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Julião Sarmento — Abstracto, Branco, Tóxico, Volátil 

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Isabel Nogueira

O título da exposição é homónimo ao de uma pintura de 1997, também agora exposta e que genericamente pertence a um conjunto conhecido como Pinturas brancas, realizadas com todos os tons de branco de que Julião Sarmento [1948-2021] dispunha no seu estúdio. Deste mesmo ano de 1997 data a sua representação de Portugal na 46.º Bienal de Veneza. Com curadoria de Catherine David, esta exposição é a primeira desde a sua partida, no ano passado, e em cuja organização ainda interveio activamente. A exposição reúne trabalhos fundamentais e que vão pontuando um percurso artístico que se cruza, de modo mais evidente ou mais discreto, com aspectos do seu percurso vivencial. Já muito se escreveu sobre a obra de Julião Sarmento, historiográfica e esteticamente importante, vasta e que percorreu diversos suportes e linguagens, como pintura, fotografia, escultura, instalação, filme ou performance.

Julião conectou-se ao que de mais moderno se vivia em cada momento, desde a ligação a um conceptualismo, nos anos 70, ou, nos anos 80, ao “regresso à pintura”, no contexto do movimento pós-moderno. Nos anos 90 voltaria a um marcante depuramento visual. E o seu espírito inquieto permaneceria até aos seus últimos trabalhos.

 

 

A sua obra, independentemente do suporte e do movimento a que se conecte, evidenciou sempre destreza técnica, assim como grande criatividade e versatilidade. Além, claro, de um certo fetichismo e erotismo visíveis. Não é fácil discorrer sobre ela sem alguma repetição. Propomos tomar como fio condutor algumas peças-chave e seguir um percurso cronológico, bem conseguido, desde logo, na mostra em questão. A primeira peça é inquitante e desconfortável: a mulher sem cabeça pendurada numa espécie de trapézio. A ausência de cabeça não terá acontecido porque Julião a tenha cortado, como nos disse numa entrevista de 2018 [Contemporânea], mas porque não a fez, desejando representar uma “mulher universal, não particularizada”. Naturalmente, que toda a subjectividade de recepção, por parte dos espectador, é livre. E, na própria óptica do artista, a obra terminava nessa recepção, como um ciclo que se fechava. Aliás, a ambiguidade e polissemia estão presentes em inúmeros dos seus trabalhos. As esculturas das mulheres, em tamanho natural, são impactantes, por exemplo a da mulher que faz peso no sentido inverso ao da parede com um fio ao pescoço [A human form in a deatlhy mould, 1999] ou a escultura da mulher sentada à mesa, com a cabeça oculta por um pano preto. Na entrevista já mencionada, quando lhe perguntámos qual era a primeira coisa de que se lembrava, Julião respondeu: «A primeira coisa de que me recordo é de estar ao colo da minha avó, que tinha um pequeno jardim. Eu tinha ainda meses e a vizinha de cima faz “coucou”. Olhei para cima, e pareceu-me que a senhora tinha o rosto tapado com uma espécie de pano de veludo preto. Apanhei um susto tão grande! Foi uma imagem que me marcou e que, de resto, deu origem a uma das performances que apresentei em Serralves [Noites Brancas, 2012], que era uma mulher que corria com um pano preto na cara».

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Nasceu em Lisboa, mas viveu noutros locais, como África [Moçambique e África do Sul]. Abandonou o curso de Arquitectura perto de o concluir. O traço e o depuramento espacial possivelmente também se terão desenvolvido neste contexto disciplinar. Nas referidas Pinturas Brancas o traço é sobremaneira importante e definidor. Surge também rasurado, o que o faz ainda mais protagonista da acção. Nesta mostra algumas destas pinturas assumem um grande impacto visual numa espacialidade de grande escala e bem trabalhada. Ao mesmo tempo, o traço prolonga-se no intimismo de uma cena interior, tal como o desenho de uma mesa e um par de cadeiras, ou os desenhos exteriores de casas, complementados por outros elementos visuais, tais como Estoril yellow plants [2013]. O interior e o exterior confrontando-se e problematizando-se reciprocamente.

 

 

 

Julião Sarmento começou a expor nos anos 70. Nesta exposição é visível um conjunto importante de trabalhos deste período. Por exemplo, o comummente designado por “animalia”, materializado em impressões sobre papel de peles de animais, tomando forma padrões inusitados de zebra, tigre ou leopardo. Estes trabalhos recordam a peça em que se mostra uma mulher a vestir oito casacos de peles diferentes [Sem título – Casacos de pele, 1975], estabelecendo uma relação performativa entre a pele, o corpo e a imagem. Ainda dos anos 70, há um conjunto de certo modo surpreendente, porque menos expectável no âmbito das obras de Sarmento, intitulado Um Quarto de [zebra, girafa, etc.]. Parte do respectivo animal espreita no canto do espaço pictórico, mostrando um fora de campo quase do domínio do cinematográfico, numa plasticidade de cores vivas e luxuriantes. Destes anos ainda importa referenciar a presença da peça que Julião apresentou na exposição Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, em 1977 [Peça variável – 5 intervenientes, 1976]. 

Há uma obra inusitada, mais antiga, pensada em 1968, mas que só conheceu materialização em 2018, aquando da sua exposição no Centro Internacional das Artes José de Guimarães: Quando se apear, deixe seguir o carro antes de atravessar a rua, podemos ler numa das duas tapeçarias, que reproduzem — frente e verso — um bilhete de eléctrico, que possivelmente ficara esquecido num bolso. Dos anos 70 importa ainda referenciar o importante núcleo dos filmes super8, a cores, sem som, e que constituem o que podemos designar de um corpo autónomo e consistente no percurso de Julião Sarmento, num contexto de experimentalismo e de ligação próxima – inclusivamente na senda da neovanguarda internacional — da arte e da vida. São eróticos, mas ao mesmo tempo de grande simplicidade e implicativos de uma vertente poética nessa mescla e nesse carácter directo. Faces [1976] é, talvez, o melhor, na sua vertente em close-up e slow motion

 

 

 

 

Em 1980, a internacionalização de Julião Sarmento seria acelerada com a presença na Bienal de Paris, e, em 1982, na Documenta 7, em Kassel, nesse ano com direcção de Rudi Fuchs. Em 1983, participou na exposição que lançou o debate em torno do movimento pós-moderno em Portugal: Depois do Modernismo, com curadoria de Luís Serpa. A sua pintura destes anos é notável, constituindo um núcleo dos seus melhores trabalhos, representados também agora, por exemplo, pela pintura Salto [1985]. O traço é forte e expressivo, num equilíbrio entre sofisticação e brutalidade. Cada pintura engloba vários quadros de ligação não evidente. E voltamos à polissemia e aos enigmas.

Pelos anos 90 e 2000 os trabalhos ganham espacialidade e depuramento. É a época das já referidas Pinturas brancas, e de notáveis obras, como Forget me not [2005]. A palavra surge muitas incorporada na pintura com uma maior intensidade, criando camadas de leitura e de significado. E de mistério, claro. Algumas obras mais recentes merecem o nosso destaque. Por exemplo, a versão que Julião Sarmento fez, utilizando uma impressora a três dimensões, da escultura histórica de Edgar Degas, La petite danseuse de quatorze ans [c. 1881], agora com 140 cm de altura. Esta é uma das peças que claramente constitui um símbolo do interesse de Julião Sarmento pela história da arte e por vários artistas modernistas fundamentais, como Degas ou Marcel Duchamp. De algum modo, a sua obra é um reflexo também disto, quer dizer, por um lado, incorporadora de um depuramento factual; por outro, de um erotismo intenso; assim como de uma contemporaneidade que, muitas vezes, possui um modernimso histórico como referente. Entre outros aspectos, é também nesta riqueza que o trabalho de Julião Sarmento se posiciona. Esta exposição, com uma montagem cuidada e que respira, permite ao espectador contactar com todos estes filões, de algum modo, indexados no título da mesma.  

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Julião Sarmento, Abstracto, Branco, Tóxico, Volátil. Vistas gerais da exposição no Museu Coleção Berardo. Fotografia: Rita Carmo. Cortesia Museu Coleção Berardo. 

 

 

 

 

Museu Coleção Berardo

 

Julião Sarmento

 

 

 


 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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