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Gabriel Chaile: Migrantes são bem-vindos

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José Marmeleira

Migrantes são bem-vindos do artista argentino Gabriel Chaile na Kunsthalle Lissabon tem, desde logo, uma virtude. Traz, à esfera local das artes, a pertinência da participação, da sociabilidade e da vivência comunitária na condição de elementos constitutivos de uma exposição e de uma obra. Portanto, coloca em debate questões que não sendo inéditas entre nós, nunca foram as dominantes. 

Gabriel Chaile vive em Lisboa, em cujo contexto artístico e cultural se integrou há vários anos. Na cidade, já realizou exposições e fundou espaços independentes, mas a sua intervenção e vivência no tecido social [e nas relações que o formam e transformam] não se restringe ao campo artístico. Muitos dos seus projectos incluem a partilha de histórias, música e culinária. A arte encontra-se — certamente — na origem desta actividade, mas a amplitude da sua intervenção compreende a cultura. Podemos até acrescentar que, passe a repetição, é cultural.

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Na KL, o visitante encontra duas esculturas de barro, Protótipo #2 e Protótipo #3 [da série Flota – Centro Cultural Ambulante, 2022] que parecem replicar um objecto de uso cuja funcionalidade não é evidente. Sugerem um híbrido de ânfora e vaso bojudo no qual se descobrem discretíssimos motivo decorativos. A presença de duas rodas na base — o que significa que podem ser movidos — não elimina o aspecto fantástico, quase ancestral da peça. A generosidade das suas formas redondas, a textura do barro e o tamanho sugerem a representação de uma divindade benigna, não fossem os elementos que lhe dão o carácter funcional. Protótipo #2 e Protótipo #3 não são apenas esculturas — não deixando de ser esculturas — são objectos de uso que o artista utilizou e utilizará em encontros com amigos e companheiros no espaço da exposição. Que objectos de uso? Fornos. As esculturas acolhem fornos onde serão confeccionadas refeições e que transportam, também, pratos, talheres, panos, copos e megafones.

Estas refeições realizam-se no espaço da KL enquanto experiências de co-presença numa mesa e com bancos de madeira que compõem a outra peça da exposição. Trata-se E.F.C.A.T.A. [estudio para el funcionamento de las cosas a través del Arte], espaço e, em simultâneo, conjunto de materiais que caberá ao artista, usar e animar, na companhia de outras pessoas.

 

Pela acção de Gabriel Chaile, a arte transformar-se-á, assim, em lugar de relações sociais e de uma desejável produção espontânea de discursos. 

 

Além de mesa, a E.F.C.A.T.A inclui um quadro de ardósia e, num painel de cor amarela, uma série de imagens impressas em papel. Algures entre o altar,  a oficina e a aula informal, forma um espaço onde se projectam viagens, encontros e desencontros, e se assinalam epifanias e, porventura, traumas. Mesmo que o espectador não possa presenciar a convivialidade que o espaço promete, caber-lhe-á atribuir sentido a tal constelação de imagens. Algumas são alusivas ao trabalho artesanal, outras à história da pintura ou a acontecimentos colectivos e, possivelmente, pessoais. Arte e vida mesclam-se com uma simplicidade prosaica e inteligente. Há generosidade neste gesto em revelar o que nutre o processo [ou que em última análise o deflagrou], mas a revelação nunca é transparente. O espectador pode assim imaginar o que liga entre si aquelas imagens ou, indo mais longe, a sociabilidade prometida pela exposição, isto é, os gestos e as palavras das pessoas que ali se encontrarão sobre a hospitalidade do artista. 

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No fim, contudo, poder-se-á obstar que Migrantes são bem-vindos — cujo título foi apropriado de uma frase que Gabriel Chaile encontrou num cartaz, na rua, durante a sua primeira quarentena em Lisboa — confirmam precisamente o enfraquecimento, se não a dissolução, da esfera pública na sociedade ou a sua mutação em contornos que ainda não conseguimos precisar. 

Como muita da arte participativa — na esteira do conceito de Relational Aesthetics desenvolvido por Nicolas Bourriaud — a proposta do artista desejar compensar essa perda, trazendo para o plano da arte as possibilidades sociais, políticas e culturais da sociabilidade e da participação. De novo são audíveis os ecos de movimentos dos séculos XX, mas o nexo com a realidade que existe para lá dos espaços da arte alterou-se. E a ideia de uma democracia sustentada na intersubjetividade e na comunidade pode afinal resultar numa ilusão, ou na melhor das hipóteses, numa comunidade isolada, demasiado isolada, apenas tingida por algo de utópico.

Talvez não se possa exigir aos artistas muito mais, dadas as circunstâncias em que vivem e vivemos; e, diga-se, Gabriel Chaile é assaz sensível às realidades que o cercam e que nos enfrentam. Uma questão pode, todavia, ser no fim colocada: quando a esfera pública acabou esmagada pela publicidade e a opinião política se degradou na mera gestão dos acontecimentos, o que podem fazer os artistas? Uma certa perspectiva responderá que não só não podem, como, sobretudo, não devem fazer o que quer que seja.

Já se partimos da exposição de Gabriel Chaile, então a resposta pode ser a seguinte:

 

Activar, com humildade, o ser social e político das pessoas. E activar aqui não pode ser instrumentalizar, mas tão-somente permitir que cada uma e cada um imaginem outras sociabilidades e comunidades a partir da arte e para lá da arte. 

 

Com mais conversa, no sentido em que Chaile a pensou — e menos laboratório, mais ambientes comuns e menos domínios especializados. Dando verdadeiro e real significado ao título da exposição. 

Reunindo o antigo ao moderno, as tradições artesanais de geografias não-eurocêntricas aos impulsos utópicos das vanguardas europeias [o título das peças sugere uma menção óbvia às aspirações da Bauhaus], Gabriel Chaile coloca-nos no intervalo de várias dialécticas: objecto utilitário e objecto artístico, tradição e modernidade, craft e post-craft, esfera privada e esfera pública, arte e sociedade. Convenhamos que não resolve nenhuma. A possibilidade de uma síntese é deixada à capacidade de invenção, cada vez mais fragilizada, do espectador. 

 

 

 

 

 

Gabriel Chaile

 

 

 

Kunsthalle Lissabon

 

 

 

 

Gabriel Chaile, Migrantes são bem-vindos. Vistas gerais da exposição. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Kunsthalle Lissabon.

 


 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler].

 

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

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