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Rudi Brito: Hora de Ferro

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Margarida Mendes

Visão Estelar

Vitrais, rosáceas, labirínticas. Pinturas que surgem como uma panóplia de afterimages que se refractem no olhar, encapturando a íris que se expande ao enquadramento da tela. Caleidoscópicas, extasiantes. Imagens que se multiplicam na espectralidade mimética da sua repetição. Murmúrios de primavera, gritante. Jardins de hortenses que se abrem com a estratégia de um rizoma-coral.

 

 

A pintura de Rudi Brito abre-nos à frescura lírica de um impressionismo psicadélico na era do pós-digital. Tão cativantes quão magnéticas, as suas imagens infiltram-se como espectros que desconstroem o processo óptico, aqui expandido e diagramado através de filtros e sobreposições de camadas de cor. Viajamos por elas como passando através de um caleidoscópio, perdendo a ideia de escala assim que estas se acoplam ao olhar, do seu vortéx fazendo o mundo refractar.

Este é um psicadelismo do quotidiano, que encena cenários fugazes, singelas abstracções, enquadramentos de botas de cowboy e outros elementos naturais que se repetem, desfazem e distendem, muitas vezes em close-up, relembrando-nos a mediação imagética provinda da Pictures Generation. Imagens do dia-a-dia, pedaços de céu, respiros ambientais. Estamos presos no emaranhamento da imagem, questionando o foco da origem e a hauntologia da sua repetição. Como navegar este oceano de espectros e fazer sentido das múltiplas camadas de realidade que nos acercam, as virtuais, bem como as tangíveis? E que impressão retínica, epidérmica e neuro associativa deixarão estas no processo de devir ao mundo como seres sensoriais?

Há um pendor rítmico que entrelaça e refaz espaço na sua pintura. Um experimentalismo aberto, que arrisca fugas entre uma realidade abstraída, imagens que se recortam, emergem, e sobrepõem, dando terreno fértil a jogos de cor e luz. A sua mais recente exposição na Galeria Balcony, denominada Hora de Ferro, toma partido do espaço lumínico indicado pela expressão francesa Entre chien et loup, Entre o cão e o lobo ou Hora azul. Esta é também reconhecida como o momento do crepúsculo onde os tons malva, azulados e prata se entrelaçam no horizonte, suavizando a densidade dos elementos que cedo passam a ser vistos num espaço que funde a tridimensionalidade, amainados pelo activar de outras células ópticas, e uma dimensão de deleite que sobrevoa a Terra.

É a partir da diluição deste jogo de perspectivas que Rudi Brito opera, quebrando regras clássicas de composição e fractalizando o espaço pictórico segundo a intuição do seu processo criativo. A frescura do esmalte aplicado em papel impermeabilizado permite à tinta reter um vitalismo líquido, que proporciona novos modos de pintar. Partindo do grande plano para o fundo, trabalhando a escala com diferentes motivos que entrelaçam o espaço com os seus elementos. Sobreposições de grelhas e grades que se fundem, dando novos enquadramentos e dimensões ao que emerge por detrás. Contra o espaço reticulado de um mundo excessivamente quantificado, o espaço pictórico que propõe abre o potencial da diluição de fronteiras e escalas, originando a pura imersão sensorial.

 

black star fuzz
cama com picos
every birdsong is a blessing
olho de boi no cerebro
RB08
soft head
stoned
theft of stages
they were blessed and cursed with visitors

 

A irreverência criativa das pinturas de Rudi Brito, fá-lo um dos mais prolíferos artistas da sua geração. Nelas podemos beber da jovialidade jocosa de artistas como Ana Jotta, sentir ecos em técnicas e enquadramentos formais aplicados por Ana Vidigal, bem como intuir uma afinidade aos alfabetos pictóricos de Isabel Carvalho — por sua vez inspirados na desconstrução barroca de Ana Hatherly. Artistas com amplo percurso de exploração criativa, que aqui se cruzam com a geração emergente, mais afim da exploração do traço livre, exposta à confluência de movimentos históricos e à pictorialidade na era pós-digital.

Estas são referências que se cruzam no espaço de convívio e cruzamento de práticas que dão vida às novas colectividades da cidade de Lisboa, onde Rudi Brito desempenha um papel activo como membro do estúdio Purga. No seu estúdio organiza mostras de jovens artistas, dando espaço a vozes da nova geração de pintores, que aqui apresentam as suas criações. O seu trabalho foi também mostrado no antigo atelier de Pedro Barateiro — berço do espaço de mostra Spirit Shop — ou nas Segundas na Z, serão semanal na Galeria Zé dos Bois, onde uma série de artistas emergentes, poetas, músicos e performers têm vindo a partilhar o seu trabalho de forma mais livre e ousada.

Nestes espaços de mostra irreverente, tais como o Cosmos, podemos ter visto também Rudi Brito tocar, cruzando música ambient, com field recordings, ou electrónica experimental, em sets íntimos que convidam a viagens interiores. Nestes concertos, a refracção da música de Rudi Brito trabalha em nós, abrindo a uma sensorialidade entrelaçada que se expande, lembrando as experiências nos anos 60, onde músicos e artistas colaboravam, em conjunto, para proporcionarem vivências sensoriais expandidas. Foram estes os tempos em que se fizeram experiências como o movimento cinemático visual music, ou se construíram os primeiros órgãos de luz, abrindo a novas possibilidades da senciência sensorial e a renovadas neuropercepções. E se olharmos para as suas pinturas como trechos de partituras, também elas musicais, ou pensarmos nas suas camadas filtrantes como um espaço de drone visual?

Ao sair da exposição, numa noite estelar que se anunciava primaveril, fomos deliciados pela visão celestial de uma nuvem de traças esvoaçando, em grande escala. Esta pintura reclinada no tecto de uma praceta nocturna, serviu aqui de portal para o inspiration point no limite da cidade, onde os afectos se enterlaçam no vórtice de um zénite imaginário. Possibilitando esse espaço de fuga, com as suas pinturas somos convidados a aceitar a dissolução do presente, e com elas fluir e sonhar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rudi Brito

 

Balcony Contemporary Art

 

 

 

 

Margarida Mendes é investigadora, curadora e educadora, A sua prática explora a mediação ecológica, com enfoque no cruzamento entre as artes visuais, cinema experimental, ecopedagogia, práticas sonoras e humanidades ambientais. Cria fóruns transdisciplinares, exposições e obras experimentais em que modos de educação alternativa e práticas de auscultação podem catalisar a imaginação política e ações restauradoras. Tem um envolvimento de longa data com activismo anti-extrativista e ecopedagogia, colaborando com organizações ambientais, Universidades e instituições do mundo artístico. Integrou na equipa curatorial da 11th Gwangju Biennale "The 8th Climate (What Does Art Do?)", 4th Istanbul Design Biennial "A School of Schools", e 11th Liverpool Biennale "The Stomach and the Port". Dirigiu diversas plataformas educacionais, como escuelita, uma escola informal do Centro de Arte Dos de Mayo - CA2M, Madrid (2017); O espaço de projectos artísticos The Barber Shop em Lisboa dedicado à pesquisa transdisciplinar (2009-16); e a plataforma de pesquisa curatorial sobre ecologia The World In Which We Occur/Matter in Flux (2014-18).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

 

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Rudi Brito, Hora de Ferro [2023]. Vistas da exposição na Balcony Contemporary Art. Fotografia: João Neves. Cortesia do artista e Balcony Contemporary Art.

 

 

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