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Ana Vaz: É Noite na América

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Sara Castelo Branco

 

Num dos segmentos da instalação fílmica É Noite na América [2022] seguimos a captura e o tratamento médico de um graxaim-do-mato no jardim zoológico de Brasília. Ouve-se que o animal chegou prostrado devido a uma doença chamada cinomose, uma patologia que gera desorientação e afastamento da matilha. Trata-se de uma perturbação transmitida pelos humanos aos animais selvagens quando estes se abeiram de fazendas e de cidades. A veterinária, cujos gestos vamos seguindo ao longo desta sequência, profere que os animais que ali chegam normalmente não conseguem regressar às dinâmicas do seu habitat natural, transformando-se assim em “refugos da natureza”: aquilo que sobra, que é posto de lado. As imagens que compõe este segmento por vezes deslocam-se para grandes planos dos olhos do graxaim-do-mato que, num formato semelhante ao da própria lente que o filma, nos observa de forma inversa. Mais tarde, uma coruja enfrenta também directamente a câmara, desafiando longamente o olhar do visitante.

A ideia de que os animais nos observam, e que existe uma essencialidade nesse olhar, está no âmago de É Noite na América, o título que dá nome à instalação fílmica de Ana Vaz, curadoria de Daniel Ribas, na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto. A obra foi comissariada e produzida pela Fondazione In Between Art Film, tendo sido também co-produzida pela Pivô Arte e Pesquisa e a Spectre Productions. Através de diferentes formatos instalativos, É Noite na América foi apresentada na exposição Travaux en Cours1 no Jeu de Paume, em Paris; encontra-se neste momento na exposição colectiva Penumbra2, inserida no contexto da 59º Bienal de Veneza; e, estreou numa versão em canal único no 75º Festival de Cinema de Locarno3. É Noite na América procura desmantelar os nossos modos de ver através do olhar dos outros animais, que aqui não são apenas “objecto” do nosso olhar, mas também nos olham. A obra confronta assim as doenças e os refugos que a humanidade gera através do seu impacto nocivo sobre a terra. Aqui, a experiência de se ver visto por outro animal torna-se o lugar de onde pode emergir uma nova forma de pensar: o olhar deixa de ser uma mera atitude ou ponto-de-vista para nos circunscrever e constituir enquanto seres observados — e, sobretudo, enquanto seres confrontados com as nossas contínuas práticas de afastamento em relação à terra, aos vínculos ecológicos e aos outros animais.

Definindo-se como um "eco-terror" que confronta aquilo que a cidade arruína e as suas ideologias de controlo e de conservação, É Noite na América aborda a forma como diversas espécies, que habitam nas margens de Brasília, regressam a ela devido à crescente urbanização e poluição. As imagens de animais em cativeiro ou a vaguear pelas estradas citadinas encontram-se aqui com imagens elipticamente implícitas da acção de biólogos, de veterinárias e da polícia ambiental, filmados sob uma ambiência soturna e enigmática, que é evidenciada pelo acompanhamento sonoro da composição musical de Guilherme Vaz. Ouvem-se igualmente por vezes sons estranhos vindos da natureza — que relevam um contexto urbano que é sonora e visualmente desconhecido e inquietante. Por outro lado, esta instalação fílmica é apresentada em três ecrãs unidos e inclinados para a plateia, cuja dimensão vai quase praticamente do chão ao tecto, envolvendo de forma ampla e imersiva o campo de visão do espectador. Esta obra é ainda acompanhada por uma projecção de slides numa sala inicial, onde se vêm imagens pertencentes ao arquivo fotográfico do Jardim Zoológico de Brasília. 

 

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Segundo Jacques Derrida [2006], a consciência do limite do humano emerge justamente diante do olhar dos outros animais: “o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar” [Derrida, 2002, 31]. A noção de humanidade, que está na base do pensamento ocidental moderno e do seu paradigma de racionalidade instrumental configurou-se dentro de uma ideia de antropocentrismo: do grego “anthropos” [homem] e do latim “centrum” [centro], esta noção situa o ser humano como o fim segundo o qual tudo é ordenado e subordinado. Esta perspectiva conformou portanto uma construção histórico-cultural que separou o humano da restante natureza: “a máquina antropológica do humanismo é um dispositivo irónico que verifica a ausência de uma natureza própria para Homo — mantendo-o suspenso entre uma natureza celeste e uma terrena, entre o animal e o humano — e, por conseguinte, o seu ser sempre menos e mais do que si próprio” [Agamben, 2017, 51]. A espécie humana existe no interior de uma pluralidade de seres, mas define-se como ser único em relação a estes, desenvolvendo frequentemente sobre eles uma "violência industrial, científica, técnica não será suportável por muito tempo, de fato ou de direito" [Derrida, 2004, 82-83]. 

A partir da ideia de que no zoológico o visitante nunca pode encontrar verdadeiramente o olhar do animal, John Berger [1980] afirma que: “the zoos cannot but disappoint. The public purpose of zoos is to offer visitors the opportunity of looking at animals. Yet nowhere in a zoo can a stranger encounter the look of the animal. At the most, the animal’s gaze flickers and passes on. They look sideways. They look blindly beyond. They scan mechanically. They have been immunized to encounter, because nothing can any more occupy a central place in their attention” [Berger, 2009, 11]. O visitante no zoológico olha assim para um ser que está momentaneamente impedido de olhar de volta. Segundo Berger, o surgimento dos zoológicos dentro da sociedade ocidental da 2º metade do século XIX marcou o início da separação ontológica entre os humanos e os outros animais. Partindo da fundação de três instituições — o Jardin des Plantes [1793] em Paris, o Zoológico de Londes [1828] e o Zoológico de Berlim [1844] —, Berger assevera que estes locais foram uma confirmação do poder colonial moderno: o advento destes locais deu-se no enquadramento do alargamento urbano e industrial europeu, e, também, representou, literal e simbolicamente, a conquista de países exóticos pelo imperialismo expansionista. Por outro lado, as grades, as gaiolas, as cercas e os tanques nos zoológicos são limites que permitem um acesso visual constante do animal, definindo um enquadramento que separa a animalidade da humanidade. Estes limites geram porém uma proximidade ambígua: o carácter paradoxal de uma aproximação distante entre humanos e animais.

 

Neste sentido, É Noite na América parece justamente contrariar este favorecimento do observador sobre o observado, lembrando-nos que o olhar é uma posição de poder, e, que, neste caso, o poder também pode estar do lado dos outros animais. 

 

 

Esta perspectiva histórica e visual presente nas ideias de Berger parece assomar de alguma forma na instalação fílmica de Ana Vaz, mas também na projecção de slides que a acompanha, onde o ritmo ressaltado e regular do som da mecânica do carrossel, que selecciona e descarta cada imagem, funciona como uma metonímia sonora da necessidade de um outro olhar face à nossa relação com os outros animais. Se estes slides nos lembram como o zoológico apresentou-se historicamente como um arquivo científico, um local onde as espécies eram colectadas, preservadas e catalogadas, o seu som cortante, que ecoa e se projecta sonoramente sobre a instalação filmica, relembra essa mesma possivel violência retratada num eventual retorno dos animais às cidades. Por outro lado, as filmagens da cidade ao anoitecer evocam o próprio título da instalação que remete à noite americana [também conhecida por day for night, uma técnica cinematográfica que simula uma cena nocturna durante a luz do dia]. Os animais assomam aqui por vezes fantasmagoricamente, sublinhando assim o poder da noite: a obscuridade que cria outras potências, um espaço de redução visibilidade que mostra outras maneiras de ver. É uma obra que opera assim num regime que não é orientado por luzes, mas pela penumbra e enigma. 

A construção de Brasilia — com o desígnio de ser a capital moderna do Brasil no final dos anos 1950 — alicerçou-se no propósito da fundação de uma cidade ideal que reflectisse uma nova sociedade. Esta cidade detém portanto um traço definidor que a tende naturalmente para a utopia: do grego u-tópos [de u — não, e, tópos — lugar]: a utopia é um “não lugar”, que nega o que o precede, fixando-se no que poderá vir. Nas palavras do curador Daniel Ribas, este projecto de nação nunca cumprido inscreve portanto uma “história que oculta a memória de esquecidos e precários; uma história de poder das elites sobre um povo em nome do qual se erigia uma cidade”4. A ideia de "não-lugar" adquire assim uma conotação que também remete a uma distopia política contemporânea [onde ecoam as falências do passado], e em que estes propósitos não-cumpridos são directamente representados na instalação pelos protestos dos sons de tachos que se ouvem no planalto da cidade.

Brasília tem um temperamento intrinsecamente cinematográfico, uma vez que foi, pelo menos até então, a “única cidade no mundo a ser filmada no momento mesmo de ser construída [...] foi partejada pelo cinema” [Carvalho, 2002, 315]. Numa perspectiva que evoca justamente este não-lugar, É Noite na América filma Brasília através de película de 16mm fora de prazo, dando-lhe um semblante soturno, que é também enfatizado por certas imagens fora de foco ou pela presença constante de chuva e trovoada. Se nos zoológicos a visão é sempre igual à de “an image out of focus” [Berger, 2002, 21], este filme também explora as limitações do ver através destas dinâmicas taciturnas que disjuntam o que vemos e o que sabemos. Esta resistência visual revê-se igualmente numa filmagem que aparenta ser sempre feita na redução de visibilidade do começo da noite, e que sublinha o poder do cinema enquanto testemunho onírico e do real. A câmara que por vezes segue pela estrada à procura de algo que não se compreende dá também lugar ocasionalmente a uma câmara que inquietantemente assume um movimento desnorteado, em vertigem, talvez expressando a violência anunciada nesta trama de eco-terror; ou, assumindo mesmo a perspectiva do animal desorientado face à imposição da violência citadina. 

 

 

A forma como os animais são representados é porém interiormente afectada por relações de poder que sintomatizam a forma como os animais são tratados numa sociedade: “changes that would take place in the treatment of animals relied not merely on philosophical, religious or political stances but the way in which animals were literally and metaphorically seen. The very act of seeing became crucial in the formation of the modern person” [Kean, 1998, 26-27]. Neste contexto, a forma como as imagens são distribuídas pelos três ecrãs — criando imagens em espelho, ou, mostrando imagens diferentes em cada um deles — pressupõe a adulteração desse espaço interior e abstracto que foi ocupado pela perspectiva artificial, e que estabeleceu uma visão do mundo e uma certa concepção do visível intrinsecamente antroprocêntrica. Se, como alguns autores afirmam, o advento da fotografia e do cinema acentuou o factor ilusionista fundado pela perspectiva, em É Noite na América este descentramento do olho antropomórfico pela ordenação tripartida dos ecrãs é simbólica desta desconstrução subversiva do olhar humano pelo centramento no olhar dos outros animais. 

Através da possibilidade de um novo encontro com os outros animais a partir do olhar, É Noite na América enceta uma compreensão mais compartilhada de um mundo entre seres. Se “l’absence est absolue, mais la présence a ses degrés” [Genette, 1972, 253], esta instalação propõe uma outra distribuição da presença e do visível: a da capacidade de ser visto; e, consequentemente, poder afectar através desse olhar.

 

 

 

Ana Vaz

 

 

Escola das Artes | Universidade Católica

 

 

 

 

 

 

Sara Castelo Branco [1989, Porto] é doutorada em Arts et Sciences d’Art e Ciências da Comunicação pela Université Paris 1 — Panthéon Sorbonne [Paris] e Universidade Nova de Lisboa [Lisboa], enquanto bolseira da FCT. Investigadora do ICNOVA — Cultura, Mediação e Artes [FCSH-UNL]. Em 

2022, criou o Solarity Prospects — um projecto reflexivo e participativo, composto por uma série de eventos que envolvem plataformas para discussões descentralizadas sobre políticas e dinâmicas ligadas ao sol. Este projecto vai ter uma primeira apresentação na ACUD Macht Neu [Berlim] em 2023. Tem vindo a fazer a curadoria de exposições e ciclos de cinema experimental como Back of My Hand [Carpintarias São Lázaro, Lisboa, 2022], Blinding Light [CRIPTA 474, Turim, 2021], To Film 

With One Hand My Other Hand [Galeria Zé dos Bois, Lisboa, 2021], Under the Ground [Galerias Municipais de Lisboa, Lisboa, 2020] ou Out Off Nature [Arsenal — Institut für Film und Videokunst, Berlim, 2019]. Tem um mestrado em Estudos Artísticos — Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e uma licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura pela Universidade Lusófona do Porto [ULP]. Na área da investigação e da crítica sobre arte contemporânea portuguesa contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas e catálogos.

 

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

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Ana Vaz, É Noite na América, vistas de exposição. Curadoria de Daniel Ribas, Escola das Artes | Universidade Católica Portuguesa, Porto. Fotografia: Rita Queiroz. Cortesia Escola das Artes | Universidade Católica Portuguesa.

 


 

 

Bibliografia:

AGAMBEN, Giorgio [2017]. O aberto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 

BERGER, John [2009]. About Looking. London: Bloomsbury Publishing.

DERRIDA, Jacques [2002]. O animal que logo sou [a seguir]. São Paulo: Editora UNESP. 

DERRIDA, Jacques, ROUDINESCO, Elisabeth [2004]. De que Amanhã...Diálogos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

CARVALHO, Vladimir [2002]. Cinema Candango — Matéria de Jornal. Brasília: Cinememória. 

GENETTE, Gérard [1972]. Figures III. Paris: Seuil.

KEAN, Hilda [1998]. Animal Rights: Political and Social Change in Britain since 1800. London: Reakyion Books.

 

 

Notas:

1 Exposição Travaux en Cours, 14 de Setembro 2021 — 13 de Fevereiro 2022, no Jeu de Paume, em Paris.

2 Exposição Penumbra, até 27 de Novembro, inserida no contexto da 59º Bienal de Veneza 2022, numa curadoria da Fondazione In Between Art Film.

3 75º edição do Festival de Cinema de Locarno, de 3 a 13 de Agosto 2022.

4 Folha-de-sala da exposição.

 

 

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