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Interferências: Culturas Urbanas Emergentes

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Gisela Casimiro

Ao visitar a exposição Interferências, no dia da sua inauguração, em Março de 2022, foi notória a presença de visitantes negros. Notória como se, não há tantos anos quanto isso, Kiluanji Kia Henda não tivesse desafiado convenções e colonizações ao fotografar uma série de jovens no Padrão dos Descobrimentos. Agora, existem convites, os espaços abrem-se, e o que era transgressão renova-se em disrupção. Ao longo da Primavera e Verão deste ano, exposições, oficinas, debates, concertos e festas nos jardins têm reunido em espaços privilegiados e centrais da cidade de Lisboa comunidades anteriormente mantidas a uma certa distância. Pessoas imigrantes, trans, racializadas, ligadas ou não às artes e à cultura, com mais ou menos habilitações, de diferentes graus de precariedade, geografia e classe. Vimo-lo acontecer com as exposições Europa Oxalá (Fundação Calouste Gulbenkian) e Interferências (MAAT). Voltei a visitar a exposição uns dias depois, tendo cada vez mais perguntas.

Arte e cultura. A exposição Interferências, com curadoria de António Brito Guterres, Carla Cardoso e Alexandre Farto, será talvez mais sobre cultura do que sobre arte. Carlos Bunga, Herberto Smith, Petra Preta e Filipa Bossuet são artistas que trazem um equilíbrio entre nomes estabelecidos e emergentes. As obras de Kiluanji, Rod ou Isabel Brison dialogam com a história, os monumentos, a disposição e a ocupação do espaço público. O que liga as pessoas envolvidas? Cabem, realmente, todas lá? É preciso ocupar — criar — um lugar, com acesso a todas as condições e exposição, para concretizar o potencial, ou para se ser melhor do que já se é? O que acontece ao potencial de quem nunca ocupou um lugar como visitante, quanto mais quanto artista? Como navegar etapas e oportunidades, sem perder o discernimento? Conviver com a excelência pode influenciar as nossas acções, mas não nos torna necessariamente excelentes. Não existem atalhos, ou se existem, continuam a ser apenas para alguns. O quanto pesa ainda a figura de um, dois, três curadores, todos eles brancos, independentemente da sua ligação louvável a comunidades, bairros, imigrantes? Quando se começa num lugar como o MAAT, o que acontece ao ímpeto quando os orçamentos, o apoio técnico, a logística, a divulgação, a temporalidade forem limitados, quase escassos? Como proteger a continuidade depois de se entrar pela porta grande?

A propósito destas e outras questões, conversei com Filipa Bossuet, jornalista e artista, sobre Mankaka Kadi Konda Ko.

A sua presença na inauguração foi, certamente, um ponto alto. A peça existe com e sem Filipa, merecendo ambas as variações a nossa atenção. Cama, pintura e diários gráficos compõem esta instalação. Os diários podem ser consultados; têm palavras, beatas de cigarros, fotos, desenhos, pensamentos íntimos. A cama está coberta por uma colcha feita à mão que reúne pedaços da sua infância e adolescência, um diário de viagem detalhado, tecido a ADN e música. Na parede, por cima da cama, uma pintura da artista. As performances ocorreram em Março, Maio, Junho, Julho, e terminam em Setembro, como a exposição.

Langston Hughes, magnífico poeta norte-americano, invoca a figura da poeta e também activista dos direitos civis Anne Spencer, num poema sobre o seu lápis por afiar, como se, deixado assim sobre a mesa, ficassem por dizer muitas coisas que ela sabe, que poderia escrever. Sento-me para conversar com Filipa, primeiro num café e depois num banco na Baixa de Lisboa. Filipa não é dali, nem eu e, como a muitas pessoas que vivem fora da capital, mesmo tendo estudado ou trabalhado nela ao longo de anos, não é a energia com a qual se alinha. Pele escura, cabeça rapada. Um corpo, os ângulos de um rosto, é o seu próprio lápis afiado?

Filipa não fala. Sustenta a sala, os olhares, as constantes fotografias dos visitantes, os comentários. Na sua presença, coberta pela colcha, encarando-nos seriamente, virando-se de um lado para o outro, não fala. Mas ouvimos a sua voz. Somos convidados a partilhar da sua intimidade, questionamentos e desejos, da sua jornada na primeira pessoa, da sua árvore genealógica, da sua construção narrativa intocada por estereótipos.

Cessado o momento de reportar o mundo, encontra-se o que resta do tempo. Na sua ausência, entramos no quarto ali recriado e transgredimos a confiança, a privacidade. Tocamos uma cama sem corpo, remexemos memórias de há anos ou dias. Vasculhamos o que sempre esteve ali mas não revelado, respeitado ou tendo suscitado interesse: o quotidiano, o imaginário, o sonho de uma pessoa negra. Susan Sontag, Annie Ernaux, Virginia Woolf são conhecidas pelos seus diários. De Anne Frank aos “Diários de Adão e Eva” de Mark Twain, um valor histórico ou literário, uma curiosidade natural foram desde sempre e facilmente atribuídos a pessoas brancas, reais ou ficcionais. A escritora e activista Alice Walker publicou os seus “Gathering Blossoms Under Fire”, o Brasil regozijou e chorou com “Quarto de despejo - Diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus. Continua a ser pouca a importância dada ao aqui e agora de gerações mais novas de pessoas racializadas.

De um modo gráfico ou mais epistolar, mais diarístico, ninguém saberá senão as mesmas o que foi a sua vida a menos, claro que seja partilhado constantemente nas redes sociais. Mas como é diferente segurar um diário, sobretudo o de outra pessoa. Queremos lê-lo e queremos protegê-lo até de nós. Este escrutínio, este acesso ambíguo, este sensacionalismo, esta dupla vigilância humanizam ou desumanizam a experiência? Quanta intimidade cabe no espaço público e quanto poder detém quem se expõe de tal modo que nós — os outros, o público — é que nos sentimos embaraçados? Admirar uma obra qualquer um pode fazer, mas lidar com quem a assina exige uma coragem. Uma coragem branca, que parece não ter limites. Porque o público se torna parte da obra, o que significa que também é admirado, medido, pesado, avaliado, comercializado de volta. A inversão de poder, de papéis, o recriar subtil da Exposição do Mundo Português são inegáveis.

Há inclusive uma reparação negra que advém de a admiração não ser reservada apenas a alguns, e ser nos termos de quem decidiu ser admirada, de quem aparentemente revelou tudo, e  isso está, por agora, a salvo. Este corpo raro descansa mas está vigilante, não obstante. As imagens que Filipa criou remetem ainda para a “Grande Odalisca" de Ingres, uma figura que se pinta a si mesma. A pessoa negra agora em repouso, em usufruto, já não a criada, já não o instrumento alheio de prazer e sim alguém que rouba tempo às construções sociais para sentar-se consigo mesma e mandar vir tudo a que tem direito.

 

 

Do Instagram de Filipa Bossuet:

«Pintei o quadrado de preto. Pintei-o completamente de preto com todas as analogias que podem existir à volta do ato de se dizer: “Pintei o quadrado de preto”, a ação, de se pintar o quadrado de preto e o quadrado pintado. Trata-se de uma obra que fala sobre Presença e Ausência. A Presença que se mantém incontornável, pluriversal e única e do "princípio de ausência, no qual algo que existe é tornado ausente” como refere Fanon.»

O post, acompanhado por uma imagem do MURAL 48 ARTISTAS, 48 ANOS DE LIBERDADE, pintado colectivamente a 10 de Junho, cita ainda a intelectual brasileira Sueli Carneiro: “Para nós o luto é verbo.” Para Filipa Bossuet, como para todas as pessoas a quem a sua obra obriga a um olhar mais atento sobre si mesmas e sobre a sociedade, também a luta é o verbo.

 

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Uma conversa com ROD

Num outro momento de reflexão, conversei com Rodrigo Ribeiro Saturnino ou ROD, como é melhor conhecido por estes dias. Sociólogo digital, artista visual e activista, a residir em Lisboa, ROD tem tido destaque em várias conversas contundentes em Portugal e no Brasil sobre as peças que trouxe a Belém.

Mais recentemente, foi um dos oradores da PARTE Portugal SUMMIT ‘22, em Loulé. É impossível não recordar James Baldwin, questionado em televisão sobre o porquê de continuar a falar de raça, ao que o autor respondeu que o estado de um país se vê pelo rosto das suas forças policiais e pelo rosto dos seus empregadores. Baldwin reforçou que poderia não saber o que a maioria das pessoas brancas sentia, mas que as instituições do país certamente o revelavam. A questão da inacessibilidade da própria história, sistematicamente negada e destruída, também pela via da opressão religiosa, continua actual e transborda fronteiras. Esse país de que Baldwin falava era os Estados Unidos em 1969, mas poderia ser o Brasil, poderia ser Portugal em 2022.

 

Gisela Casimiro (GC): A tua faixa com a frase viralizada “NÃO FOI DESCOBRIMENTO/FOI MATANÇA” encontra-se no MAAT e é uma das peças, se não mesmo a peça mais fotografada e partilhada de todas. Compreendendo, concordando ou não, é uma afirmação a que ninguém parece ficar indiferente. Cut ucaste o âmago de uma identidade nacional que é feita à custa de várias outras identidades. Qual foi a reacção a ela quando esteve originalmente no Largo Residências (Palácio Visconde da Graça, Outubro de 2021), e como é que as reacções na exposição “Interferências” têm variado entre si e em perspectiva com o Largo?

 

Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD): A faixa foi criada de modo acidental. Havia um tecido rosa que sobrou de um trabalho anterior e resolvi escrever aquela frase ali e deixar pendurada no exterior do prédio do Largo Residências. Fui convidado para participar da 12.ª edição da Abertura de Ateliês de Artistas (AAA) promovido pela Associação Castelo d'If a fazer uma espécie de “ateliê aberto”, onde teria a oportunidade de mostrar fragmentos do meu recente percurso como artista. Levei a faixa e logo senti um pouco de resistência por parte da organização. Eu sabia o que aquela frase representava para muitos portugueses e portuguesas brancos. A situação foi rapidamente resolvida e a bandeira pendurada no exterior do edifício. Da janela pude observar diferentes reações. Como o prédio é localizado no Largo do Intendente, havia muita movimentação de transeuntes. Uns faziam sinais de apoio com o polegar para cima. Muitos tiravam fotografias. Houve um senhor que passou e gritou em tom de revolta: “Isso é uma vergonha! É para isso que pagamos impostos?”. Dali para o MAAT a coisa mudou radicalmente. Eu postei um vídeo no Instagram e as reações não foram nada para aí além. Quando recebi o convite dos curadores da “Interferências”, a bandeira não estava na lista das escolhas. Nas conversas por e-mail, sugeri que ela fosse incluída. Sei que houve um período de negociação entre os curadores e a direção do museu para que ela fosse exposta. Uma proposta era colocá-la no exterior do museu. Essa ideia não avançou por motivos de força maior e, depois de concordarem em si, encontraram um lugar que achei perfeito para ela: a saída. Ali pendurada como última peça da exposição num corredor que dá acesso  a saída daquele espaço, servia de última lição. E, despretensiosamente, a cor rosa flúor colaborou muito para que ela não passasse despercebida. Assim nasceu a obra “Pink Flag”. De lá em diante, as reações foram diversas e intensas. A divulgação nas redes sociais começou a desencadear atenção e opiniões. Recebi elogios, mas também mensagens de ódio. Da parte de ativistas e pessoas conscientes do que aquela simples frase representava, houve uma comoção. Nós sabíamos, como você mencionou na sua pergunta, que a bandeira agiria de modo direto no orgulho nacional. Porém sabíamos que ela também serviria como uma mensagem para muitas pessoas envolvidas na descolonização do pensamento português na sua generalidade. E assim foi e tem sido. Costumo dizer que uma parte da minha prática artística, passa pelo ativismo gráfico. É uma forma de comunicar que exige pesquisa para que mensagens sejam transmitidas de modo direto a fim de evitar que ambiguidades criem ruídos. Eu sei que a ironia é uma forma de linguagem muito utilizada em Portugal. E, por vezes, esse modo de comunicar não funciona. Acredito que isso é uma reprodução de como a cultura portuguesa funciona. Um jeito de tentar dizer alguma coisa sem dizer diretamente. Algo que soa como uma forma de escapar ao confronto. Eu não uso a ironia. Prefiro ser direto. Muitas vezes isso é interpretado aqui como agressividade e violência, quando na verdade é um confronto social a situações que foram brutalmente violentas, agressivas e fatais a milhões de pessoas. Por isso, é preciso dizer mais vezes que não foi descobrimento, foi matança.

 

GC: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Trouxeste um aspecto espiritual, ancestral, claramente ambiental e ecológico para a exposição Interferências, com a evocação a Exu. O que representa para ti na vida e na tua prática artística? Que outras entidades sagradas habitam os teus quadros?

 

ROD: As invasões portuguesas destruíram vidas humanas, impuseram o cristianismo, e tentaram pôr fim às práticas religiosas dos povos africanos que foram levados como escravos para o Brasil. Estas práticas foram sendo restituídas ao longo do tempo através de diversas formas de resistência. A educação cristã que recebi me impediu de ter acesso à ancestralidade africana. No entanto, depois de ter saído da minha vila para estudar em uma cidade maior, tive a oportunidade de experimentar outras formas de explicação do mundo. Não pratico nenhuma religião, mas hoje tenho acesso a uma espiritualidade que foi me negada pela história do colonialismo. A demonização das religiões de origem africanas, nada mais é que uma estratégia de enfraquecimento da força do povo negro. Por isso, passei a sentir uma necessidade de conhecer a invenção do mundo a partir de uma perspetiva afro-brasileira, de modo a eliminar a colonialidade que a mim foi imputada através do cristianismo. É com muito respeito que vou me aproximando a este sagrado. E é em homenagem que vou incluindo esse imaginário no meu percurso. Eu acredito que é uma forma de comunicar de modo criptografado. Ou seja, falar, através da representação figurativa, às pessoas que também se identificam com esse universo. Na minha experiência como artista, imagino momentos de criação em que quero falar apenas com esse grupo. Não quero comunicar com o “público em geral”. Essa pintura que está exposta no MAAT tem também essa conotação. Sinto que incluir a cultura afro-brasileira dentro de museus, não só melhora a fruição estética de visitantes,  mas também comunica ao povo negro que a história pode mudar e ela passa por ocupar espaços “sagrados” da arte com o poder que habita o panteão africano. Não quero ver apenas santos católicos e esculturas gregas ali. Quero ver Exu, Iansã, Oshun e por aí vamos.

 

GC: Denuncias várias situações de injustiça social, laboral, entre outras. Que práticas tóxicas ainda observas à medida que vais alargando o espectro de instituições e pessoas com as quais trabalhas, relativamente a questões de racismo e direitos LGBTQI?

 

ROD: Tem acontecido um forte movimento de “tokenização” de pessoas negras no campo das artes em Portugal. Eu estou aqui desde 2007, quando vim fazer um mestrado, e apenas a partir de 2018 é que passei a reparar com maior atenção. Em 2019, com a inédita eleição de três mulheres como deputadas em Portugal e depois, em 2020, com o assassinato de George Floyd, e a comoção internacional que isso gerou através do Black Lives Matter, as pautas raciais e trans passaram a ser mais recorrentes em variadas áreas. Nas artes, especialmente, a visibilidade de pessoas negras e pessoas trans foi gradativamente aumentando. No entanto, essa aparente mudança no setor passou a se revelar como repetição da colonialidade. O que implica dizer que as pessoas negras e pessoas trans nas artes passaram a receber oportunidades, mas sem ocupar posições dentro da gestão da cultura e da arte. Uma prática colonial consiste na manutenção histórica do poder. Ele é repassado de forma cíclica e repetitiva. Enquanto pessoas negras e pessoas trans tem oportunidade de subir em alguns palcos ou mostrar seus trabalhos em alguns museus e algumas galerias, as cadeiras onde gira o comando continuam nas mãos de um grupo historicamente privilegiado: as pessoas cis brancas. Uma denúncia de que ainda estamos a viver a toxicidade da mercantilização da potência dessas pessoas. Ou seja, enquanto não ocuparmos os lugares de gestão da arte e da cultura, repete-se o uso barato e precário da nossa criatividade como matéria-prima para o entretenimento. Ela ainda é apenas um símbolo de falsas práticas de inclusão. Em Portugal não há reparação histórica. Dar oportunidades não é igual a dar lugar.

 

GC: Quem serias tu sem o peso do colonialismo e a responsabilidade de o desmascarar e mesmo explodir, como no teu gif do Padrão dos Descobrimentos? Essa é uma outra peça fortíssima em termos de impacto.

 

ROD: É um exercício de ficção pensar em minha existência fora desse contexto. Afinal, a sociedade de onde eu venho tem sua gênese na colonização. Mas pensando na ficção como espaço de escape de realidades inventadas e como lugar de formação de existências próprias, eu penso que é possível me imaginar como uma pessoa mais que humana. E a arte pode ser esse meu mundo, que é só onde eu posso experimentar uma paz qualquer, e onde eu possa desfrutar da calma. Quando eu fiz o gif eu estava pensando nesse mundo. A tecnologia tem esse toque fictício que permite inventar imaginários. Eu sei que nesse mundo, destruir aquele monumento é uma tarefa impossível. Mas no mundo que eu criei para mim, eu posso ser aquele que aperta o botão da bomba.

 

GC: O que representa, para ti, que a tua obra esteja exposta em Belém, um parque de diversões colonial, o verdadeiro Portugal dos Pequenitos na escala original?

O que significa a ironia de duas peças decoloniais estarem num dos lugares mais coloniais, sendo os lugares de um e de outro vizinhos e ambos duas instituições de peso, embora apenas um deles com cariz histórico. Gostarias de ver essa peça no próprio Padrão?

 

ROD: Quando me convidaram para participar da exposição Interferências mostrando essas peças, eu achei que seria uma oportunidade boa para manter este debate aceso. A região onde está o MAAT é uma área historicamente bizarra para as pessoas negras que conhecem um pouco do que ali foi feito durante o Estado Novo. A “Exposição do Mundo Português” foi um insulto de Salazar à vida africana, assim como o Museu do Tesouro Nacional inaugurado este ano é uma ofensa ao povo brasileiro. Houve coragem por parte dos curadores da exposição e também da direção do MAAT em acolher as obras “Pink Flag” e “Explodindo com a história”. E o fato de essas duas peças estarem ali naquele lugar que recebeu aquela exposição horrenda sobre o sacrifício de vidas africanas, torna ainda mais forte a mensagem que elas pretendem comunicar. Eu acredito que a destruição dessa história começa na ficção, no imaginário. E é a partir da mudança das narrativas oficiais sobre o colonialismo português que conseguiremos iniciar um processo de reparação. Para isso necessitamos da arte e das instituições deste campo como meios efetivos de comunicação. A validação do MAAT é importante, mas não é suficiente. É preciso que outros artistas e outras instituições utilizem a política da arte como forma de descolonizar o pensamento colonial que ainda está vivo e forte em Portugal. Se essa obra fosse exposta dentro dos espaços do monumento que homenageia as invasões seria uma situação inédita. Não acredito que isso venha a acontecer, mas num exercício de imaginação, fico com um grande receio da repercussão disso para minha vida em termos de violência e agressão. Já com a peça no MAAT recebi muitas mensagens de ódio. Importante ressaltar este momento que Portugal vive, no sentido de estarmos a debater assuntos que em outros países, como o meu, já se está bem mais avançado. Dito isso, é evidente que muitos artistas negras ainda estão “atados’” ao tema por se tratar de uma problemática que se tornou visível há pouquíssimos anos.

 

GC: Como continuar a criticar, de forma pública como fazes, apelando a uma consciencialização social para temas específicos, quando as instituições estão, simultaneamente, a tentar fazer um caminho lento num sentido que se quer mais justo?

 

ROD: A lentidão aqui é uma conveniência. Em termos de reparação histórica nada se fez de modo substancial, quando falamos dos efeitos e consequências de séculos de colonização. O populismo da máxima “somos um país pequenino” funciona como um escape às responsabilidades que Portugal tem à sua frente. Essa ideia é contrastante quando vejo muitas pessoas portuguesas brancas celebrarem as invasões como um dos mais importantes trunfos da sua história. Não podemos negar que existe na memória nacional branca um tipo de recalque dessa “pequenez”, quando ela é refutada através da celebração do passado colonial. Essa exaltação está marcada por todo o país através de monumentos, estátuas e placas toponímicas. Encontramos isso também em museus e espaços institucionais do governo. Basta ver a recente inauguração do Museu do Tesouro Nacional, onde podemos ver a joalheria real, pepitas gigantes de ouro e mais de 12 mil diamantes roubados do Brasil. Estas situações contrastam com a falsa humildade da pequenez portuguesa. Ela serve apenas para esconder e adiar um tempo que deve chegar. Enquanto outros países da Europa tentam repensar formas de reparação, Portugal está preocupado em manter vivo as conquistas que realizou a troca da barbárie. O silêncio também é estratégico. Um silêncio que se repete no cotidiano de portugueses brancos. Parece mesmo que as instituições estão pouco interessadas em restituir o que foi saqueado dos países que, no passado, foram utilizados para enriquecer o país.

 

GC: És parte da UNA, estiveste na DJASS e no Alkantara. Como difere a tua participação em cada um destes organismos e que mudanças acreditas terem sido implementadas/motivadas? Como é que isso mudou a tua perspectiva sobre acesso, poder, representatividade, meios? O que gostarias que acontecesse muito brevemente?

 

ROD: Meu envolvimento associativo foi importante para construir uma parte do meu criticismo decolonial. Os anos de DJASS foram cruciais para estabelecer minha conexão com pessoas com interesses semelhantes aos meus. Durante anos eu me senti muito sozinho em termos de parcerias, amizades e convívios com pessoas negras interessadas em mudanças sociais. Na DJASS pude me aproximar disso. Foi minha porta de entrada para o ativismo e para a manifestação das minhas práticas como artista. Os anos de academia serviram de base para elaborar meu pensamento e hoje entendo a potência da junção da minha prática acadêmica com a arte e o ativismo. Esse caminho me levou até a UNA: União Negra das Artes. Um projeto em desenvolvimento que representa um importante espaço para representação de artistas negres em Portugal.  A DJASS e a UNA, assim como outras associações constituídas por pessoas negras, são exemplos profícuos de mudança. Elas constituem forças autônomas. Sua presença no tecido social português sinaliza que é possível promover políticas cotidianas que cheguem diretamente às pessoas negras. Além de agirem como ponto de convergência de interesses comuns às pessoas racializadas, elas podem agir como propulsoras da pressão social para mudanças na cultura e na arte. Através da UNA, por exemplo, vimos uma tentativa da DGArtes em tornar os concursos mais inclusivos por meio do incentivo de inclusão de pessoas afrodescendentes em projetos. É um pequeno passo que, no entanto, acabou criando outros conflitos. Como a DGArtes passou a oferecer 10% de pontos a projetos que incluíssem na sua equipe pessoas afrodescendentes, a situação se virou novamente num processo de tokenização. Projetos passaram a incluir pessoas negras apenas para garantir mais 10% de pontos, mantendo-as novamente num lugar utilitário sem oferecer a essas pessoas cargos na direção dos projetos. Minha mais genuína vontade é que pessoas negras ocupem os espaços de gestão da arte e da cultura, para não falar das outras áreas. Gostaria mesmo de ver a reparação histórica ser iniciada em Portugal e  como disse anteriormente, essa reparação só será iniciada quando o poder sair das mãos de quem sempre o deteve aqui.

 

Filipa Bossuet

ROD [Rodrigo Ribeiro Saturnino]

MAAT

 

Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é uma escritora, artista, performer e activista portuguesa. Publicou o livro de poesia “Erosão” e textos em várias revistas e antologias. A sua obra está traduzida para turco, mandarim, alemão e espanhol. Foi convidada de festivais literários em Portugal, Turquia, Macau, Moçambique, Alemanha e Cabo Verde. Interpretou espectáculos no CCB, São Luiz e TBA. Participou em exposições individuais e colectivas no Armário, Zé dos Bois, Balcony, Casa do Capitão, Quetzal Art Center, Galeria Municipal do Porto, Galeria Municipal de Almada, Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Integra a Colecção António Cachola. Foi membro do INMUNE e faz parte da UNA - União Negra das Artes.

 

 

Outros artigos sobre:

— Interferências

Europa Oxalá

 

Interferências. Culturas Urbanas Emergentes. 30 de março — 05 de setembro 2022. Imagem de capa e 2ª imagem: instalação de Filipa Bossuet. Fotos: Bruno Lopes. Restantes imagens em slideshow: Activação da instalação e Performance de Filipa Bossuet. Fotos. Joana Linda. Cortesia da artista.

Última imagem do slideshow: pintura de Filipa Bossuet, imagem da capa do livro: Sempre que Acordo de Lara Mesquita. Cortesia da artista.

Interferências. Culturas Urbanas Emergentes. 30 de março — 05 de setembro 2022. Vista da exposição— na imagem: peça de ROD [Rodrigo Ribeiro Saturnino]. Fotografia: Pedro Pina. Cortesia do artista e MAAT, Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, Lisboa.

 

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