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Cristina Ataíde: Dar Corpo ao Vazio 

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José Marmeleira

 

 

Dar Corpo ao Vazio, exposição de Cristina Ataíde no Museu Coleção Berardo é um encontro com um universo visual, estético e conceptual. Não se trata de uma antológica ou de uma retrospetiva, antes uma seleção de obras, uma constelação inédita de ideias e formas. Um caminho que antes não existia e que a artista e o curador Sérgio Fazenda Rodrigues deixaram ao espectador. Um caminho feito de peças de tempos diferentes, numa profusão de linguagens. Desenho, escultura, instalação, fotografia, vídeo, intervenção site specific. Palavras e imagens.

 

Pelo espaço, assomam-se elementos. As noções de viagem e paisagem, a experiência do e no espaço, um entendimento expandido da geografia. E certas dualidades: corpo e vazio, positivo e negativo, físico e espiritual. A paisagem aparece na instalação Montanha Suspensa, na série M (2008) ou em Montanha com Lagoa ao Meio (2020); a viagem no vídeo Rio Negro (2010) ou na escultura (Im)permanências (2003); a dialéctica negativo e positivo numa intervenção site specific na parede, nas esculturas datadas de 1994, em Mountain House #12, o corpo e vazio na série Ficus (2004).

Alguns destes elementos, que em certa medida enredam a exposição, percorrem obras diferentes. A tal perceção não será alheia ao facto das viagens se constituírem enquanto processos do próprio trabalho. Cristina Ataíde imprime à obra uma experiência física sensorial retirada de percursos por geografias, lugares, sítios. Dito de outro modo, as suas esculturas, vídeos, instalações e fotografias só existem depois de uma deslocação que é física, espacial, extrovertida, mas também mental, reflexiva, introspectiva.

Viajar, pensar e fazer são os verbos principais do seu trabalho.

Introduzidos, brevemente, os elementos que assinalam um percurso por Dar Corpo ao Vazio, talvez seja pertinente, cartografar outros, porventura menos prováveis ou, apenas, mais discretos. Apresentam-se, neste texto, alguns: perceção e Ilusão, perecibilidade, autorrepresentação ou miniatura. A ilusão da escala, do material, da imagem é uma experiência que se repete em vários momentos. Ainda no átrio do Museu Coleção Berardo, com uma escultura longitudinal de madeira, uma linha côncava pintada com tinta vermelha. Sustentada num equilíbrio frágil, sobre o chão, esta obra recente (2020) lança um repto à perceção cromática e háptica, bem como ao desejo de interpretação.

A ideia de ilusão repetir-se-á noutros trabalhos. De leveza em Mountain House (2018), de bidimensionalidade na intervenção na parede — remetendo para uma experiência cinemática — do movimento e do pictórico na série de imagens fotográficas Auto-retrato (2006) ou na série Sem título de 2020. Esta ideia de ilusão não se petrifica em meras situações lúdicas, isoladas na exposição. Convida o visitante a percorrer o espaço, a perceber o modo como este, com as suas diferentes cadências e grandezas, lhe vai solicitando aproximações e deslocações distintas. Por exemplo, note-se a experiência visual e conceptual que um trabalho como Montanha Suspensa (2012) proporciona. O seu desenho delicado, que envolve o visitante num panorama, representa montanhas, algumas que a artista visitou, outras que gostaria de visitar. Mas, demorado o olhar sobre as paisagens rochosas, estas transformam-se. Passam a ser, sobretudo, desenhos a lápis, traços de cor.

A questão da perceção e da ilusão também se coloca em Montanha com Lagoa ao meio #5 (2020). Discernimos, nos desenhos feitos imagens, a ideia de uma paisagem, mas, também, lemos palavras. A presença da palavra — que se manifesta noutros trabalhos de Cristina Ataíde — parece por vezes, insólita, excessiva até no modo como ocupa as superfícies. É como se a artista procurasse marcar o tempo, afastar a contemplação, dizer qualquer coisa sem cair na armadilha do comentário. Articuladas com a experiência da ilusão, é pertinente pensar na possibilidade de outras dicotomias: sombra e luz, fundo e plano, pigmento e tinta. Note-se a série Frágil (2020) composta por subtis monocromos. As suas superfícies vibram com as diferentes tonalidades do pigmento, mas se as observamos mais detalhadamente, reparamos que ocultam algo: uma luz a que não temos acesso completo, que brilha oblíqua, do outro lado.

A noção de fragilidade, implícita neste trabalho, transfigura-se na noção de perecibilidade, agora extensível aos estados do próprio ser humano, à experiência humana da memória, das emoções. O sentido é metafórico em (Im)permanências (2003) e abeira-se da autorrepresentação na série Auto-retrato (2006), em que podemos ver sobre imagens fotográficas da superfície de água, frases alusivas à transitoriedade e à resistência renovada das coisas, ao seu contínuo devir (o pó das coisas e as coisas feitas em pó). Vem à memória a série Still Water (The River Thames, for Example) de Roni Horn, mas Cristina Ataíde, ao contrário da artista americana, não faz o retrato de um rio, não evoca referências históricas e literárias. O que pretende sublinhar é o efeito pictórico de uma deslocação, de uma passagem, permitindo que meditemos no seu jogo de cores, espirais, metamorfoses. Refira-se, a propósito, o vídeo Rio Negro (2020). A artista filmou, durante 16 minutos, a superfície do rio do Amazonas, tocada pelo curso de uma canoa. Vemos a água e o céu, a primeira a refletir o segundo, este a pintar a superfície do rio que, como a montanha, deixa de ser rio, para se transformar noutra coisas: neste caso, uma imagem em movimento.

Mencionou-se, em cima, a noção de miniatura. Talvez seja uma questão improvável, demasiado periférica, mas, com efeito, ela surge em certos trabalhos de Cristina Ataíde. De um modo quase desapercebido em Mountain House (2018), com um recorte mais claro na série M (2008) e com uma dobra poética, quase indiscernível em todas Todas as Montanhas do Mundo (2008). São peças que recriam paisagens e lugares, mas das quais estão ausentes a nostalgia, o desejo de domesticação ou de controlo. A miniatura no trabalho de Cristina Ataíde, e nesta exposição em particular, é um espaço onde as coisas acontecem: a relação com a luz, a cor, a sombra, o movimento, a paisagem, a gravidade. Que nos transportam do real e para o real, num percurso que a artista constrói das experiências do seu corpo e do seu espírito. (Im)permanências, o barco de madeira que, coberto de pigmento, separa e aproxima as obras da exposição é disso exemplar.

 

Cristina Ataíde

Museu Coleção Berardo

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Cristina Ataíde, Dar Corpo ao Vazio. Vistas gerais da exposição no Museu Coleção Berardo. Fotos: Silvio Santana. Cortesia da artista.

 

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