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gravitas

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José Marmeleira

 

No espaço da Fundação Leal Rios, até dia 30 de Julho, várias obras aguardam os visitantes, compondo uma série de relações de ordem conceptual, visual, estética, formal e plástica. Essas relações aparecem no que poderíamos designar por um ambiente definido. Vinda de cima, uma luz crepuscular e terrosa atribui ao espaço uma qualidade artificial, senão mesmo cénica. Poder-se-ia mesmo falar de um palco que se efetivará mediante a presença do espectador. Caberá a este, afinal, encontrar as tensões, os confrontos, os diálogos que o ambiente torna latente nas e entre as obras. Só assim haverá exposição.

Intitulada gravitas, assinala os dez anos da Fundação Leal Rios, reunindo trabalhos de artistas representados na colecção da fundação — são os casos de obras de Helena Almeida, Ana Vieira, José Pedro Croft, Julião Sarmento, Francisco Tropa e Joana Escoval — e de um conjunto eclético de nomes em termos de geração e de grau de visibilidade. Não é despropositado falar de um gesto temerário da curadoria, o de agregar propostas tão distintas, por vezez, até díspares.

É estimulante pensar nos diálogos potenciais entre uma peça de chão de Susana Gaudêncio e um vídeo de Helena Almeida. Ou entre uma peça em bronze de Francisco Tropa e as caixas de luz de Hugo de Almeida Pinho. E, pelo caminho, descobrir a produção recente de Joana da Conceição, as esculturas suspensas de Christine Henry ou um vídeo de Igor Jesus pouco visto. A exposição faz-se com ritmos diferentes, ora densificando um desenho labiríntico, quase desconcertante, ora abrindo clareiras no espaço.

A ideia de gravitas serviu ao curador David Revés para pensar a selecção e a montagem das obras, animando a polissemia do termo e a sua relação secular com a arte. Duas perspectivas tocam-se, quando não se cruzam: a arte na condição de fazer e objecto singular que resiste à gravidade, elevando-se aos céus, numa revolta contra a condição humana. E a arte que, parafraseando, Goethe se ocupa do grave e do bom, para oferecer estabilidade e permanência à história humana. É no intervalo entre duas forças — uma antigravitacional, animada por desejos prometeicos e órficos, a outra que cede ao peso da história e da contingência humanas — que a exposição se coloca. Neste sentido, se assim se poderá afirmar, todos os artistas “ilustram” a experiência desse intervalo. Saem da terra, sem nunca dela saírem fisicamente. E se os seus olhos podem estar nos astros ou num qualquer domínio extraterreno, aquilo que fazem não tem como destino os astros, e sim o mundo na sua mais chã condição. É sobre este que, afinal, se debruçam.

 

 

A exposição começa num prólogo. O corpo de Helena Almeida ocupa as imagens do vídeo A experiência do lugar II. Observamos os seus movimentos lentos e duros sobre o chão. Vemo-la a arrastar um objecto (uma cadeira) e, por instantes, parece que vai desaparecer no espaço, qual silhueta ou sombra. Do vídeo, sai, entretanto, a melodia da área “J'ai perdu mon Eurydice”, da ópera Orphée et Eurydice. Breve, cantada por uma voz, assombra a caixa de luz de Hugo de Almeida Pinho na qual descobrimos uma paisagem irreal e, no entanto, verdadeira.

Entrados na sala, somos banhados pela discreta luz crepuscular que desce sobre os trabalhos. Do lado direito, a pintura A Prece de Viriato de Julião Sarmento mostra-se altiva defronte o esqueleto em bronze de Francisco Tropa, mas a figura pintada — um torso cuja sexualidade não vemos definida — insinua uma vulnerabilidade. Quem é aquele Viriato, a quem dirige a sua prece? Ao futuro? Ao passado? Do tecto, pendem estranhos objectos. São cadeiras que se assemelham a aeroplanos, da autoria de Christine Henry. À memória vem o desejo de invenção de Leonardo da Vinci, quando a arte e a ciência nutriam o mesmo espírito humanista. Um olhar menos espantado, aclara, outro aspecto: o carácter protésico destas naves precárias e pesadas. Será apropriado, falar de trauma? Sim, talvez, mas de humor também: imaginamo-las a tentaram escaparem pelo espelho da peça de José Pedro Croft ou a subiram ao piso de cima. Uma ilusão dramática: neste ambiente, as coisas têm gravidade e tempo, mesmo quando exploram precisamente as ficções da arte, como acontece em Duelo — Dilema de Susana Gaudêncio. Composição de objectos imaginários e concretos em gesso, dispostos no chão, insinua a passagem de uma acção performativa (num diálogo com o vídeo de Helena Almeida), ao mesmo tempo que evoca a memória da mão no visitante.

Os objectos enquanto produtos do fazer humano aparecem com sentidos distintos nas propostas de vários artistas. Ora têm ou aparentem ter a forma de ferramentas ou instrumentos utilitários, ora remetem para relações das quais uma certa experiência do sagrado ou do primitivo não se ausentou. A presença do notável vídeo A Trama e o Círculo/Ascensão da Caverna de Mariana Caló e Francisco Queimadela expande esta última ideia em termos cinemáticos. Inventa, se se quiser, um outro tempo, tempo do jogo, do prazer, da magia, da alquimia e da criação, sem outro fim que não seja o de transformar poeticamente o mundo. Se há uma reacção à lei da atracção cósmica e à mortalidade ela passa, transfigurada, por este trabalho. E, no entanto, o que ali vemos continua a ser tangível, terreno, tocada e feito pelas mãos: a linguagem do tocar e compor a linguagem do ver. O mesmo se poderia dizer das novas pinturas de Joana da Conceição, inspiradas pelo pensamento místico de Marguerite Porete e Hadewijch de Antuérpia. Nestes trabalhos, em que o artista recorreu à pintura de fingimento, são os ecos do passado que fluem já outros nas superfícies pictóricas, comunicando para lá do tempo.

Assinala-se que gravitas não explora as questões da imortalidade humana ou os significados com que certos conceitos (do pós-humano ao transhumano) são hoje discutidos. O ponto de vista é claramente mais recuado, menos sujeito aos rumores do presente, e procede de uma pergunta histórica: o que nos impele a fazer cultura? Melhor dizendo, o que nos leva a fazer esses objectos — os artísticos — sem os quais não é possível falar de cultura? Desejo de controlo? Imortalidade? Vontade de superar tudo aquilo que nos condiciona? Não há, obviamente, uma resposta cabal. Haverá várias, todas atravessadas por uma irresolúvel tensão. Desta, gravitas oferece-nos um perturbador e fascinante retrato no vídeo POV de Igor Jesus. Uma coluna de som cai de uma altura vertiginosa. Enquanto se escuta o som da queda — que é o do efeito da gravidade no objecto — vemos a câmara reduzida a um monólito fixo, inamovível. Uma superfície sem profundidade ou perspetiva que acelera até ao plano final: o de uma imagem fixa e muda.

 

Fundação Leal Rios

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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gravitas. Vistas gerais da exposição na Fundação Leal Rios. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da Fundação Leal Rios. 

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