23 / 25

Colégio das Artes da Universidade de Coimbra

Motel Coimbra 3 - Ueliton Santana - João Fiadeiro - _CA_©2016VitorGarcia.jpeg
José Marmeleira

 

O Colégio das Artes define-se como uma unidade orgânica da Universidade de Coimbra que opera no campo da arte contemporânea, na sua relação com a arquitectura, o cinema e as artes performativas numa óptica transdisciplinar. Com uma perspectiva transversal aos vários domínios do saber que têm vindo a dedicar-se ao estudo e à produção artísticas, o Colégio das Artes situa-se na confluência entre a investigação científica, a produção de saber e a própria criação, numa perspectiva de retroprospecção, isto é, perspectivando o presente e o futuro das práticas artísticas a partir de um conhecimento da sua história, das questões estéticas e da reflexão teórica e crítica que suscitaram. O Colégio das Artes procura constituir-se como uma instituição que, operando na área do conhecimento sobre as práticas artísticas, a sua investigação e mesmo a sua prática criativa, desenvolve várias formas de ensino, formação e investigação numa estrutura funcional multifacetada, de acordo com os princípios de Bolonha.

Nesta entrevista, conduzida por José Marmeleira para a Contemporânea, procurou-se entender os fundamentos que moldam estas premissas.

 

José Marmeleira (JM): Sob que princípios e fins nasceu o Colégio das Artes da Universidade Coimbra?

 

António Olaio (AO): O Colégio das Artes (CA) da Universidade de Coimbra foi criado como uma unidade orgânica vocacionada para a arte, numa relação interdisciplinar. Desde logo, seria composto exclusivamente de estudos pós-graduados. No âmbito do doutoramento, para pessoas com cursos no campo da arte contemporânea.  Criou-se também um mestrado em estudos curatoriais, cumprindo-se a ideia de estudos avançados no campo da arte contemporânea. Portanto, concebia-se um lugar que acolhesse os artistas, os arquitetos, os designers, os músicos, os realizadores de cinema... A arte seria um espaço de charneira em que diferentes saberes se pudessem relacionar. Para nós, professores, também era uma forma de viver a universidade e de refletir sobre o próprio conceito de universidade. Os cursos foram criados em 2007 por uma comissão de instalação do colégio, do qual fizeram parte o Abílio Hernandez, o Delfim Sardo, o Jorge Figueira e eu. E concretizou-se a ideia de fazer do C.A. um pólo de desafio para a arte contemporânea, além da sua dimensão académica. Não se queria um lugar estanque. Daí o grande espaço para exposições de que dispõe.

 

Pedro Pousada (PP): Lembro que a Universidade de Coimbra permaneceu, mesmo depois da criação das Academias de Belas Artes de Lisboa e do Porto, uma instituição sem ensino artístico formal. A decisão de criar o CA surge numa conjuntura histórica e ideológica sobre o ensino artístico avançado, quando se começa a perceber, no final do século XX, a importância das relações da academia com as práticas artísticas contemporâneas. O Colégio nasce neste contexto, bem como os debates que fomos tendo. Havia a necessidade de aproximar a grande oferta epistemológica e cultural da Universidade de Coimbra à realidade artística contemporânea. Tornar essa vizinhança mais tangente e ativa. Esse é um aspeto a relevar. Era importante corrigir um erro histórico dos poderes públicos, quando criaram uma Academia de Belas Artes em Lisboa e uma Escola Superior de Belas-Artes no Porto e se esqueceram de criar uma instituição análoga no centro do país, o que teria permitido repensar, ao longo do século XX, a relação desta zona com a cultura contemporânea. Havia uma escassez e de algum modo, agora, há esta abundância...

 

JM: Em que sentido se refere a uma abundância?

 

PP: No sentido em que o CA é um espaço de debate. Há uma comunidade de artistas, não só portugueses, mas oriundos de outras partes do mundo, em particular do Brasil, que não se teriam instalado em Coimbra, não se teriam relacionado com os centros de arte que existem na cidade, com os acontecimentos e as iniciativas que existem em Coimbra, bem como no resto do país, se não fosse o CA. Não somos apenas uma unidade orgânica que está afirmada numa relação institucional com o ensino europeu e artístico, mas beneficiamos de uma porosidade, de uma proximidade com as dinâmicas que se produzem no contexto de Coimbra e do resto do país.

 

AO: Por outro lado, o CA provavelmente não seria o que é hoje se não tivesse existido um Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), que nasceu na Universidade de Coimbra, com um sentido não-académico, de reflexão, na procura de outros caminhos.

 

JM: Esse estreitar da relação entre a academia e os artistas, que precisamente impede que o CA se torne um lugar estanque, era um elemento que considerassem em falta ou em défice noutras instituições do ensino artístico?

 

AO:  O CA não nasceu por comparação com outras faculdades. A diferença não é em si uma qualidade. Podemos ser diferentes e péssimos. Pareceu-me mais interessante pensar a especificidade da Universidade de Coimbra como motivação para fazer arte, e não enquanto fim em sentido estrito. A nossa motivação não partiu do que acontecia nas Faculdades de Belas-Artes de Lisboa ou do Porto. Quisemos, sim, acrescentar alguma coisa e na prática é o que tem acontecido. Temos estabelecido ótimas relações com essas faculdades, mas somos outra coisa.

 

Ana Rito (AR): Estou há quatro anos no Colégio, não tenho a vivência do António Olaio e do Pedro Pousada, mas da minha posição, que é retrospetiva, não se tratou de apontar um vazio aqui ou ali. Procurou-se, antes, construir um recheio num sítio muito específico que é a Universidade de Coimbra. Como o António mencionou, o CAPC é muito importante.  Aparece em 1958, trazendo para a Universidade, mas fora dos seus edifícios, uma prática, uma experiência e uma teorização das práticas artísticas e curatoriais. O Colégio não será herdeiro do CAPC, mas é um herdeiro desse espírito, dessa vontade de inserir na academia uma espécie de comunidade que a vai pensar. Há uns meses, numa conversa, o António disse uma coisa muitíssimo certeira que passo a citar. “Não há uma vontade de criar uma estirpe nova, o artista-investigador. O artista é um investigador”. Mas de que forma essa investigação, tão característica e plural, se pode manifestar no seio da academia? Como é que a academia insere uma investigação que é híbrida, indefinível? Se calhar, o termo investigação talvez não seja o indicado. Talvez exista outro termo, por encontrar. Penso que essa procura é o motor do nosso investimento enquanto colégio e pessoas. Este início do espaço académico alicerçado no espaço expositivo é muito relevante. No fundo, estamos num espaço ensaístico, numa co-construção com os nossos alunos, os docentes, toda a comunidade que não é só a académica, mas que inclui todas as redes culturais que estão connosco.

 

PP: O Colégio não tem a pretensão de salientar uma diferença, a sua experiência e a sua história são recentes. Trata-se de um espaço pedagógico de ensino formal, mas também um espaço de experimentação com o laboratório de curadoria, com as exposições que se organizam, com o doutoramento, em que os alunos interagem e problematizam conteúdos, com as conferências, em que os artistas são convidados a falar sobre as suas práticas. É uma unidade orgânica que, pela sua leveza estrutural, acaba por ter outras facilidades menos presentes em estruturas mais pesadas e históricas. Trata-se de uma perspetiva diferente sobre como podemos demonstrar que a prática artística é uma prática de investigação, que o pensamento pode ser ação e a prática artística é pensamento em ação. Estes dois campos entrecruzam-se, ligam-se também, através do que propomos pedagogica e cientificamente no CA. Procuramos, também, superar certos clichés e estereótipos sobre a arte e os artistas na academia, tornar mais visível o que é a pluralidade da arte contemporânea, que não é uma realidade absolutamente conhecida e dominada pela academia. O Colégio pode ser um lugar onde se vence o preconceito em relação a muitas das coisas que acontecem e se pensam na arte contemporânea. Os artistas também têm perspetivas sobre a cultura, a política, o corpo, a identidade, o saber, o conhecimento. São contribuintes ativos para a sua problematização, e não agentes passivos, apenas produtores de conteúdos visuais, de situações de carácter multimédia. Fazem um trabalho sério, preparado, pensado de forma continuada. Isso é muito importante. O estatuto social e cultural do artista não se encontra absolutamente consensualizado.

 

JM: Quando te referes ao facto de os artistas terem perspetivas, estamos a falar também dos artistas enquanto sujeitos que intervém civicamente?

 

PP: Sim ou não, depende da sua vontade. Trata-se de tornar a universidade consciente do que é a condição artística na contemporaneidade, porque, e esta é a minha leitura, há uma certa dificuldade em lidar com a arte contemporânea. Isso não é invulgar acontecer, nomeadamente quando dizemos que somos professores no Colégio ou que fazemos investigação em arte. Nestes onze anos, demonstramos a importância que tem a arte, a presença da arte e da arte contemporânea e dos seus agentes na academia e como essa relação é fundamental. E que os artistas são seres pensantes, seres que reflectem. Há certas formas de leitura que se banalizaram tanto na nossa sociedade...

 

AR: Sobre a questão da intervenção cívica que os artistas podem ou não mostrar, isso leva-nos à importância da aparente irrelevância da arte. É interessante pensar a palavra ensaio neste contexto...

 

JM: O ensaio é justamente um conceito e prática que certas áreas do conhecimento, em especial o científico, continuam a observar de forma desconfiada....

 

AO: A Universidade de Coimbra, considerada muito conservadora, tem recebido as iniciativas do Colégio com um grande entusiasmo, não temos sido obrigados a certos protocolos de investigação, o que nos dá espaço para fazermos uma coisa fundamental que é a produção cultural. Uma tese de doutoramento, na complexidade da arte, tem que ter um carácter ensaístico muito grande. Talvez a universidade, por rigor científico, tenha que mudar a palavra tese para outra palavra qualquer, que permita uma maior utilização da possibilidade do pensamento.

 

AR: Gostava de reforçar a ideia do ensaio. Quando a universidade surge, enquanto estrutura e ideia, operava sobre a égide da criatividade, da inventividade, da procura do novo. Penso que o CA procura esse voltar originário, estabelecer-se na condição de pólo de criatividade, inventividade e, no fundo, de liberdade. Por outro lado, enquanto nas outras universidades se verifica uma distinção clara entre temas no doutoramento, ou seja, há uma especificidade, o Colégio só tem um doutoramento em arte contemporânea, no qual acolhe artistas, corégrafos, designers, museólogos, curadores, arquitetos. Todos aqueles que têm um trabalho autoral ou que se debruçam sobre a teoria artística e estética, estão no mesmo momento, na mesma altura a pensar as mesmas questões. Isso vai fazer com que se verifique essa pluralidade. Acreditamos num ensino de proximidade, ajustando o nosso programa curricular ao que temos à nossa frente, procurando ir ao encontro dos vários universos. Há um exercício plural da nossa parte e de todo o conjunto de alunos que, de alguma maneira, vai traduzir-se em algo bastante ambíguo, híbrido, com uma complexidade que, se estivesse tudo engavetado, seria menos possível.

 

JM: É nesse sentido que na apresentação disponível no Colégio das Artes, a ótica transdisciplinar é desde logo mencionada?

 

AR: Não só da parte do currículo e do nosso programa, mas também da parte de quem se inscreve no nosso doutoramento. No ano passado, tivemos um diretor artístico, um coreógrafo com uma carreira notável, uma curadora de um museu nacional, um curador brasileiro. É muito interessante, também, o carácter transgeracional. Temos pessoas com carreiras extremamente vincadas e alunos mais novos.

 

 

 

JM: O que procuram no doutoramento os alunos com carreiras mais vincadas?

 

AR: Respondo com uma resposta que me foi dada: procuram um lugar laboratorial, um espaço livre onde possam criar uma série situações, de tempos, de lugares. Quem se inscreve no colégio procura algo com estas características, um espaço de pensamento.

 

PP: Lembro uma epístola do Immanuel Kant sobre a ideia de “ousar saber”. O filósofo escreve que “pensamos bem sozinhos, mas pensamos melhor com os outros”. Para quem tem a experiência prolongada do doutoramento, é muito importante que esse pensar com os outros se faça. O doutoramento é um lugar de respiração para quem já tem práticas artísticas e curatoriais muito consolidadas e definidas, mas que precisa de encontrar uma distância em relação ao seu lugar de conforto. Precisa de outros leitores, intérpretes, interlocutores para pensar de forma mais sistematizada, para iniciar um auto-crítica da sua prática. O desenvolvimento da tese é também essa premissa, capaz de olhar de uma forma crítica e inquiridora aquilo que faz. Todo o século XX tenta superar o mito da originalidade, do raro, do precioso, aquilo que foi feito e só se fará uma única vez.  Na academia, uma tese de doutoramento parte de uma proposição original, mas, curiosamente, na investigação essa ideia de originalidade não é assim tão palpável. Corresponde a um saber que se vai construindo pela problematização dos saberes anteriores e de experiências anteriores, questionadas e testadas. No caso do C.A. e no seu doutoramento, a investigação assenta na capacidade repensar a verdade, o lugar que o verdadeiro e o falso ocupam na experiência artística e cultural. Nas artes, as coisas podem ser verdadeiras e falsas em simultâneo, o que seria inadmissível para a ciência. Como professor do doutoramento, sinto-me privilegiado por me poder confrontar com saberes, experiências e pesquisas que estão em desenvolvimento sobre assuntos que eu, sozinho, não iria procurar, ou aos quais não estaria atento.

 

JM: De que modo se concluem os doutoramentos em arte contemporânea? Em teses ou em obras não teóricas? Ou nas duas formas?

 

AO: O doutoramento não tem de ser apresentado completamente numa publicação, que é a tese de doutoramento, mas na prática é o que temos feito. Quando entrou em vigor a possibilidade de os alunos fazerem doutoramento com prática, e quando as faculdades de belas-artes ainda se procuravam adaptar a essa possibilidade, o CA terá sido a primeiro a aceitar a componente prática, mas sempre documentada e mediada pela tese, pelo objecto-livro. Não tem havido uma exposição paralela que o júri vai ver. O objeto-livro, o documento, com a sua materialidade, é, digamos, o modelo. Motivamos os doutorandos a documentarem as suas práticas na tese, procurando tornar significante o suporte da própria tese. Por outro lado, a obra não é uma ilustração da tese. Pode-se escrever a partir ou sobre a obra, mas relacionando os textos com as imagens e as imagens entre elas. Como artistas, estamos habituados a percecionar as coisas postas em jogo numa obra de arte, isso faz parte da nossa atividade. A tese também não é a mera componente escrita de uma exposição. Tudo está em jogo. Pode parecer conservador insistir na tese neste formato, mas na prática não é. Para alguns doutorandos, pode ser uma oportunidade, um desafio para fazer coisas que, provavelmente, não fariam noutro formato.

 

JM: No Colégio das Artes, a curadoria surge como saber e prática de um mestrado de estudos curatoriais e exercício e experiência de um laboratório. Como se distingue a curadoria nestes dois planos?

 

AR: Não há uma distinção. O currículo do mestrado nasce associado a um espaço de ensaio, chamado de laboratório de curadoria e este laboratório serve exatamente para a experiência, para o erro, com projetos concretos de curadoria. Para lá do espaço programático do curso, tem-se verificado uma relação muito mais agilizada, quer entre o mestrado e o curso do doutoramento, quer entre o mestrado e, por exemplo, a Bienal de Arte Contemporânea Anozero e o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Os alunos tiveram a oportunidade de realizar estágios nestes espaços, mas desde 2019 têm realizado coisas concretas, projetos curatoriais, projetos de ativação. Trata-se de os tornar em agentes mais autorais e efetivos da Bienal. Dou o exemplo da Bienal, mas estamos a desenhar parecerias com outras instituições e isso faz com que o laboratório se afirme cada vez mais, dentro e fora do colégio como um espaço importante de pensamento. Na articulação entre o mestrado e o doutoramento, trata-se de, precisamente, trazer a prática curatorial para a prática investigativa.

 

JM: Podem ser consideradas duas práticas diferentes?

 

AR: Entendo o gesto curatorial como gesto investigativo. Costumo dizer que a prática tem uma teoria e a teoria tem uma prática. No fundo, o que faço, em workshops com o Pedro Pousada, e em metodologias de investigação, é criar dinâmicas muito laboratoriais de relação, investigação, compromisso, partilha e espaço para que esses gestos originem outros. O gesto curatorial deve ser transposicional, transtemporal, de uma natureza trans, logo plural. A possibilidade ou a natureza desse gesto é transferida para práticas e protocolos que desenhei em formato workshop, para estabelecer dinâmicas investigativas em tempo real, em direto, com os alunos e os docentes. Tem havido um grande impacto na forma com os próprios alunos dos estudos curatoriais e do doutoramento desenvolvem as suas práticas de investigação e pensamento. No fundo, trata-se fundir práticas e estabelecer protolocos de aproximação e cruzamento.  Sendo que nos mestrados em estudos curatoriais existe o momento em que os estudantes executam um projecto curatorial que se realiza no espaço do laboratório, no Colégio. Neste ano, a novidade é que esse projecto curatorial dos nossos alunos vai ser apresentado na Bienal e no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.

 

JM: O Colégio oferece ferramentas para o exercício da curadoria aos alunos dos estudos curatoriais?

 

AR: No nosso programa, são estabelecidas, permitidas e construídas situações de aprendizagem direta, com os agentes, artistas, curadores, professores, em tempo real, com as coisas a acontecer. Penso que vão permitir a esses alunos ter uma perspetiva muito concreta, ter uma capacidade de articulação de uma série de saberes, de conceitos, de dinâmicas que os podem ajudar — o que tem acontecido — a desenvolver os seus próprios projetos autorais ou fazer outro tipo de trabalho. Muitos deles têm saído para centros de arte como assistentes de curadoria, de artistas, escrevem para revistas.

 

JM: Que intercâmbios e parcerias tem o Colégio das Artes vindo a estabelecer com instituições internacionais?

 

AR: Há um canal Erasmus. Temos estabelecido relações com outras instituições, em particular com a Academia de Karlsruhe, na Alemanha. Neste momento, estamos a trabalhar numa relação com alguns alunos do doutoramento, no âmbito de contactos com outras universidade e galerias na Europa. Depois, há artistas e teóricos que têm colaborado nas várias publicações de Colégio e em vários seminários. E ainda neste ano, no âmbito da Bienal, talvez consigamos ter uma parceria com algumas instituições internacionais.

 

JM: O Colégio das Artes privilegia muito, nos seus espaços, a realização de exposições.  O que traz esta componente expositiva à atividade do Colégio?

 

AO: Traz a possibilidade de lançar reptos aos artistas, e de outros artistas lançarem repto a outros artistas. Traz a possibilidade de convidar curadores que não são do colégio para desenharem as suas exposições. Por outro lado, deu-nos a possibilidade de organizarmos Liberdade, em 2014, exposição em colaboração com o Centro de Documentação do 25 de Abril, que incluiu cartazes do período pós-revolucionário e obras em que os artistas trabalharam de forma expandida a ideia de liberdade. Ou a exposição Rrevolução, em 2017, sobre os 100 anos da Revolução Russa de Outubro de 1917. Ou a colaboração com o Museu Nacional de Arte Antiga que resultou no livro Colégio das Artes em directo do Museu de Arte Antiga, ou a nova edição de Os Lusíadas com o design gráfico do João Bicker. Estes jogos que nós estabelecemos com este espaço de produção permitiu fazer acontecer coisas que não existiam.

 

AR: Estávamos a falar de reptos ao exterior, mas penso no movimento inverso. O facto de termos um programa curatorial a acontecer, em que os artistas e os curadores estão connosco é uma dinâmica absolutamente diferente do nosso próprio currículo. E isso permite contactos essenciais, aprendizagem in situ e toda uma lógica que é a nossa, de pensamento-ação. Como sabemos, o mercado dita as configurações de alguns projecto curatoriais e práticas artísticas, e o colégio insere-se noutra logica. Aí, não havendo essas condicionantes, é um espaço de experimentação para os alunos. E isso é muito importante. O facto de ser um espaço académico é definidor da nossa estratégia. E mesmo na Europa não existem muito sítios com este diálogo tão expansivo e tão visível. Um espaço académico com um espaço galerístico e expositivo maior até que o letivo e que permite essa visibilidade, esse tornar presente, fora de portas, o Colégio.

 

JM: Coimbra também se transformou com o Colégio das Artes. Isto é, há uma relação que se foi construindo, que se vai estabelecendo entre a cidade e a unidade orgânica...

 

PP: Os nosso doutorandos praticam o direito à cidade de uma forma muito veemente. Criam as suas iniciativas, organizam-se, mobilizam-se como cidadãos. Lembro o modo intenso como os doutorandos brasileiros se manifestaram politicamente, na cidade, sobre a situação no Brasil. Têm, também, vindo a protagonizar iniciativas relacionadas com as questões LBGT, de género e as suas próprias pesquisas. Trata-se uma comunidade urbana, muito cosmopolita, habituada a esse ativismo, que faz pontes, sinapses entre o Colégio e cidade, num sentido menos institucional, e com as próprias comunidades que emergem em Coimbra. Há uma dinâmica muito importante, de que não temos uma consciência absoluta, entre os nossos doutorandos de arte e os doutorandos de arquitetura. Alguns são brasileiros e de outras nacionalidades. Lembro-me de um coletivo de doutorandos que contou com a participação de um doutorando iraniano de arquitetura. Vamos descobrindo pequenos tesouros, graças à forma muito ativa e móvel de os doutorandos se relacionarem entre si. Trata-se de não separar a cidade da universidade, mas de considerar que são a mesma coisa em circunstâncias diferentes.

 

AR: Gostava de introduzir a questão da acessibilidade. O nosso primeiro contributo, enquanto colégio e com os alunos, para a Bienal, foi a criação de um plano de ativação da bienal, de mediação entre a bienal e a cidade. Ou seja, os alunos foram agentes de relação na cidade e com a cidade. Nessa altura, foi estabelecido um canal com escolas de vários graus de ensino e que se tem mantido.  Construiu-se um serviço e um projeto de mediação. Com a pandemia, as escolas não foram ao Colégio, mas algumas alunas trabalharam por via remota com as escolas. Ou seja, há a tentativa de criar um acesso à cultura mais aberto, expansivo, horizontal, tanto que fomos procurados pelo Plano Nacional das Artes para sermos parceiros na sua implementação Coimbra.

 

JM: Nos próximos dois anos, quais são os desafios do Colégio das Artes?

 

AO: Não há área científica que não tenha um desafio mais antigo e mais perene que a nossa. Não se trata andarmos sempre à volta do mesmo desafio, mas é tão grande que não fica resolvido. Depois há aqueles que derivam das próprias circunstância históricas. Pode haver um momento em que sociedade nos vai lembrar mais certos aspetos da arte do que outros. Não penso que a arte avance em função das circunstâncias, mas são as circunstâncias que permitem acentuar certos aspetos da arte. Nós respondemos às coisas, reagimos às coisas, jogamos com o contexto. Cada um de nós pode imaginar desafios que se avistam ou que possam surgir, mas o Colégio tem estado está atento às coisas, reagindo. É importante manter uma porosidade.

 

AR: Há dois níveis, o pratico e o utópico. Em termos muito concretos, tenho uma máxima que é a ideia da universidade como imunidade. Trata-se de ter a consciência de que formar uma comunidade é formar um sistema imunitário. Temos relações e redes que já estão bastante enraizadas, e que são para manter. Já as menos enraizadas, está na hora de as redesenhar. Falo de relações transversais a vários saberes, instituições, departimentos, agentes culturais. Penso que esse é um grande objetivo do colégio: sedimentar uma série de redes. Fazendo este mapa e perspetivando uma coisa mais abstrata, o Colégio tem uma margem de crescimento gigante fora e dentro da academia. Pode ter outra oferta formativa, outras relações internacionais. Vamos trabalhar nas direções que consideramos serem a mais benéficas para o CA, mas com uma coisa muito certa: dentro desse crescimento ou transformação, mantendo a especificidade do Colégio. Este nasceu sob uma égide, uma perspetiva sobre o mundo académico artístico e cultural. Não nos percamos na vontade de ser outra coisa.

 

PP: Penso que uma das missões mais prementes na atualidade, quer para o Colégio, quer para a Universidade de Coimbra, é contribuir para que sejamos uma muralha de aço contra o fascismo reemergente em todo o mundo, com formas e nuances muito diferentes. A consciência do outro nas suas diferentes perspetivas, identidades e naturezas culturais tem sido um importante contributo para desfazermos certos equívocos. É uma garantia de futuro ter a consciência que há que outros olhares sobre o mundo que estão a entrar no colégio e que, com a nossa proposta pedagógica, somos capazes de os acolher. É importante ter essa capacidade de diálogo e reflexão. Mas, também, intensificar a relação com os nossos colegas de arquitetura, com as ofertas de conhecimento e metodologias de investigação e propostas das diferentes unidades de investigação da Universidade de Coimbra e não só. Esse é o nosso desafio: tornar mais forte, mais sólida essa interdisciplinaridade, todos esses processos que não cristalizam em clichés, que não congelam, em ideias feitas e preconceitos, o próprio conhecimento sobre a arte e a relação da arte e com a vida.

 

Colégio das Artes da universidade de Coimbra

 

 





 

Imagens (por ordem): Motel Coimbra: Ueliton Santana e João Fiadeiro; Metodologias de Investigação em Arte; Livro Em Directo do Museu de Arte Antiga: Susana Chiocca com António Lago; Os Espacialistas em montagem; Exposição LIBERDADE de Paulo Mendes e cartaz do período pós-revolucionário, foto: António Olaio; Nellla Cohorte dei de Chirico: Pedro Pousada e Musa paradisiaca. detalhe da sala 1 da exposição Rrevolucao. Fotos: Vítor Garcia. Cortesia do Colégio das Artes. 

Voltar ao topo