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 Pedro Henriques: Futuro sem mãos 

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José Marmeleira

Pedro Henriques é um artista de quem, habitualmente, só temos notícias quando realiza exposições ou participa em exposições. Não se afirma que essa é a única actividade a que deve aspirar, mas certamente que ninguém ousará questioná-la. É importante. Pedro Henriques faz e mostra obras.

 

Assim tem sido, pelo menos, desde 2014, quando venceu, com Lúcia Prancha, o Prémio Novo Banco Revelação 2014. Desde então, recordamos exposições na Galeria Pedro Alfacinha [Sidewinder, em 2015, e Solid State Drive, em 2016], um projecto desenvolvido no espaço Oporto, em Lisboa, que contou com a colaboração de Alexandre Estrela, ou em 2018, Birbante, com a curadoria de Nuno Faria no espaço Quartel, em Abrantes. Já nos últimos dois anos, três individuais deram a ver a evolução recente de um trabalho que reúne pintura, desenho e fotografia, para explorar e desestabilizar a experiência háptica, pictórica e gráfica das imagens e dos objectos escultóricos. Referimo-nos a Cápsula no CAV — Centro de Artes Visuais em Coimbra, Safari na Galeria Zé dos Bois em Lisboa e Sumo Turvo na Lehmann + Silva no Porto. 

Entre cada uma destas exposições, observou-se um trabalho em movimento e vários elementos que o vão compondo: a incerteza das formas — que é a fluidez da sua metamorfose latente — a vibração juvenil e física das cores, a alusão figurada e plástica a uma realidade exterior [nunca representável], a presença do desenho — ora submerso nas profundezas das formas, ora fruto [mais ou menos] impulsivo do gesto e da mão.

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Eis que surge agora Futuro sem mãos, no espaço da recém-inaugurada Galeria Minuta, com curadoria de Natxo Checa, momento que permite ver o que mudou [e não mudou] em termos de processo de trabalho e interesses estéticos e formais.

Como na galeria Zé dos Bois, vemos peças de chão — onde se percebe, desta vez, a gestualidade quase convulsiva do desenho — e desenhos a tinta-da-china, numa presença mais recatada. Menos dispersa que Safari, Futuro sem mãos é também mais leve e aberta aos movimentos do visitante. Beneficiando da arquitectura despida da galeria, pode-se circular à volta das esculturas da série Vasos de Rua, deambular entre as paredes e o chão ou reparar nas imagens que o artista trabalhou a partir de fotografias de chamas. Ora estas imagens, que dão o título à exposição, vêm sinalizar uma mudança de rumo, ou melhor, um regresso. 

Pedro Henriques retoma o trabalho com a máquina e o processo fotográfico. O que vemos como resultado desse trabalho? Várias superfícies monocromáticas que evocam o revestimento brilhante das capas traseiras dos telefones “inteligentes”. O reconhecimento desta forma [e do objecto que ela sugere] pelo espectador não procede dos efeitos de uma estratégia surrealista ou dadaísta. E por um motivo que excede a prática artística: o telemóvel não é um mero objecto utilitário, transformou-se num aparelho inseparável do nosso ser social. Sem a sua companhia [qual prótese separada do corpo], alguns de nós têm dificuldade em conceber a vida e a existência. 

 

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O artista não nos oferece um discurso sobre esta realidade, coloca-nos no seu limiar, diante das formas arredondadas e das superfícies reluzentes. Seduzem o olhar, chamam pela mão, atraem o corpo. Poder-se-ia pensar que estamos diante de uma estratégia tautológica [que observaria, criticamente, a influências das curvas suaves e o feitiço do design], mas algo aconteceu àquelas superfícies cromáticas. Algumas podiam ser desenhos que o vento deixou na areia, outras vapores gasosos que se libertam da cor, para fora da imagem, ou sulcos que um misterioso metal fundido deixou à vista. Como noutras ocasiões, profundidade e superfície aparecem no mesmo plano e a experiência do bidimensional e do tridimensional pode estar à distância de uma imagem ou no interior da mesma imagem. A possibilidade de uma experiência háptica não desaparece, embora não se realize. Pedro Henriques colocou sobre as imagens botões negros cuja disposição visual replica a forma rectangular do ecrã do telemóvel. O convite ao toque permanece formal e visual. O visitante não participa na obra a não ser em termos conceptuais e estéticos.

A questão estética não é de somenos. A série Futuro sem mãos sugere, também, paisagens fantásticas e voláteis, nas quais não se observam vestígios evidentes de qualquer presença humana. Nesse sentido, a sedução nunca se consuma, mas fica suspensa num estranho efeito de espelho: podemos ver-nos naquelas imagens, mas não estamos lá. Pedro Henriques não tem associado um discurso ao seu trabalho, mas podemos intuir neste uma sensibilidade a questões coevas, partilhada por outros artistas. Insinua-se, por exemplo, referências ao imaginário de uma certa ficção científica ou a noção de que as relações entre as coisas ou os seres não têm de corresponder a dicotomias ou a divisões. É neste intervalo, indeciso, que repousa o seu trabalho.

Pelo espaço da galeria, emergem as peças Vasos de Rua. O título remete curiosamente para objectos decorativos do espaço urbano, mas as formas sinuosas — a maioria tingida num verde escuro e metálico — aproximam-se de um universo aquático ou extraterreno. São esculturas e, ao mesmo tempo, desenhos presos entre o chão e o tecto que criam a ilusão de sustentação. O gráfico e o antropomórfico mesclam-se numa fluidez que, como as imagens, parecem dialogar com a nossa presença. São elementos que, fugidos de uma pintura, vêm habitar o espaço, formando nele uma paisagem de vibrações que alguém surpreendeu e capturou. Esse alguém foi o artista com o seu traço e, num segundo momento, o próprio visitante.

É importante realçar que estas formas são todas distintas — não se repetem — e a maioria mostra nas suas superfícies vários desenhos de uma gestualidade veloz e nervosa. Entre o graffiti e o desenho rupestre, abrem um mise en abyme que é alimentado precisamente pelo desenho. Não por acaso, o artista e o curador incluíram na exposição vários desenhos a tinta-da-china que, destituídos da força material e visual das outras peças, parecem perguntar, em surdina, ao título da exposição: sem mãos, poderá um dia haver desenho? Artistas?

 

 

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Pedro Henriques

 

 

 

Galeria Minuta

 

 

 


José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler].

 

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

Pedro Henriques, Futuro sem mãos. Vistas gerais da exposição na Galeria Minuta. Fotografia: ZDB/PH. Cortesia do artista e Galeria Zé dos Bois.

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