduzir poesia inglesa para português e a publicar novas obras na língua portuguesa. A segunda publicação deste projeto foi a primeira tradução portuguesa de The Book of Frank (original de 2010 e tradução de 2021), de CAConrad, que resultou num convite lançado pelo Cinema Batalha para a realização de um filme, uma entrevista, outra publicação e uma instalação. Tanto o Cinema Batalha como Guilherme Blanc, diretor artístico daquela casa, desempenharam um papel central neste âmbito, tendo em conta a (infeliz) raridade que é ter pessoas empenhadas em co-criar unilateralmente um projeto com facetas e formas tão diversas como este. A partir desta premissa, o centro de cinema independente, não obstante a sua (até agora) curta história, consegue preencher uma lacuna da cena artística portuense, construindo um espaço aberto, experimental e acolhedor para mostrar arte e cinema num envolvimento ativo com a comunidade artística portuguesa.

A exposição apresentou o filme homónimo, projetado na parede do fundo de uma sala comprida que se seguia à instalação de uma "floresta de poesia", composta por formas recortadas dos poemas de CAConrad. Sobre todo o espaço, uma coberta de tecido semitransparente carregava outro poema impresso.[1] Da parte do público, a instalação gera uma interação algo invulgar e silenciosa: as pessoas deslizam em redor daquele tecido, deslocando-se depois para a "floresta de poesia", um passo de cada vez, lendo os poemas para si mesmas, contornando cuidadosamente a multidão para não perturbar as leituras dos restantes visitantes, e terminando com um solene visionamento do filme Hidden in the cave… (2022). O visível cuidado e o trabalho de Reis e Neves Marques criaram alicerces para o poder transformativo da instalação e para a extraordinária leitura aberta que, num fim de semana de maio,[2] juntou um conjunto de pessoas para quem o trabalho de CAConrad tem profunda importância. Se se quiser criar uma comunidade artística contemporânea vibrante em Portugal, é crucial organizar-se eventos como este.

No sábado, contou-se com uma introdução de Reis e Neves Marques e uma apresentação de CAConrad, que então explicou o seu trabalho com o estilo poético (Soma)tic,[3] a sua vida e as suas mais recentes viagens, partindo de uma intenção de ouvir e interagir com as várias criaturas que configuram uma base de influência para a sua última publicação. O dia de domingo, por outro lado, foi inteiramente comissariado pela coreógrafa, dramaturga e performer Ana Rocha,[4] que convidou cerca de uma dúzia de artistas simplesmente porque, como indicou, "tinham de conhecer CA".[5] A performance percorreu cuidadosamente a linha entre a alegria e a tristeza, mostrando-se fiel às ideias de The Book of Frank, que, como CAConrad explica, é uma publicação profunda e obscura sobre pessoas que morrem, que desaparecem, que são abusadas[6] e que criam "um feitiço, uma fantasia pagã, mas aqui e agora […] [porque] é assim que se abrem novas passagens".[7]

Para esta ocasião, Rocha transformou o bar do Cinema Batalha num espaço acolhedor, com uma iluminação suave, colocando tapetes no chão uns sobre os outros, dispondo cadeiras em semicírculo ao redor daqueles, pendurando lençóis com poesia escrita à mão na parede e apresentando, na parede do fundo, um filme mudo, com duração de 25 minutos, gravado à porta do Cinema Batalha, no qual Rocha aparece discretamente vestida como CAConrad a fumar um cigarro na paragem de autocarro.[8] No limite oposto do círculo, CAConrad e Rocha sentaram-se à mesa, encarando o público que ocupava o espaço, as cadeiras, o chão, as almofadas e os degraus. E foi então que começou. CAConrad leu uma seleção de poemas de The Book of Frank, na sua versão original, e seguiram-se as leituras de alguns membros do público das traduções para português da Pântano Books. Os microfones saltaram de mão em mão, as páginas folhearam-se; toda a gente se mostrou ativa, e os artistas convidados também leram, tal como qualquer outro membro do público. Algumas pessoas leram com maior fluidez, e para outras foi mais difícil — cada qual leu com o seu estilo. Com o tempo, ao longo da sessão, gerou-se um sentido de co-criação; e assim se desenrolou a vida de Frank na nossa imaginação, partindo do ritmo de hipnótica solenidade gerado pela leitura cadenciada de CAConrad.

Chegado o trigésimo sexto e último poema, ajustou-se o ritual: depois de espalhar perfume pela sala, Rocha solicitou que toda a gente repetisse em simultâneo, como num mantra, um verso de The Book of Frank — "Frank knows a butterfly who wonders about her caterpillar friends" [Frank conhece uma borboleta que se questiona sobre as suas amigas lagartas]. Progressivamente, começando em murmúrio, o volume das vozes — algumas sincronizadas entre si, e outras com outras — foi aumentando, até que Rocha se levantou e pegou na mão de CAConrad, e depois na de outra pessoa, e depois na de outra. Antes de o público sequer conseguir perceber o que estava a acontecer, formou-se lentamente uma lagarta de pessoas de mãos dadas, numa longa linha, em espiral. Quase toda a gente se juntou aos convites avulsos dos membros do público, concretizando-se uma dança lenta com a estrutura humana que se dobrava sobre si mesma; até que todos nos levantámos, ao lado de alguém cuja mão não estávamos a agarrar, sem conseguir ver os rostos das pessoas cujas mãos as nossas seguravam. Entretanto, começara a tocar uma música, e o mantra subsumiu-se. "Podem ter vontade de rir, mas isto não é motivo de gargalhadas", apontou Rocha, e a multidão amainou, confiando no sentimento e entabulando quase inconscientemente um movimento de vaivém, para a frente e para trás. Cinco minutos depois, relaxámos as mãos. As pessoas, em silêncio, ofereciam umas às outras sorrisos genuínos em honra do momento que haviam acabado de partilhar; viam-se lágrimas nalguns olhos. Algo de estranho — algo de mágico — acontecera. Por breves minutos, as pessoas que se encontravam na sala partilharam um corpo, uma consciência; e viveu-se uma intimidade tecida a partir da presença corporizada da poesia de CAConrad.

Dias depois, o sentimento surreal que este fim de semana suscitou continuava presente: magia, comunidade e conexão de um lado, e luto, mágoa e uma melancolia alienadora do outro. Resta também a sensação de ainda faltava muito para construir aquele género de comunidade de forma mais permanente — a própria memória física do acontecimento revelou-se dolorosa pelo seu desaparecimento. Semanas depois, o sentimento persiste, configurando uma fé renovada no poder transformativo da corporização e rememoração da comunidade. Tal como a borboleta que se questiona sobre as suas amigas lagartas,[9] de Escondidas na caverna que forjamos umas das outras resta o persistente maravilhamento da lagarta humana que se formou naquele domingo, quando a arte interligou as pessoas através do toque e se concretizou na sua comunhão.

 

CAConrad 

Pântano Books

Batalha Centro de Cinema

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

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CAConrad com Alice dos Reis e Isadora Pedro Neves Marques: Escondidas na caverna que forjamos umas das outras. Batalha Centro de Cinema, 2023. Fotos: Filipe Braga. Cortesia de Batalha Centro de Cinema. 

 


Notas:

 

[1] Esta peça vem da primeira exposição em que CAConrad participou:

uma coletiva em cuja inauguração recusou fazer uma leitura da sua obra. Parafraseando o seu relato da situação: "Porque havemos nós, poetas, de ser somente um complemento do trabalho dos outros? Eu recuso. Poetas também são artistas. Eu quero fazer parte da exposição!" E, após alguma ponderação, o curador acedeu, e o poema de CAConrad foi impresso no tecido e pendurado a cerca de trinta centímetros da parede.

[2] Numa estranha sequência de acontecimentos, o dia em que Reis, Neves e CAConrad filmaram em Nova Iorque foi também a véspera da morte da mãe de poeta, que tinha sido uma figura de extrema importância nas suas vidas. Por outro lado, este fim de semana coincidiu com o primeiro aniversário da sua morte.

[3] A poética (Soma)tic é um conceito criado por CAConrad, que assim o explica: "A minha ideia para uma poética (Soma)tic é uma poesia que explora o espaço aparentemente infinito que existe entre o corpo e o espírito, utilizando praticamente qualquer COISA possível à volta do corpo ou do próprio corpo para o canalizar para fora e/ou na direção do espírito, com uma concentração deliberada e ininterrupta. A escrita (Soma)tics configura um envolvimento com a coisa das coisas e o espírito das coisas. Ver “CAConrad’s (Soma)tic Poetry Exercises”: writing.upenn.edu/~taransky/somatic-exercises.pdf.

[4] Já em 2019, Ana Rocha convidara CAConrad para vir a Portugal participar num programa cultural, mas, com o início da pandemia, esta proposta não chegou a concretizar-se.

[5] Citado de uma conversa telefónica com Ana Rocha em 30 de maio de 2023.

[6] The Book of Frank foi a forma que CAConrad encontrou para regressar à escrita após a epidemia de SIDA, que provocou a morte de vários amigos próximos, e o brutal homicídio do seu parceiro de longa data Mark Holmes, também conhecido como Earth — situações que, da sua parte, geraram uma incapacidade insuperável de escrever. Citando a recapitulação de CAConrad em (Soma)tic Poetry Ritual #58 DOUBLE-shelter: "Reflete sobre alguma violência pessoal que queiras desfazer. Alguma coisa terrível que tenha extirpado a beleza que antes era parte da tua vida. O meu namorado Mark (Earth de alcunha) foi viver com uma comunidade queer no Tennessee para trabalhar na terra. Todos os dias, fazia meditação numa caverna, até onde foi seguido por homens homofóbicos que o prenderam com cordas e amordaçaram. Depois, despejaram-lhe gasolina em cima e pegaram-lhe fogo. Durante muito tempo, sonhei recorrentemente comigo a esfaquear os assassinos, a disparar sobre os assassinos, a afogar e estrangular os assassinos, a espancá-los com mocas. Sonhos assombrosos de retaliação pelo homem que amava, que, me, acordava, cada, manhã, ainda mais inconsolável do que na anterior. Parecia que nunca mais me voltaria a sentir feliz. Repara em como a violência não desaparece da tua vida. Como pode nunca vir a desaparecer. Repara em como, desde então, vens sentindo o mundo de forma diferente." Ver CAConrad, “#58 DOUBLE-shelter”, (Soma)tic Poetry Rituals (2011): somaticpoetryexercises.blogspot.com/2011/06.

[7] Citado de uma conversa telefónica com Ana Rocha em 30 de maio de 2023.

[8] A paragem de autocarro tem um significado particular na vida de CAConrad. Antes de começar a sua jornada diária a vender flores, era aí que a sua mãe e deixava, e foi aí que CAConrad começou a escrever.

[9] Parte do mantra a que se refere acima foi criado por Ana Rocha a partir de um verso em The Book of Frank (2010): “Frank knows a butterfly who wonders about her caterpillar friends.”

 

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