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Through Windows

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José Marmeleira

 

Quem, até 19 de Setembro, visitar, na galeria Uma Lulik, a exposição Through Windows encontrará um elemento arquitetónico, situado entre o seu corpo e as obras, propenso a uma certa indefinição. É um panorama e um balcão. Uma moldura e uma passagem. Um obstáculo e um ponto de vista. Com curadoria de Miguel Mesquita, a colectiva Through Windows explora tal desdobramento de sentidos a partir de um conceito e elemento definido: a janela, na condição de ecrã, de abertura, de entrada. Entrada, detenhamo-nos nesta palavra. Na galeria, podemos entrar ou apenas ver à distância, debruçarmo-nos sobre o que temos diante de nós ou invadir o espaço interior. Sem querer, talvez, Through Windows indaga a nossa relação com o cubo branco, coloca-nos diante do display das obras. De onde ver? Como ver? Na posição de mero visitante, putativo comprador, passeante? Voyeur que espreita?

Colocadas no chão ou suspensas do teto, as obras de AnaMary Bilbao, Paulo Lisboa, Paulo Arraiano, Diogo Bolota e Irit Batsry formam um ambiente táctil e humano, objetivo, tangível.

A conjunção caótica que, no interior da “janela”, as peças sugerem é contrariada pela aproximação física do visitante, pelo tomar da vista. Cada um inventará a sua ordem, uma composição. Os trabalhos não se anulam nesse ambiente. Alguns são opacos, outros sugerem profundidade ou colocam imagens em movimento. Há-os frágeis, bidimensionais, com e sem volume. O trabalho Sem título de Paulo Lisboa é central na moldura que a exposição desenha. Um monocromo de grafite, num devir animado pelas modulações da luz e da sombra. Não apenas, ou sobretudo, produto do traço, mas do encontro entre a força física da grafite e a presença frágil e resistente do papel: uma ressonância, um pulsar. Do fundo negro, algo parece em movimento. O que existe ali, naquela superfície: um desenho vivo. Os dois desenhos de AnaMary Bilbao sugerem uma óbvia relação de parentesco. Embora se percebam semelhanças formais, são compostos de materiais diferentes. Se os processos são semelhantes — remover e acrescentar, subtrair e adicionar — os materiais intervencionados (com gesso) são distintos: grafite sobre papel (em Deslocamentos 1, de 2014) e impressões fotográficas (em Junto às portas do rio, de 2018). Ambos permitem-nos entrever pequenos intervalos, rastos, mas no segundo, avistamos frestas de cor, hiatos de luz, outras “janelas” que nos dão a ver aquilo que é invisível: a memória, a passagem do tempo, um possível e indiscernível passado.

Num sentido quase inesperado, Penthouse, Variação 3 (2018), leva Through Windows ao chão, faz com que nos debrucemos. Protótipo aparente da exposição Defeito Desfeito que o artista apresentou, este ano, com curadoria de Luísa Especial, no Quartel de Arte Contemporânea de Abrantes: Coleção Figueiredo Ribeiro, a peça revela-nos uma casa de bonecas habitada por três dentaduras. A alusão a um doméstico inquietante, que podemos ver sem paredes, nu, carnal, de uma tristeza bruta, quase cartoonesca insere-se, com justeza, no quadro da exposição. Mas sobre a proposta de Diogo Bolota pairam outros elos. Aqueles sugeridos pelos vídeos Sensorial Divinities (2019) de Paulo Arraiano a cujo som só temos acesso precisamente do outro lado da bancada, por meio dos auscultadores. Artista que tem vindo, progressivamente, a confrontar-se com as promessas e projecções do transumano, deixa ao visitante outro tipo de janelas. Sensorial Divinities anuncia, sem estrépito, a imortalidade digital do humano, o seu melhoramento com recuso à tecnologia, à inteligência artificial, ao algoritmo, à biotecnologia. No ecrã, nadam tubarões, peixes, moluscos, movem-se répteis, seres híbridos, não-humanos. Observam-se paisagens de posições cimeiras. A natureza e a não-natureza, isto é, aquilo que o homem constrói e fabrica, fundem-se no regresso a uma imaterialidade, a uma liquidez indiferente, transparente. O que parece não-humano é produto do humano e vice-versa (em Post-Fossil A5, de 2019). Num mundo do qual o humano parece evacuado, vagueiam entidades autónomas, alimentando-se do mundo natural ou alimentando o mundo natural. O artista não julga estes cenários, deixa-os à nossa experiência e imaginação, sendo certo que neles não haverá aceitação da história, nem necessidade de a transmitir.

Parafraseando Georges Didi-Huberman, nesse mundo a obsolescência definitiva do humano e sua eterna juventude andarão a par. 

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Noutro plano, mas não muito distante das imagens dos vídeos de Arraiano, encontra-se How Real is Your Screen? vídeo de Irit Bartsy (Israel, Ramat Gan, 1957). O trabalho desta artista, pioneira no uso do vídeo e da televisão [2], introduz-nos a um conjunto de imagens: de si própria, de monitores, da rua e do excerto de um filme de Hollywood. A dada altura, a justaposição de imagens remete para o display da própria exposição, intensificando e ampliando a polissemia inscrita na interpelação. No fazer da artista, o monitor transforma-se num instrumento não-fechado, aberto, e as imagens um material recriável, manipulável. A liberdade da arte aparece quase cristalina, num acorde a que não falta humor e discernimento. A artista manipula, desconstrói, sabendo que o faz.

Não obstante o título Through Windows, não há propriamente janelas para o exterior, se exceptuarmos o vídeo Lighted by a Searing Light de AnaMary Bilbao. Projetado na parede, contra as restantes obras, permite-nos ver o efeito leve do vento e de raios de sol sobre a folhagem e os ramos de árvores. Contemplamos de baixo, de um ponto de vista subjectivo, a natureza, mas estamos longe da experiência cantada por Goethe em Wandrers Nachtlied (Über allen Gipfeln ist Ruh), de 1776, ou por Bertolt Brecht em Liturgie vom Hauch. A contemplação da natureza, em harmonia com a sua quietude, ou a presença de acções humanas, estão ausentes. Só se ouve o som repetitivo de um pássaro. O que se vê é um mundo contaminado pela luz, que nos ofusca, que nos observa a partir de cima. E no qual não podemos tocar, do qual não podemos sair. Fascinando-nos num reencantamento impossível, está-nos vedado. Estamos do lado de cá, sem saída, porventura à espera.

 

Galeria Uma Lulik

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 


Notas.

[1] Didi-Huberman, Remontagens do Tempo Sofrido, pág. 194.

[2] Em 2006, o Jeu de Paume dedicou-lhe uma grande retrospetiva.

 

Through Windows-02
Through Windows-01
Through Windows-03

Vistas gerais da exposição Through Windows, na Galeria UMA LULIK_. Cortesia dos artistas e Galeria UMA LULIK_.

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