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Alicia Kopf: Speculative Intimacy

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José Marmeleira

 

No mundo pós-humano dos afetos

A artista e escritora catalã Alicia Kopf, pseudónimo de Imma Ávalos, apresenta, no âmbito do projeto Reação em cadeia, uma parceria entre a Fidelidade Arte e a Culturgest, a exposição Speculative Intimacy, com curadoria de Bruno Marchand. Mote para conversa com José Marmeleira sobre as relações entre a escrita e as artes visuais, os afetos humanos e a experiência extraterrena e virtualizada da realidade.

 

José Marmeleira (JM): Comecemos pelo seu livro, Irmão do Gelo (edição portuguesa da Alfaguara, 2018). Lemos, em algumas das suas páginas, observações irónicas sobre o mundo da arte, o que não é muito comum vindo de uma artista...

Alicia Kopf (AK): Quando comecei a escrever o livro, vivia uma situação muito interessante. Ainda permanecia fora do sistema da arte, mas, ao mesmo tempo, já havia entrado nele. Encontrava-me numa espécie de limbo, em trânsito. Nessa altura, não me considerava parte fundamental daquele sistema, não havia feito nada com especial repercussão. Podia falar, escrever livremente. Entretanto, vi-me a representar uma boa galeria [a Joan Prats, em Barcelona], o que me colocou numa condição especial. Ao contrário de muitos artistas, não pertencia a uma elite económica ou cultural, o meu ambiente familiar não me proporcionara as mesmas oportunidades, a mesma atmosfera. Para sobreviver economicamente, fui professora, durante vários anos, em escolas públicas e privadas mais elitistas. Essa experiência deu-me uma visão muito realista do mundo da arte. Podia estar dentro e fora, a observar criticamente esse mundo, enquanto expunha na ARCOMadrid.

JM: Poder-se-ia dizer que em Irmão do Gelo explora tópicos e questões sobre as quais tende a permanecer um manto de invisibilidade...e de silêncio.

AK: Sim, falar de certos paradoxos do mundo da arte, falar da vida de um irmão que é descapacitado [o irmão de Alicia Kopf sofre de autismo], pode ser visto desse modo. No mundo da arte, como no interior de uma família, não te queres expor. Há relações de poder e compromisso que fazem com a tua voz flua menos livre. No meu caso, encontrava-me num estado limite. Por isso escrevi o livro e concorri ao prémio [Ojo Crítico], sem grandes ilusões. Se ganhasse, seria publicado, se fosse considerado medíocre, não seria, ficava na gaveta.

JM: É escritora e artista visual. Recebeu em 2014 o prémio GAC/DKV, pela melhor exposição individual do ano de um artista jovem, que decorreu na Joan Prats. E apresenta em Lisboa, no Espaço Fidelidade Arte, a exposição Speculative Intimacy. Como distinguiria a atividade de escritora da de artista visual?

AK: A escrita estabelece uma relação mais imediata com o leitor do que a arte com o espectador. Em geral, estamos mais preparados para ler romances ou contos do que ver arte contemporânea. O livro produz um impacto público de outra natureza, se chegar aos eleitores. E, ao mesmo tempo, por meio da escrita e da leitura, suscita uma relação mais íntima. O meu compromisso com o leitor é sagrado. Quando escrevo, tenho que mostrar uma experiência que purifiquei o mais que pude. Se quiser, há qualquer coisa que permanece dessa antiga relação entre o livro e a ideia de verdade, reconhecendo a parcialidade e a existência de pontos de vista particulares. Sabemos como a verdade é muito questionada, sobretudo desde a pós-modernidade. Seja como for, nesse espaço da escrita e da leitura tento desvelar uma dimensão da realidade. Ora, o domínio da arte visual é, precisamente, um espaço em que podemos abrir outras dimensões da realidade, mas tomando mais riscos. O que tento fazer enquanto artista visual é uma coisa distinta da literatura, mas não é incompatível. Trata-se de produzir novas dimensões de representação com outras linguagens, expandir o que a escrita não pode dizer. Posso ser muito experimental, arriscar mais.

JM: Curiosamente, a presença da escrita manifesta-se nesta Speculative Intimacy. Na instalação Unified Theory Field, lêem-se fases, expressões, breves aforismos que alguém escreveu sobre as paredes de azulejos brancos e negros...

AK: São frases que fui apontando. Uma retirei-a do livro Animal Moribundo do Philip Roth. Gosto da ideia de uma escrita expandida. Costumo arquivar muito material literário sobre o tema que me interessa, bem como textos e noções oriundas da investigação científica, em particular nos domínios da física e da astronomia. Recentemente, tenho vindo a explorar as analogias entre os sentimentos humanos, as leis da atração dos corpos celestes e as tecnologias digitais. Por isso, a par das frases, podemos ver formas e fórmulas gráficas, símbolos, memes retirados da Internet. Todos remetem para aquilo que influenciaria ou condicionaria os afetos e os sentimentos humanos, desde as marés e a posição dos astros até à cultura da Internet.

JM.Na instalação, as paredes de azulejos, com o seu quadriculado, remetem para a experiência de espaços domésticos mais íntimos...

AK: É interessante que o diga. A representação reticular é muito usada para exprimir questões cosmológicas, mas, na instalação, parece-nos familiar. Lembra-nos cozinhas, casa de banho, espaços relacionados com fluídos humanos que necessitam de uma higiene especial. Interessou-me muito abordar este material, que tem um sentido cósmico e, em simultâneo, muito doméstico. Também foi maravilhoso poder escrever e desenhar naquelas superfícies. De algum modo, pude expandir o meu bloco de notas, com os seus apontamentos e reflexões.

JM: Qual é o significado dos pictogramas e dos grafismos. O que representam?

AK: Aludem a questões especulativas do universo, às leis da Física. Representam os campos cosmológicos. Uma das quadrículas, por exemplo, mostra os elementos de peso e massa do Sol, de uma estrela de neutrões, de um buraco negro e dos assuntos familiares. Ironicamente, são estes que têm mais peso. Há uma ironia relacionado com certo tipo de memes que encontramos na Internet. No fundo, estes desenhos são todos adaptações de gráficos preexistentes que me permitiram passar do não-humano ao humano, do cósmico e do digital ao familiar, ao doméstico.

JM: Antes de começarmos esta conversa, disse que era uma leitora de ficção científica. De que modo é que este género a influenciou?

AK: A ficção científica das primeiras décadas, como género, não me interessa especialmente. Considero-a muito moralizadora, mas quando o escritor é muito bom, transcende o género, leva-o ao limite. Gosto muito de um autor como o Stanisław Lem e do seu Solaris, que considero uma obra sobre mundos afetivos. Se se lembrar do filme [homónimo de Andrei Tarkovski] as personagens projetam, no oceano do planeta, os seus fantasmas afetivos, os seus amores de juventude, as experiências que não superaram. Solaris é uma obra que torna presente esses fantasmas, torna-os corpóreos, recorrendo a elementos fantásticos. A Ursula Le Guin também me interessa muito. A especulação pelo fantástico é uma abordagem a que sou sensível como artista, pois permite demonstrar dimensões que fazem parte da vida e da experiência humanas, mesmo quando a perspetiva é pós-humana ou não-humana...

JM: Em que sentido?

AK: Quando o pós-humano nos permite pensar de outra perspetiva, ver as questões do afeto e das relações sentimentais de outro ângulo. Podem ser modos novos de relacionamento, de expandir o afetivo ao não humano. O tema da relação com o animal e o meio ambiente também são questões que me interessam, embora neste momento não os esteja a trabalhar.

JM: Como descreveria a sua posição face às teorias do pós-humano?

AK: Não tenho uma posição a favor ou contra, interessei-me pelo pós-humanismo  desenvolvido pela filósofa italiana Rosi Braidotti. As suas teorias permitiram-me, por exemplo, pensar a ficção científica de um modo inovador. Não se tratar de pensar alienígenas, outros mundos, mas o próprio conceito de alteridade. Essas imagens não-humanas são metáforas para pensar a relação com a maternidade, com o amoroso, no interior de um cenário fantástico. O pós-humanismo interessa-me enquanto descentramento da perspetiva humanista. Nesse descentramento ganhamos coisas, outros lugares. Ao mesmo tempo, é impossível deixar de pensar desde o humano. Somos humanos e isso não podemos mudar. O que podemos fazer, sim, é expandir a consciência a outros lugares, descentrar o nosso foco e, nessa tradução, ganhar outros olhares.

JM: No seu livro e no projeto Articantàrtic investiga e reconta, com fascínio e prazer, a história das expedições polares...de algum modo já anuncia essa ideia de expansão ao não-humano.

AK: Sim. Isso abre um tema muito interessante que é relação com paisagem. Na arte do século XX, a paisagem foi concebida numa perspetiva muito romântica. A natureza torna-se paisagem quando se converte numa projeção do eu. Em Irmão de Gelo há uma relação paisagística com o natural, essa projeção do eu é claríssima. Vou à Islândia e não a Cancun. Nessa altura, ainda não me havia debruçado sobre as correntes pós-humanistas, mas, com efeito, o pós-humano abre a muitos artistas uma janela para ver o natural na condição de fantástico. Em certa medida, é como se pudesses dar voz àquilo que normalmente não tem voz. Isso paradoxalmente devolve-te algo muito fantasioso, sendo que há um limite de representação nesse processo. Esse limite é que não deixamos de ser humanos, projetando a nossa consciência sobre coisas que não têm a nossa linguagem.

JM: Voltando às expedições polares, e antes de falamos dos vídeos que apresenta na exposição, com vê a anunciada disputa de muitos países pelos recursos da Antártida?

AK: Essa é uma possibilidade que me preocupa. Por detrás dos pretextos do saber e da ciência, segue sempre o lucro. As explorações do Ártico, que sempre me atraíram, tinham fins científicos. Não eram conduzidas pelas mesmas forças que determinaram a conquista da América, mas a verdade é que, pouco tempo depois, chegaram os interesses capitalistas, com a criação de novas rotas comercias. Uma das maravilhas do humano é a vontade de exploração, no sentido do conhecer, um dos problemas do humano é vontade de conquista, no sentido do controlo. Sempre me fascinaram as explorações, da polar à lunar, mas, ao mesmo tempo, assustam-me, porque trazem com elas o desejo de predação.

JM: Nos vídeos Speculative Intimacy (2018) e em An understanding of control (2019), confronta o espectador com a expressões do desejo, da intimidade, da sensualidade num mundo que o humano partilha com a tecnologia digital e a inteligência artificial...

AK: Sim. Em Speculative Intimacy procuro representar a tensão entre a linguagem gestual e os ecrãs, o digital e o contacto físico, os sentimentos de atração e rejeição diante de imagens de rostos que não chegamos a tocar. Em An understanding of control descrevo uma história de amor entre uma mulher e um drone, a partir de uma perspetiva sarcástica. Aquela máquina gera e vigia a intimidade daquela mulher. Ou seja, a intimidade, que vemos ali mostrada pela da câmara, surge como um elemento contrário à própria intimidade. O drone ao entrar na casa, no quarto rompe a proteção desse espaço. Podia ser a metáfora de uma relação de controlo ou da vida de uma pessoa numa relação abusiva.

 

 

Alicia Kopf

Fidelidade Arte [Chiado 8] 

Culturgest

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

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Alicia Kopf: Speculative Intimacy. Vistas gerais da exposição Fidelidade Arte (Chiado 8). Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Culturgest.

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