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Andreia Santana: Overlapses, Riddles & Spells

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José Marmeleira

 

Overlapses, Riddles & Spells, apresentado no contexto da BoCA 2021, é um projecto concebido por Andreia Santana que contempla uma instalação inédita com obras de vidro e ferro acompanhadas por duas projecções de vídeo, concebido em colaboração com Vânia Doutel Vaz, António Poppe e João Polido. A instalação funciona como um espaço híbrido e mutante accionado através de performance, poesia e som. O filme apresentado na Solar foi desenvolvido no âmbito de uma Residência Artística na Solar: Galeria de Arte Cinemática, Curtas Vila do Conde, com a coparticipação da Normax [Fábrica de Vidros Científicos] que disponibilizou o seu espaço para as filmagens. José Marmeleira conversou com Andreia Santana sobre esta singular proposta.

 

José Marmeleira (JM): É a primeira vez que utilizas o filme?

 

Andreia Santana (AS): Não, a captação de imagens em movimento faz parte do meu processo criativo desde sempre. No entanto, raramente decido mostrá-las ou incluí-las no contexto expositivo. Os filmes e as fotografias fazem parte de um arquivo pessoal que constituo de uma maneira livre e diferente para cada projecto. Já o tinha feito, embora de maneira totalmente diferente, em 2017, com a obra Dating The Future.

 

JM: Não conheço esse trabalho. Descreves-mo?

 

AS: É um ensaio visual em recorri à justaposição de imagens capturadas em fábricas que produzem ferramentas utilizadas em arqueologia, com found footage da sua utilização in situ durante o trabalho de campo arqueológico. Começa e termina com imagens de satélite do chamado "lixo espacial" — um conjunto de ferramentas — esquecido pela astronauta Heide Stefanyshyn-Piper durante um passeio espacial em 2008. Penso nesta obra como uma mediação pós-vida — meditando sobre a existência contínua, através de todas as épocas, de uma ideia sempre presente de fragmentação, memória, autenticidade, autoria e apropriação, mas também como uma ideia de catástrofe encontrada nesta interminável "reciclagem", na qual a sucessão cronológica e o tempo linear são inevitavelmente cortados.

 

JM: A propósito de Overlapses, Riddles & Spells na BoCA 2021, pergunto-me se o filme/instalação na Solar pode ser visto como uma continuação ou expansão do contexto teatral, performativo e cénico do momento anterior. Colocaria até a hipótese, correndo o risco do equívoco, que já podia estar lá, mais ou menos implícito, na versão performativa, a do palco...

 

AS: A versão performativa de Overlapses, Riddles & Spells concebida para a BoCA 2021 e apresentada na Black Box do Centro Cultural de Belém foi, desde o primeiro momento, pensada para palco. Foi esse o desafio proposto pelo John Romão que se foi desenvolvendo e incluiu a participação de António Poppe, Vânia Doutel Vaz e João Polido. Existia uma grande vontade de alargar o contexto artístico, colaborar com outres artistas que operam em meios e disciplinas que me são mais distantes e que sempre me despertaram curiosidade. Já conhecia o trabalho de todes e interessava-me explorar o uso da voz e poesia, no caso do artista visual António Poppe; a parte mais coreográfica recorrendo à interação directa do corpo da performer Vânia Doutel Vaz com as obras; e, o som tocado ao vivo pelo artista visual e sonoro João Polido. O projecto foi crescendo através destas colaborações que tiveram início numa residência artística no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo e, que se transformaram em contaminações onde em todas as noites da apresentação (cerca de uma hora), a criação foi sempre conjunta e irrepetível.

 

JM: Como concebes o filme no contexto mais alargado da tua produção?

 

AS: Diria que penso o filme de diferentes maneiras em variadas etapas do meu processo criativo. Como já mencionei acima, só recentemente comecei a incluir os filmes na apresentação do meu trabalho e, nesse sentido, não os consigo dissociar do contexto da instalação. Têm muitas vidas e a sua importância vai crescendo de projecto para projecto. No caso de Overlapses, Riddles & Spells, o filme foi feito numa das primeiras visitas à fábrica de vidros científicos Normax, na Marinha Grande — com a qual continuo a trabalhar — e que para este projecto gentilmente cedeu os restos da produção de material de laboratório e tubos de ensaio e pipetas usadas para que reutilizasse nas três obras em vidro.

Penso que nasceu da curiosidade perante outro tipo de “lentes” e escrutínio material.

Inicialmente, pensei incluir na versão performativa do CCB o filme que agora podemos ver na Solar, em Vila do Conde. No entanto, depois de vários ensaios optei por “deixar” no palco apenas todos os elementos presentes naquele mesmo tempo e espaço. Foi uma experiência sobre e para todes os seres que ali estavam.

Como o projecto Overlapses, Riddles & Spells foi pensado para ocupar o Reservatório da Patriarcal/Museu da Água, no Príncipe Real, logo após as apresentações no CCB, pensámos numa adaptação específica para o local que pudesse incluir o filme. Neste caso, como o reservatório estava seco, as três obras de vidro giratórias foram dispostas em diferentes zonas, trazendo quase como que a liquidez que estava em falta: o som — por vezes fluído outras vezes cortante — ecoava por todos os lados e num ecrã suspenso podia ver-se o filme. Talvez aqui, o filme fosse até o elemento com menos movimento ou mais lento. Esta nova versão da instalação na Solar permitiu-me ter um pouco das duas apresentações anteriores, simultaneamente permitindo novas temporalidades e interdependências.

 

JM: Continuas a trabalhar no vidro, atenta às qualidades tridimensionais e físicas do material, mas também à sua transparência, à sua translucidez. Podemos ver imagens através daquela escultura.  E, nesse sentido, diria que há uma aproximação, no teu trabalho, pelo vidro, ao mutável, ao imaterial, ao etéreo.

 

AS: Existem várias lentes. O vidro aqui também é uma lente. Por conseguinte, cria inúmeras outras imagens e projecções. A ideia era que não só se pudesse ver o filme através da escultura de vidro, como também o facto de, estando em constante rotação, permitir a reflexão constante da imagem através espaço, como se fosse um espectro. E nesse sentido, existe algo de etéreo e uma incessante mutabilidade.

 

 

 

JM: Realizaste o filme recorrendo a uma lente de um dispositivo de controlo da produção em série de consumíveis em vidro para laboratórios e farmácias usado pela Normax. Reparei, entretanto, que no texto da Solar é usado o verbo documenta. Gostava que me descrevesses o processo de filmagem e deixo-te esta questão: será pertinente falar do “documental” no filme?

 

AS: As divisões entre documental e ficção no filme tornam-se cada vez mais porosas. O processo de filmagem foi primordialmente pensado como uma colecção de imagens de objectos, das suas transformações e diferentes leituras. A lente do dispositivo de controlo da produção dos objectos científicos de vidro faz parte da sua pós-produção e revela — num objecto que a olho nu é apenas translúcido — todas as diferentes tonalidades da contracção e arrefecimento do material, medindo a sua temperatura, tensão e probabilidade de quebra. Foi fascinante poder captar estas mutações, como se estivesse a fazer leituras dermatológicas.

 

JM: Não pude deixar de reparar na escultura de vidro defronte do filme. A sua aparência tem qualquer coisa de antropomórfico. Diria que lembra um torso humano. Como chegaste a esta forma?

 

AS: Todas as esculturas em vidro tinham algo em comum, além da sua aparência com partes do corpo humano: a sua escala era totalmente distorcida. Eram feitas de um material elástico que captava formas humanas que se assemelhavam a próteses, extensões ou carapaças. Considero-as segundas peles ou escamas, exactamente porque foram concebidas para serem manipuladas, para serem usadas enquanto receptáculos do contacto directo com os performers, do seu suor, saliva, respiração...

 

JM: O que vemos ali — as formas metas e zoomórficas dos objectos fabricados — não podem ser vistas (pelos olhos humanos) sem recurso a uma tecnologia muito precisa e sofisticada. Mas é o olhar artístico que as “escolhe”. Podemos dizer que usaste a lente como um instrumento usado na pintura ou na escultura?

 

AS: Sim, posso dizer que sim. Nos meus projectos não tenho qualquer restrição quanto aos instrumentos que uso ou à sua proveniência. A meu ver, todes es artistas são curiosos e interessados em descobrir materiais e inspiração fora dos media “tradicionais”.

 

JM: A relação entre o natural e o artificial, o objecto inanimado e o ser vivo, o receptáculo e a entidade viva continuam presentes, mas diria agora de um modo mais sensorial e sensual, até pela presença das cores e dos movimentos dos objectos e seres, da que os acompanha música. Queres comentar?

 

AS: Sim, penso que em Overlapses, Riddles & Spells se pôs em prática, de forma mais explicita, tudo o que já vinha, de alguma maneira, a tentar trabalhar com obras anteriores. Por exemplo, se anteriormente a “rigidez” do metal era perdida através de movimentos fluídos e quase coreográficos ou até parte de uma pauta musical gráfica (como nas obras Rumble Strip, em referência directa a Cornelius Cardew), aqui, o corpo em rotação e a música ao vivo são inteiramente convocados a habitar o mesmo espaço. Contaminando-se, fundindo-se, coabitando-o.

 

JM: Não é fácil atribuir um tempo definido a estas imagens. Reconhecemos vagamente aqueles objectos — de um laboratório — mas parecem-se com coisas/objectos que chegarão do futuro…

 

AS: Essa indefinição temporal dos objectos sempre me fascinou. Já na exposição História da Falta no Museu de Serralves, no Porto, ou em The Outcast Manufacturers, na Galeria Filomena Soares, em Lisboa, foi criada essa dualidade mas talvez de maneira mais explicita no filme Dating The Future, onde o confronto destes períodos temporais, perante as regularidades discursivas que formam os objectos e a civilização material, se desdobram e intersectam. A produção artística é percebida como uma acção que vagueia entre ser um artefacto (passado), obra de arte (presente) e ferramenta (futuro). Em Overlapses, Riddles & Spells, os objectos (no filme) e os fragmentos (de um corpo humano, no caso das obras em vidro) incorporam uma memória material e redes legítimas de afectividade, contendo em si mesmos o potencial de completude, intencionalmente impossível de alcançar.

 

JM: De que referências cinematográficas podemos falar a propósito do filme? Pensei nos filmes do Jean Painlevé pelo facto de reunirem as perspectivass microscópica, investigativa e estética...

 

AS: Sim, lembrei-me bastante dos 23 filmes do Jean Painlevé, da compilação Science is Fiction, quase em resposta à tua questão acima do “documental no filme”. É como se o vidro fosse uma extensão do fundo do mar, porque está directamente relacionado com ele. Mas mais do que referências cinematográficas, servem-me de inspiração dispositivos, catálogos de produto e anúncios comerciais de material industrial e de laboratório. Interessa-me a relação semiótica e a maneira como o corpo humano dispõe graficamente este tipo de objectos e modo como os apresenta. Penso em gestos coreografados, numa linguagem gestual. Desde há algum tempo que tenho uma condição médica que requer que faça exames com frequência principalmente os de diagnóstico por imagem, por isso, também sou muito familiar com este tipo de perspectiva micro e macroscópica. E, claro, filmes de ficção científica.

 

JM: Que filmes de ficção científica?

 

AS: Assim de memória, lembro-me de 2046 de Wong Kar-Wai, Teknolust de Lynn Hershman Leeson, Ghost in the Shell de Mamoru Oshii ou Safe de Todd Haynes.

 

 

Andreia Santana

BoCA Bienal

Solar: Galeria Cinemática

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.


 

Andreia Santana: Overlapses, Riddles & Spells. Vistas da instalação na Solar: Galeria Cinemática. Fotos: João Brites, Solar, Curtas Vila do Conde. Stills de filme. Fotos: Bruno Simão, BoCA Bienal de Artes Contemporâneas 2021. Cortesia da artista, Galeria Filomena Soares, BoCA Bienal de Artes Contemporâneas e Solar: Curtas Vila do Conde.

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