Earthkeeping . Earthshaking — arte, feminismos e ecologia
Em 1981, a revista de arte feminista norte-americana Heresies dedicou a sua 13ª edição à exploração das relações entre feminismo e ecologia. Intitulada Earthkeeping / Earthshaking, esta edição contou com a contribuição de autoras de várias nacionalidades, entre elas a crítica de arte Lucy Lippard, as artistas Ana Mendieta, Faith Wilding, Bonnie Ora Sherk, Cecilia Vicuña, e a escritora Gioconda Belli.
A partir da pergunta “O que é que as mulheres podem fazer acerca da direção desastrosa que o mundo está a tomar?”, Heresies #13 pretendia questionar as relações entre feminismos e ecologia através de múltiplas perspectivas, desde a necessidade da teoria feminista “integrar a vida social, a história e os ambientes naturais” até à resistência à exploração capitalista dos recursos dos países do então chamado “Terceiro Mundo” e à preocupação com o crescente militarismo da administração norte-americana.
Tomando Heresies #13 como ponto de partida e como arquivo histórico e político capaz de estimular uma reflexão fértil acerca da triangulação entre arte, ecologia e feminismos, a exposição Earthkeeping /Earthshaking — arte, feminismos e ecologia pretende afirmar o papel pioneiro desempenhado por numerosas artistas neste âmbito específico e, ao mesmo tempo, problematizar a operacionalidade do seu contributo no presente. [1]
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Antonia Gaeta (AG): Queria começar pelo título que é bastante específico e tem que ver com uma revista de arte feita por um colectivo feminista de artistas. Mas queria que fossem vocês a explicar de onde vem, porque decidiram usá-lo para a exposição e qual o sentido dele em Julho de 2020?
Giulia Lamoni (GL) e Vanessa Badagliacca (VB): Quem começa?
GL: O título vem de uma revista feminista bastante conhecida, que se chama Heresies: A Feminist Publication on Art and Politics que começou a ser publicada em 1977 nos Estados Unidos, em Nova Iorque. De certa maneira, a exposição está fortemente inspirada nessa revista, não só pelo tema do número 13, que, em 1981, explorava as relações entre feminismos e ecologia, mas também do ponto de vista metodológico no sentido em que nos interessava a revista como formato que consegue reunir perspetivas múltiplas. É justamente esta linha de conexão entre vozes e abordagens diferentes, esta heterogeneidade que nos importava manter dentro da exposição. Na verdade, gostamos muito do título porque tem um carácter duplo… o título significa preservar a terra, cuidar dela, mas também mexê-la. Tem que ver com a questão da conservação, mas fala também da necessidade de se revoltar e mexer as coisas quando elas não estão bem. Neste caso a revolta é tanto feminista como ecologista.
VB: E este número da revista, Earthkeeping/Earthshaking, tinha diferentes pontos de vista, havia uma vertente mais ligada às práticas artísticas, uma mais activista, uma mais próxima a questões sociais, e se quisermos então, por exemplo, este lado de manter (keeping) reflecte-se em algumas participações que se relacionam com arte participativa, práticas comunitárias e por outro lado este shaking com algumas participações mais de denuncia, de chamar a atenção para questões que têm que ser mudadas. Nós, por um lado quisemos manter esta pluralidade de perspectivas e por outro lado, voltando à tua questão, achamos que no século XXI isto ainda nos podia permitir uma co-presença de participações na exposição e ao mesmo tempo abrir não apenas para mulheres, como é o caso da revista, mas manter o feminismo como posicionamento político.
AG: Desculpem, vou interromper-vos para acrescentar algo mais à minha pergunta inicial. A capa da revista Heresies #13 é muito emblemática, é um vulcão, por isso pensa-se, logo, numa erupção. Mas as erupções são também muito férteis; fazem tabula rasa, fertilizam o terreno, ao que se segue um novo crescimento. É esta associação de ideias que tiveram em conta?
GL e VB: Sim, absolutamente, esse lado transformador.
GL: Destruir e criar, o que de uma certa maneira tem que ver com o ciclo vital. Esta capa foi escolhida num momento em que o comité editorial estava a preparar a revista, preparação que durou cerca de dois anos e meio. Nos Estados Unidos, o vulcão Mount St. Helens [Santa Helena] eruptiu, e o grupo decidiu pôr uma imagem desta erupção na capa da revista. Nós escolhemos mostrar, por outro lado, uma fotografia de Mónica de Miranda de uma paisagem vulcânica da Ilha de Fogo, em Cabo Verde, Eruption de 2017, porque nos interessava muito ancorar este discurso no presente, em Portugal. E Portugal significa também toda a sua história, incluindo a sua história colonial. Isso para nós era muito importante.
VB: É verdade também que depois de termos começado a trabalhar ainda pensámos noutro título possível. Andamos às voltas para voltar à ideia inicial. Complementamos com esta segunda parte do título mas achamos que “Earthkeeping / Earthshaking” ainda pudesse manter uma ideia geral daquilo que nos queríamos transmitir.
GL: Para poder usar este título, escrevemos àxs membrxs do comité editorial de Heresies 13 e pedimos-lhes se concordavam com o uso deste título para a exposição em Lisboa. Não sabíamos como é que a proposta seria recebida e na verdade todas foram muito abertas e generosas. Aliás, no catálogo vai haver entrevistas com um conjunto de artistas que participou no comité editorial da revista. Infelizmente não conseguimos entrar em contacto com duas artistas no comité. E algumas, como Ana Mendieta, faleceram.
AG: Sim, porque vocês falam de arte, feminismos (no plural) e ecologia. Arte uma e toda, feminismos múltiplos e ecologia como um todo.
GL: Em relação a feminismos (no plural), nós não queríamos fechar esta palavra. Para já, não se trata aqui de ‘arte feminista’ mas de ‘arte e feminismos e ecologia’ porque queríamos justamente preservar a fluidez das diferentes relações que cada artista tece com estes termos, e que estes termos tecem uns com os outros nas obras apresentadas. Por exemplo, Lourdes Castro não é uma artista que se tenha, nem no seu discurso, nem na sua obra, conectado com questões feministas de forma explicita. Ao mesmo tempo, interessava-nos muito pensar que os feminismos tiveram um impacto e uma relação muito específica com as práticas artísticas em Portugal nos anos sessenta e setenta, bastante diferente de outros países. Queríamos testar, por exemplo, como é que seria a obra de Lourdes Castro vista nesta perspetiva, em diálogo com trabalhos de artistas como a Faith Wilding ou a Cecilia Vicuña. Ou seja, feminismos refere-se também à abordagem que nós utilizamos para fazer a exposição, e às bases teóricas que informam a nossa prática. E, de forma geral, queríamos que as relações ensaiadas neste projecto fossem plurais e não fechadas.
VB: Sim, e ao mesmo tempo também, tendo em conta que este número da revista se foca, como outras, no trabalho de artistas mulheres, como tinha comentado há pouco, queríamos que esta ideia de feminismo não fosse apenas: arte feminista igual a artistas mulheres, mas que fosse abordada como um posicionamento, como qualquer coisa de mais abrangente, não apenas como ser mulher, ser homem numa dualidade.
GL: Exatamente! Um posicionamento político, uma posição que qualquer um pode decidir ocupar. Ao mesmo tempo, queríamos mostrar que as artistas foram pioneiras em pensar as relações entre arte e ecologia. Na entrada da exposição, mostramos um artigo sobre práticas de escultura no ambiente em que muitas das artistas mencionadas são pouco ou nada conhecidas internacionalmente... Maren Hassinger, por exemplo, é uma artista com um trabalho fabuloso, muito interessante. Na exposição, apresentamos a documentação de uma performance dela.
VB: E entretanto, o título da revista era a possibilidade de mantermos uma referência à própria revista, que está posicionada num tempo, 1981, num contexto geográfico especifico, uma revista norte americana, que quisemos trazer para o contexto local, colocando-a em diálogo com artistas que nos mesmos anos em Portugal estavam a preocupar-se com questões ecológicas de uma maneira mais ou menos explícita. Destacar, portanto, se quisermos, um corte histórico, na exposição e ancorá-la ao sítio onde estamos, ao nosso presente, 2020, com artistas activos aqui, e também de outra geração que podem não ser de aqui mas que interagem com o contexto onde estamos, e daí tecer estas relações ao longo da exposição.
GL: De certa maneira, talvez essa imagem de Cecília Vicuña, que mostra alguns fios vermelhos entrelaçados, materialize um pouco o que tencionávamos fazer com esta exposição, no sentido em que existem fios invisíveis que, de facto, saem daqui e vão para outros sítios. São, por exemplo, os fios que nos ligam às artistas que participaram no comité editorial, cujo trabalho artístico na maior parte dos casos não está presente na exposição, embora as suas vozes estejam incluídas no catálogo. Aliás, este projeto pretende ser apenas um contributo para um debate mais amplo que compreende muitos mais artistas e muitos mais curadores e mais perspetivas críticas. Neste sentido, a exposição posiciona-se como um possível cruzamento de trajetórias que poderá vir a abrir espaço para futuras colaborações, para futuros diálogos.
VB: Manifesta uma vontade de fazer parte de uma constelação onde também queremos posicionar-nos conscientes de outras exposições que foram feitas (no passado mais recente e dentro de Portugal, pensemos nas exposições Eco-Visionaries, Maat, 2018; Plant revolution, CIAJG, 2019; Topografias rurais, Galeria Quadrum, 2019-2020) e mantê-las presentes sem nenhuma tentativa de sobreposição e ao mesmo tempo abrir para outros possíveis caminhos. É uma voz possível entre muitas.
AG: Uma exposição é um processo complexo de ajustes e negociações. Há dias, enquanto preparava a nossa conversa, vi uma entrevista ao George Steiner na qual dizia que o acto crítico mais complexo, como a mais inocente leitura de gosto, pertencem a uma mesma dívida de amor no sentido em que as grandes obras lato sensu, são capazes de nos abanarem como ventos de tempestade e abrir as portas da nossa percepção mas também pôr em causa a estrutura das nossas convicções. Qual o balanço que fazem da exposição e/ou do processo que, segundo sei, foi longo, que vos levou até a sua concretização?
VB: Foi um processo longo, e realmente confirmou que não é o ponto final que realmente interessa, mas todo este caminho, que foi um caminho de relações, de trocas de ideias, de muito afecto que circulou, logo desde o início, quando contactámos o comité editorial que recebeu com muito entusiasmo a nossa vontade de fazer uma exposição a partir desta revista e isso deu-nos muita boa energia e ainda mais vontade, e fez-nos acreditar muito mais no projecto que estávamos a fazer. Recebemos muita generosidade, que não é um dado obvio, e realmente faz com que se torne possível trabalhar criando laços de afectividade e de trocas muito fortes. Por exemplo, convidamos Gioconda Belli a participar (e ela tinha participado na revista com um poema chamado La Madre), e recebemos rapidamente resposta ao nosso convite com esta poesia: Consejos para la mujer fuerte.” E é preciso muito pouco às vezes, e realmente nestes momentos sentes uma participação muito forte, uma vontade de estar e de acreditar no projecto, que nos ajudou apesar das dificuldades que eventualmente podiam chegar a acontecer depois. Tentar conjugar vozes diferentes dentro do mesmo discurso, estar a lidar com questões de orçamento, por exemplo, ou ter que atravessar uma paragem total e conseguinte incerteza com o começo da pandemia. Acho que a curadoria tem esse lado de amor para ultrapassar tudo, ou ao menos tentar, e para cuidar e para poder tornar possível uma exposição. Este foi, obviamente, um projecto a dois e isso fortaleceu-nos imenso.
GL: Acho que este projeto não seria o que é se fosse só meu ou só da Vanessa. Tivemos sorte porque temos muitas afinidades. A Vanessa é uma das poucas pessoas que conheço que, quando lida com os outros e as outras — agora vou emocionar-me! —, tem uma sensibilidade, uma generosidade, que é muito semelhante àquela que eu gostaria de ter e que tento ter. E isso para mim foi fundamental na colaboração. Claramente, e aqui vou mostrar o outro lado da medalha, não foi sempre fácil porque, apesar de ter corrido muito bem, em geral, houve momentos em que tivemos algumas dificuldades e foi necessário negociar. Acho que o que ajudou muito é que existiu — eu tento ter, mas sei que a Vanessa tem — uma certa humildade.
VB: Tentámos encontrar um equilíbrio e isso é muito importante.
GL: E o que ajudou muito foi o entusiasmo com que as artistas e os artistas aderiram ao projecto. Isso foi o que nos fez ultrapassar as dificuldades. Outro fator importante é que encontrámos nas Galerias Municipais um interlocutor como o André Maranha que nos ajudou, enquanto arquiteto, no projecto da exposição e que acompanhou todo o processo de preparação como uma espécie de interlocutor privilegiado...
VB: De privilégio nosso.
GL. Sim, de privilégio nosso. Ajudou muito a concretizar o projeto na sua fase final, na fase de trabalho no espaço que sempre é um pouco diferente do que se tinha planeado. Nós trabalhamos muito em âmbito académico, no campo da História da Arte, ir assim para o espaço desta vez foi maravilhoso e o André ajudou muito.
AG: Ajudou a “ver” como o espaço iria receber as obras.
GL: Foi um trabalho também em diálogo.
AG: Qual o apoio discursivo que acham imprescindível para acompanhar a exposição e o vosso trabalho, obviamente. Descrições extensas? Complementaridade entre a experiência das obras e a descrição?
GL: Na verdade acho que o melhor material de apoio é ler a revista que está online e é um material fantástico para acompanhar a exposição. A seguir, o catálogo será importante.
VB: Estamos a trabalhar para que o catálogo possa sair em setembro e inclui uma série de participações: um texto de Lucy Lippard que fazia parte do comité editorial, um curador colombiano, um filósofo italiano, um texto nosso e entrevistas realizadas durante o confinamento a artistas que participaram nesse número da revista.
AG: Acham que faz falta ter alguma informação na exposição?
GL: Pensámos muito sobre este assunto. Existe um texto breve na folha de sala mas queríamos que houvesse antes de tudo um encontro muito directo com as obras, uma experiência física e emocional do espaço. Até porque na galeria há palavras escritas e faladas...
VB: E lento também.
GL: Vamos ter uma folha de sala mais extensa que será publicada online — ainda não está porque é preciso traduzir alguns textos. Pedimos às artistas e aos artistas se gostariam de acompanhar a sua obra com um texto na folha de sala. Assim, certos artistas enviaram-nos textos que estarão disponíveis na folha de sala extensa.
VB: Outros acharam que a obra falava por si.
GL: Naturalmente que há obras que são muito mais imediatas e outras que precisam de mais acompanhamento discursivo.
AG: O que é que as mulheres podem fazer acerca da direção desastrosa que o mundo está a tomar [2]?
Gl: Parece-me muito importante que os feminismos, hoje em dia, abranjam também de forma radical a luta para o ambiente e que esta intersecção seja forte, que seja mesmo uma intersecção pensada como necessária e que incorpore uma crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo. É muito importante, acho, pensar os feminismos nesses cruzamentos, que incluem também as relações raciais, de classe, de género...
VB: Penso que — não sei se apenas as mulheres — é importante e urgente criar relações a partir de como nos podemos ajudar uns aos outros. Como podemos criar laços de apoio e solidariedade, através também de uma ecologia da palavra, das relações de pluralidade e convivência de pontos de vista, com todas as dificuldades que isso implica. E este pode ser um caminho possível também para ultrapassar sistemas centralizados tanto do ponto de vista económico, como político, para possibilitar coexistências. Um co-estar e um con-viver.
GL: O sistema político e económico empurra-nos cada vez mais, tanto na academia como no mundo das artes, para uma lógica de competição. Nesta exposição, tentamos partir de pressupostos diferentes. Como é que conseguimos contrariar esta aparente necessidade de competir tecendo laços que incluam os outros? O sistema precário em que muitos de nós trabalham leva-nos a crer que temos que fazer um caminho bastante individualista para não afundar quando na verdade contrariar este individualismo trabalhando juntos é um acto político.
Galeria Quadrum/Galerias Municipais de Lisboa
Antonia Gaeta (Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha. Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
[1] Excerto do texto curatorial da exposição.
[2] Pergunta/convite dirigido às artista para participarem à revista Heresies #13.
Earthkeeping / Earthshaking — arte, feminismos e ecologia. Vistas da exposição na Galeria Quadrum. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia de Galerias Municipais/Egeac.