7 / 14

Mariana Caló & Francisco Queimadela: Corpo radial

FM01b.jpg
José Marmeleira

 

Antes de entrarmos em Corpo radial, exposição de Mariana Caló & Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, com curadoria de Susana Ventura, um facto indica o universo mental, visual e espiritual da dupla de artistas. Sobre as janelas da galeria foram aplicados filtros vermelhos e o interior encontra-se delicadamente iluminado. Uma atmosfera cromática, vermelho-alaranjada, aguarda-nos num espaço, no interior do qual se encontra outro espaço, e em que a memória é despertada no corpo e na mente por imagens e lugares, por desenhos e pela arquitetura. Não por textos, não pela escrita.

Passado o umbral da porta, não estamos apenas na exposição, mas dentro da obra de Mariana Caló & Francisco Queimadela, no seu teatro. Cada espectador, cada visitante, cada corpo transforma-se num recetáculo de energias, de cores, de espantos. Exposição que concentra, como sublinha a curadoria no texto de sala, várias dos temas que os artistas têm vincado no fazer e na obra (a saber: a relação “corpo-universo, corpo-memória, memória-tempo, imagem-memória, natural-artificial, corpo-animal”, Corpo Radial recolhe-se e expande-se. Recolhe-se, pois, solicita ao visitante momentos de paragem, de introspeção, de suspensão. Expande-se, pois permite iluminar elementos que constituem, para lá do filme, a obra da dupla.

Assim, ainda que uma obra apresentada noutra exposição (apresentada em O Livro da Sede, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, com curadoria de Ricardo Nicolau, em 2016) seja o mote de Corpo radial, esta inicia-se por uma série de delicadíssimas serigrafias e desenhos a guache. São aparições precisas, cinéticas, sugerindo movimentos circulatórios, a permutabilidade do humano na natureza e no cosmos, a sensualidade da geometria; figurações que lembram, nas suas curvas e traços, motivos da história da arte. Os títulos enfatizam a sensibilidade dos artistas ao mundo natural, a uma cosmogonia primeva e quase esquecida (repara-se no leque de cores intitulado Alvor) mas — e isto é importante — por meio de um fazer que produz tangibilidades: desenhos, serigrafias. Que não desaparecem nos ciclos da natureza. Se a memória que evocam é cosmológica, extraterrena, projetando-se para lá do humano, só o humano a pode tornar experiência, espaço, relação.

Esta asserção manifesta-se, precisamente, na pesquisa poética que Mariana Caló & Francisco Queimadela realizaram inspirada nos Teatros de Memória do filósofo e humanista italianos Giulio Camillo Delminio (1480-1544) e de Robert Fludd (1574-1637), concebidos na tradição da Arte da Memória. Cultivada, por meio de várias técnicas na Grécia Antiga, através da associação mental entre lugares e imagens, tal arte permitia ao orador ordenar os seus discursos a fim de os poder pronunciar. Não é certamente esse o exercício que Mariana Caló & Francisco Queimadela propõem, dado que na exposição não há fala, discurso verbal.

O que acontece é outro fenómeno: a memória torna-se coisa sensível, plástica, cromática, imagética, quase física. E, também, humanamente familiar.

Dessa pesquisa nasceu a primeira imagem da Sala da memória (2015) apresentado no Museu de Serralves e que agora pode ser vista na Galeria da Boavista. Trata-se do desenho de um espaço arquitetónico que, sob uma caixa de luz, vibra luminescente, qual pintura perdida, objeto arqueológico encontrado. Nele, vemos, três portas vermelhas iguais, colocadas simetricamente, sobre planos de cores diferentes. Um espaço destituído de presença humana, metafísico, mas, ao mesmo tempo, acessível à experiência do uso, casa, lugar de recolhimento, ainda que as suas portas insinuem a presença de um labirinto, a possibilidade de uma queda mágica.

Esta ressonância pictórica surge numa configuração tridimensional, no espaço central da exposição, separando as serigrafias e os desenhos de Livro da Sede (2015), filme composto de fotografias. Uma sala dentro da sala, Sala da memória para Corpo radial (2020) é uma peça belíssima, vulnerável, entre a seda e madeira. Física e frágil, cria um espaço de intimidade, no qual temos consciência do efeito das coisas e do tempo no nosso corpo e, passamos a ver corpos, como os que vão desfilando, exuberantes, plácidos, atemorizados, inquietos, expectantes em Livro da Sede. Paulatinamente, vamos perscrutando as memórias dos próprios artistas.  A folha de sala diz-nos que têm um cariz autobiográfico, que fazem parte da vida de Mariana Caló & Francisco Queimadela. Mas persiste um mistério inapelável. Máscaras, animais, corpos, redes e rostos aparecem num loop lento, sob um silvo fundo que se apagará para logo se acender. Atravessámos a memória dos artistas ou entrámos num plano em que imaginação se fez sonho? Por instantes, aquelas imagens parecem ceder às nossas imagens, às imagens da nossa memória.

No limiar dessa possibilidade, a exposição faz-nos recuar. Permanecemos no universo de Mariana Caló & Francisco Queimadela, no pensar que eles consagram, por exemplo às relações “memória-tempo” ou “corpo-animal”. Neste último caso, a aparições de animais que nos fitam, do fundo do escuro ou da rede, conduzem-nos ao devir corpo não-humano, a uma convergência poética do humano com o natural, com o animal; paradoxo sedutor, mas que, na sua húbris (quando excede a compaixão e a empatia), pode redundar numa fuga do mundo.

No piso superior, Corpo radial pede ao visitante um encontro com o filme Leite transbordante (2019). Em ebulição numa cafeteira, o leite ferve, até transbordar e apagar o fogo, cobrindo uma superfície. Escutam-se sons estranhos à situação que se repete, que dura em loop. O que estará fora de campo? É então que uma imagem aterrorizadora se espelha na superfície da cafeteira. O rosto desfigurado, distendido de uma mulher, uma imagem dentro de uma imagem. O grito suspenso de uma mulher dentro de um sonho, a memória de alguém presa num filme do qual se desdobram duas temporalidades distintas, uma imobilizada, a outra em movimento. É um epílogo exemplar da força alquímica do fazer de Mariana Caló & Francisco Queimadela, artistas para quem a imagem fílmica permanece um mistério imponderável e inefável, e todas as imagens são qualidades anímicas: memória e sentimento.

 

Mariana Caló & Francisco Queimadela

Galeria da Boavista

 

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

 

Mariana Caló & Francisco Queimadela: Corpo radial. Vistas gerais da exposição na Galeria da Boavista, Lisboa. Cortesia dos artistas e Galerias Municipais / Egeac.

Voltar ao topo