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Not Cancelled! — A obra de arte na época da sua propagação vírica 

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Eduarda Neves

 

A imunidade será a grande questão filosófica e política após a pandemia

[1]

I. capital vírico — ligação ao ventilador

Um coronavírus afirma o seu lugar no mundo. Na arte recente, também. Ao SARS-CoV-2, que esteve na origem da Covid-19, ficamos a dever um certo programa metafísico de desvendamento. Afectados pela nossa condição de hospedeiro oculto, desconhecemos os processos através dos quais o parasita nos transforma num semelhante. Um jogo no qual as trocas são potencialmente indeterminadas. Chegado como parasita, infiltra-se como parte constitutiva de cada um de nós. Intimo, altera-nos ou destrói-nos. Recorrendo a uma aproximação biológica, o vírus, alojado no organismo hospedeiro, na sua condição heideggeriana de ser-aí e ser-no-mundo, configura a relação interdependente que estabelecemos com o capital.

Muito já se escreveu sobre a pandemia. Perspectivas geopolíticas e filosóficas da conspiração, soluções para um mundo melhor, denúncias de que o capitalismo, afinal, não é um humanismo. Tudo foi adiado, remarcado. Porém, sabemos que tudo já estava aí, antes do aparecimento do SARS-CoV-2, antes da crise sanitária tornar visíveis as falhas do sistema: a insustentabilidade do modo de produção dominante a que chamamos capitalismo, a crise do mercado financeiro, da agricultura, a crise sanitária, da educação, dos transportes e mobilidade, do mundo do trabalho, o desemprego e a falta de poder de compra, a indústria que despeja na atmosfera milhões de detritos tóxicos, excesso de consumo de combustíveis fosséis, as alterações climáticas, a ameaça nuclear, o crescimento demográfico, as desigualdades no acesso às tecnologias e a mistificação destas ferramentas, a debilidade do mundo da arte. A história, enquanto inventário de problemas, manifesta também a forma de os produzir, dominar e manipular. Sem surpresa é-nos restituída a imagem continuada da nossa dissonante entrada no mundo:

O homem é uma reserva, a mais forte e unida da natureza. É um ser-em-toda-a-parte. E ligado. Unidos por um contrato social, observavam os filósofos antigos, os homens constituem um grande animal. Dos indivíduos aos grupos, subimos em altura, mas descemos do pensamento à vida bruta, estouvada ou maquinal, e isso continua de facto  a ser verdade que, ao dizer «nós», a publicidade ou a generalidade do público nunca soube verdadeiramente o que dizia ou pensava; portanto, fomos além da dimensão crítica, mas ficámos aquém na escala dos seres. [2]

 

Teorias sociais, políticas, filosóficas e económicas revelaram, nos últimos meses, estar “capitalizadas”; poucos foram os que não sentiram o tema como “urgente”  e não adoptaram a velocidade do mercado.  A propósito da pandemia, afirmou Graham Harman que “há momentos em que cada um de nós deve simplesmente ficar quieto e ouvir, e é importante reconhecer esses momentos quando eles chegarem.” [3] Talvez os mais imediatamente silenciosos tenham sido os virologistas e os epidemiologistas. O silêncio de quem tem tudo para fazer. Dar tempo ao pensamento que é, também, o da acção. Instituições, estruturas e organizações endoutrinam para a reinvenção. “Reinventar”, como um slogan estereotipado e publicitário, torna-se a palavra de ordem, vazia, exaustivamente convocada pelos agentes do mundo da arte e fora dele, assim pressupondo o regresso a um tempo mítico, originalmente perfeito, o qual, inesperadamente, teríamos perdido. Nada perdemos porque nada tínhamos ganho. A história do capitalismo é também a história da sua permanente capacidade para se reinventar ou, se preferirmos, a história do eterno retorno do mesmo. Nada de novo na história de um sistema económico habituado à crise. O futuro continuará a pertencer-lhe.

Doentes do capital, sem muitas vezes lhe reconhecerem os sintomas, artistas, museus, galerias, fundações e outras estruturas do campo das artes visuais  dedicaram os respectivos confinamentos à promoção online de streamings, exposições e inaugurações virtuais, divulgação de colecções e visitas guiadas imersivas, catálogos interactivos e estratégias educativas inclusivas. Reivindicam-se novos públicos, propaga-se a arte no espaço público e outros projectos urbanos. Alguns directores de museus anunciam que, finalmente, o museu está em todo o lado. Ninguém pode ser excluído do jogo. A pandemia não é para especialistas. O instagram é o nosso espaço de encontro. A experiência de uma obra reduz-se a um like num post. A desmaterialização da arte tornada entretenimento, pura virtualidade na forma da criação de conteúdos. Tudo se marca e desmarca, adia e volta a adiar. E conversas, muitas conversas, na forma de projectos, conferências, encontros, debates, entrevistas, tiveram lugar através de plataformas online. Artistas, académicos, directores de museus, galerias, fundações, feiras de arte, programadores, colecionadores, curadores, cidadãos pró-activos, aproximam-se digitalmente, cruzam experiências sobre arte e serviço público. A comunicação, entendida como troca de confiantes sentimentos colectivos em tempo de crise, supera a Netflix. A crença no potencial emancipatório da tecnologia encena as suas possibilidades interactivas com a arte e o yoga a partir de casa. Emergentes artistas do digital replicam a indústria do ócio. Transformada em massmediologia, a máquina signíca ao serviço da indústria da tecnologia de comunicação realiza a ilusão do progresso e oferece-nos a operação tecnológica como experiência que é maquínica, social e económica. Todos perante um écran, artistas e público, conectados mas não ligados. Exposições online, exposições virtuais tornam-se o paradigma da experiência de obras que, transportadas para outras geografias, outros topos, recebem milhões de visitas. Prometem outros modos de ver, a ruptura com hábitos perceptivos, a revolução visual num só dia.

A visualização online, que torna a  presença numa deficiência. Experienciar, olhar, torna-se uma forma de navegar. Likar e não parar. Sem profundidade e sem a profundidade da superfície, para convocar Deleuze.

A experiência da obra na forma da morte térmica do negócio. A aparente democracia das máquinas dispensa-nos. Offline. Não se afigura impossível desenvolver toda uma nova teoria da Einfühlung, capaz de explorar estas novas relações entre a arte e a “percepção distraída”, para falar como Walter Benjamin. Ao contrário do contágio vírico, que actua através da proximidade, a experiência online e massificada das obras torna-as uma espécie de território à distância e sem campo de batalha. 

Desterritorializada, a pandemia reterritorializa-se no ciberespaço através das obras que fazem circular o sintoma. É este que chega até nós transportando as nossas falhas espácio-temporais. Mostram-nos que são os infinitamente ricos que continuam a ajudar os infinitamente pobres, repetindo a lição de que sem eles não poderemos continuar a viver. Todos se ajoelham. Desaparecem os críticos ferozes da galeria, do museu, do mercado da arte. A sua importância é reivindicada, o capital continua a ser o recurso dominante, torna-se a ventilação mecânica dos artistas e o seu factor vital. A máquina que lhes permite superar a insuficiência respiratória. A promessa de salvação que sempre foi. O capitalismo, que anula todo o esforço colectivo, mostra-nos que, afinal, talvez não estejamos todos juntos:

A construção da realidade do capitalismo subjectivizado é globalmente orientada para a concorrência pela visibilidade. A visibilidade define os espaços de acção para a estimulação dos impulsos de inveja - penetrando da mesma forma no terreno dos bens de consumo diário, do dinheiro, do conhecimento, do desporto, da arte. [4]


 

II. da vala comum à imunidade de grupo 

 

A internet é cada vez mais sofisticada, é depósito e potência, codifica a instância psíquica da dialéctica do senhor e do escravo, da qual o capitalismo retira a sua força:

Manter a ordem tende a depender menos das máquinas militares e policiais que dos sistemas de regulação e normalização próximos do povo. Além de algumas greves selvagens e de uma certa percentagem incompreensível de delinquência, teleguiadas como o são através dos mass media, as pessoas mantêm-se a si mesmas no caminho recto vigiando-se umas às outras de soslaio. As alternativas entre o bem, o mal, o social, o associal, tendem a ser menos taxativas que antes. Por isso, o fascismo negro, aquele da cruz suástica e da caveira, tem menos hipótese de descolar. [5]

 

A incerteza da economia global, a escassez económica, os cortes nos orçamentos, a falta de patrocinadores públicos ou privados, as políticas repressivas e micro-fascistas como referiu Guattari, integrarão a arte no mundo global dos serviços e dos servidores. A ontologia do online como psicopatologia ou a vala comum das obras. Quanto mais a vida e a arte se diluem no espaço digital, mais autoritária se torna a propagação neurotizada da consensual reivindicação corporativa para alterar comunidades, públicos, estratégias, valores, práticas, instituições. É a hegemonia do neoliberalismo no ciberespaço, da ordem económica e monetária que se revestem da falsa aparência de um design revolucionário, assim silenciando o modo de organização do mundo do trabalho e a sua precarização. 

Enquanto estrutura parasitária que se reproduz no tempo, o capitalismo também se reproduz no espaço. Porém, diminuindo a possibilidade de globalização através da viagem, o art world limitará a proximidade física das connections.

Cada um de nós se torna uma ameaça e passará a viver sem sair de casa. Como o SARS-CoV-2 seremos a imagem do capital, um morto-vivo que dissimuladamente nos enclausura. Será isto o próximo “glo-cal.” Num sistema onde os parasitas mutuamente se parasitam é necessário proteger o hospedeiro, acreditar na falência temporária que conduzirá à recuperação ou será preciso introduzir no sistema uma transformação tão forte que implique a destruição do hospedeiro e dos parasitas? Sobrevivendo entre barreiras invisíveis, o parasita politiza-se:

Na sua própria vida e através das suas práticas, o parasita confunde correntemente o uso e o abuso; exerce os direitos que a si mesmo se atribui, lesando o seu hospedeiro, algumas vezes sem interesse para si e poderia destruí-lo sem disso se aperceber. Nem o uso nem a troca têm valor para ele, porque desde logo se apropria das coisas, podendo até dizer-se que as rouba, assedia-as e devora-as. Sempre abusivo, o parasita. [6]

 

Perante o humanismo como perspectiva que coloca o homem no centro do universo, a concepção heideggeriana que o toma como sinónimo de metafísica ou a tradição do humanismo como “escola de domesticação do homem”, como lhe chamou Sloterdijk, [7] agora, é graças a um vírus que se perspectiva um outro humanismo: através de plataformas digitais é-nos devolvida a dimensão metafísica da técnica e manifesta-se a vocação psicótica da tecnologia, que assim impõe ao real o seu próprio código. É este imperialismo que promete educar e promover a aproximação entre homens e povos, o acesso à arte e à verdade, assim nos devolvendo a imagem do capitalismo como um ventilador através do qual continuamos artificialmente a respirar. Não nos limitarmos a aceitar a ordem que nos precede e escaparmos à nossa própria condição de parasita é tarefa avassaladora. 

Se o vírus pode matar o seu hospedeiro, também este pode ser capaz de se libertar do parasita. Mas um parasita poderá ser entendido como um elemento de transformação, “ele interrompe uma repetição e faz bifurcar a série do mesmo.” [8] Disse Alexander Kluge que com a pandemia a realidade é posta à prova e que o desafio está em saber, depois de tudo isto, que esfera pública queremos: “como para certas doenças infecciosas, também a COVID19 mostrou que na comunidade, tal como no território da arte não estamos imunes, que a nossa imunidade não é suficiente ou, se quisermos, não existe um número de pessoas bastante para resistir”. [9] Em Março escrevi que, perante o vírus do capital, só um vírus pandémico seria capaz de nos imobilizar à velocidade da luz. Perguntava, então, qual o problema político importante que, até hoje, o capitalismo tinha sido capaz de resolver. A questão permanece. Concluo este texto no dia 1 de Julho de 2020. Os Estados Unidos acabam de anunciar a compra de quase todo o stock de Remdesivir utilizado no tratamento de doentes graves com COVID-19 e que corresponde à quase totalidade da produção dos próximos meses. O capitalismo não precisa de se reinventar e, novamente, não pagará o custo desta erosão: 

Enquanto a imunidade biológica se refere ao nível do organismo individual, os dois sistemas imunitários sociais têm que que ver com as transacções supraorganísticas, ou seja, com as transacções cooperativas, transacionais, conviviais da existência humana: o sistema solidarístico garante a segurança jurídica, a prevenção existencial e os sentimentos de parentesco para lá das famílias respectivas; o sistema simbólico garante a compensação da certeza da morte e a constância das normas para lá do limite das gerações. A este nível, igualmente, aplica-se a mesma definição: a “vida” é a fase de êxito de um sistema imunitário. [10]

 

Antes de qualquer reivindicação artística, estamos perante um imperativo ético. Na arte, como na vida, apenas a imunidade de grupo poderá afirmar-se como defesa colectiva contra esta infecção. É ainda a imunidade que convoca um nome fora de moda: a humanidade ou, se preferirmos, a solidariedade.

 

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política. 

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia. 

 


 

Notas:

[1] Peter Sloterdijk; Ana Carbajosa: “El regreso a la frivolidad no va a ser fácil”, entrevista, in El País, 9 de Maio, 2020.

[2] Michel Serres, O Contrato Natural. Lisboa: Edições Piaget, 1994, p. 36.

[3] Graham Harman, “Tecrit ve Tehdit [Lockdown and the sense of  Threat]”, entrevista, in Baykuş: Felsefe Yazilari, 6 de Maio, 2020.

[4] Peter Sloterdijk, Cólera e Tempo. Lisboa: Ed. Relógio DÁgua, 2010, p. 237.

[5] Félix Guattari, Líneas de fuga. Por otro mundo de posibles. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2013, p. 129.

[6] Michel Serres, O Contrato Natural...p. 63.

[7] Peter Sloterdijk, Normas para el parque humano. Madrid: Ediciones Siruela, 2000, p. 52.

[8] Ver, a este propósito, a obra de Michel Serres, cuja perspectiva aqui adoptamos: Michel Serres, Le Parasite, Paris: Hachette, 1997, p. 334.

[9] Alexander Kluge, entrevista com Carla Imbrogno, in Revista Ñ - Clarín, 1 de Maio, 2020.  

[10] Peter Sloterdijk, Tens de mudar de vida. Lisboa: Ed. Relógio D´Água, 2018, p. 551.

 


 

Imagem: Camille Henrot, Grosse Fatigue (still), 2013. Video, color, sound; 13:00 minutes. Cortesia da artista, Silex Films e kamel mennour, Paris/London. © 2016 ADAGP Camille Henrot.

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