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Futuros da Liberdade

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Maria Kruglyak

 

O 25 de Abril é um dia de celebração e comemoração, mas também de protesto e rememoração. Sendo a data que marca o fim do Estado Novo, que caiu há 49 anos,[1] define-se igualmente por um complexo elenco de entendimentos histórico-presentes-futuros. Foi precisamente este conjunto de perspetivas que o festival de arte multidisciplinar Futuros da Liberdade procurou abordar com fervor e entusiasmo, ligando a memória de 1974 à ambivalência da realidade dos dias de hoje e do futuro.

Organizado pela Rua das Gaivotas 6 e pela Supermala no enquadramento da data, Futuros da Liberdade conjugou, ao longo de três dias, a culinária, a música, a prática da instalação e a arte performativa para gerar um arco de experiências celebrativas que remetem diretamente para as festividades comunitárias, não esquecendo as subtis críticas que uma celebração honesta do 25 de Abril terá de confrontar. Neste sentido, o primeiro dia de festival foi especialmente impactante, tendo decorrido na rua que serve a MALA, galeria fundada por Sofia Montanha e Henrique Loja em 2020, na Ajuda, e incluindo não só a inauguração de Self-will Run Riot, exposição individual de Leonor Parda, artista que se concentra na prática da instalação e na arte comunitária, mas também um cativante concerto de rua da Escola de Fados da Ajuda. Num convívio largo em vinho, cerveja e bifanas, gerou-se um equilíbrio minucioso entre o sentido de comunidade da zona e a matéria crítica da exposição de Parda: máquinas improvisadas de violência autoinfligida através de ações, instalações espontâneas e registos fotográficos. Ainda que a frase "Self-will is a riot, Leonor is revolution" [A vontade própria é tumulto, Leonor é revolução], que se encontra na folha de sala da exposição, pareça algo exagerada, a própria reflexão sobre a estética masoquista dos nossos dias é especialmente bem-vinda — em particular no contexto do futuro de liberdade para que o nome de festival remete. Como Audre Lorde refere numa entrevista que deu a Susan Leigh Star, "[…] o sadomasoquismo não pode ser compreendido separadamente das questões económicas e sociais que envolvem as nossas comunidades, porque reflete toda uma tendência social e económica deste país."[2]

De forma idêntica, a voluptuosa conjugação de prazer e dor que se observa na pungente exposição de Parda parte diretamente da própria violência que permeia a nossa existência. Talvez tenha sido por isso que os membros da Escola de Fados da Ajuda não se mostraram surpreendidos, tendo vários deles nascido durante o Estado Novo e inclusivamente trazido, até aos dias de hoje, o fado, a canção popular de sobrevivência que as gerações mais jovens desconsideram pelo seguimento que lhe foi dado durante os tempos da ditadura. As placas de metal que fazem parte da exposição e que foram soldadas in situ nas ruas da Ajuda — uma situação que acabou por entreter os vizinhos, a quem (assim me diz o Henrique Loja, da MALA) aprazeu especialmente ver uma mulher a soldar metal na rua — abordam a violência que hoje nos é imposta, num momento em que enfrentamos uma crise financeira suscitada pelo aumento do custo de vida, a presença opressiva do turismo e um governo que, para muitos, parece não agir em virtude dos interesses coletivos. É especialmente impactante uma peça em particular: Afterparty (2023), que apresenta fotografias de cicatrizes geradas pela destruição que a noite pode trazer. Aqui, fica a ideia de que acabamos por infligir esta violência em nós próprios quando, no furor do álcool e na indiferença da juventude, atraímos uma violência autoinfligida. É apenas no contexto de um espaço expositivo que podemos compreender o sentido mais profundo e sistemático do acontecimento como um produto da estrutura de poder que habitamos e na qual participamos (muitas vezes voluntariamente).

Também a performance POWER, de António Onio, que decorreu na Rua das Gaivotas 6 no segundo dia do festival, joga com esta contínua turbulência entre o passado, o presente e o futuro. Baixando-se as luzes e serenando-se a audiência na expetativa do início da apresentação, uma gravação de voz do próprio Onio, primeiro em português e depois em inglês, enuncia: "Bem-vindos a esta performance. Nesta performance, vocês vão fazer-me perguntas, e eu vou dançar."[3] Onio é perito em gerar uma envolvência de intimidade, e no desenrolar da performance o público vai-se sentindo cada vez mais à vontade no papel que lhe compete, lançando questões às quais o artista oferece respostas incisivas e bem-humoradas que produzem um sentido de leveza e de acolhimento. Onio continua a responder e a dançar, até que, a dada altura, o público é levado a assumir uma posição que, de forma inesperada, reveste a atmosfera de inquietação. Recorda-me isto uma frase amplamente citada do cineasta Fatih Akin:

"Porque, quando o público se ri, as suas almas como que se abrem; e, quando se tem um público de alma aberta, é muito melhor esfaqueá-lo."

[4]

De forma idêntica, Onio encaminha delicadamente o seu público na direção de um locus de vulnerabilidade e recetividade; e nós, relaxades e à gargalhada, não estamos preparades para o que aí vem. É então que Onio nos faz viajar pela sua memória da carnificina dos tempos do Portugal colonial, numa temporalidade em que o artista (ou, antes, a sua personagem) toma parte ativa a pegar fogo a uma aldeia, tentando depois resgatar duas crianças que, como virá rapidamente a descobrir, acabam por morrer à fome. Esta é a nossa história, declara POWER. Este é o passado da liberdade. É com isto que temos de viver; são estas as memórias coletivas que, na nossa ignorância, todos enfrentamos. O artista, por fim, enfia a faca bem fundo, terminando com uma dança acompanhada por um discurso cuja honestidade até faz o público suster a respiração; as suas palavras assumem que não tem vergonha, mas que o pesadelo persiste até aos dias de hoje, carregando em si as memórias inaceitáveis do passado colonial.

O último dia do festival, por sua vez, foi de pura celebração, incluindo uma performance gastronómica baseada nos excelentes cozinhados de Joana Trindade Bento e na investigação (e também na excelente receita de feijoada) de Eunice Meneses. Com um pensamento e um gosto de excelência, a performance procurou sublinhar o facto de que, não obstante um influxo monetário supostamente superior, a dieta portuguesa não mudou, encontrando-se a maior parte da população limitada a ingredientes como o feijão, a couve e as diferentes carnes do porco, criando a partir daí pratos tradicionais formidáveis. Ainda assim, este momento não me encheu as medidas no que toca à sua profundidade metafísica, principalmente devido à sua necessidade de ativação — uma questão que talvez se justifique pela novidade da colaboração e pela familiaridade do público, ainda que em mim não restem dúvidas de que ambas as artistas nos trarão performances gastronómicas ainda mais cativantes e interessantes no futuro, tanto em conjunto como a solo. De qualquer forma, foi um momento de absoluta celebração que terminou nas festividades noturnas organizadas por Tita Maravilha e Oseias — esta parte, confesso, não pude testemunhar.

Futuros da Liberdade, desta forma, conseguiu realizar o inesperado, congregando as complexidades e as contestações do passado, do presente e futuro. Um dia de histórias multifacetadas acabou então por convergir numa celebração que juntou as contradições à sensibilidade de um programa que, ao longo de três dias, nos relembrou de que a luta pela liberdade, pela paz e pela igualdade jamais poderá estar desvinculada das dolorosas memórias de tempos idos.

 

Rua das Gaivotas 6

SUPERMALA

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN: Diogo Montenegro

 

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Futuros da Liberdade. Vistas gerais dos vários momentos e performances na Supermala e na Rua das Gaivotas 6. Fotos: © Paula Malinowska. Cortesia de Supermala e Rua das Gaivotas 6.


Notas:

 

[1] O Estado Novo de Salazar foi o regime ditatorial que dominou Portugal entre 1933 e 1974. Terminou com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, num golpe de estado liderado por um movimento militar a que um conjunto de organizações da classe trabalhadora deram continuidade nos anos que se lhe seguiram. Uma das causas fundamentais da revolução foi a luta decolonial que se desenrolava nas antigas colónias portuguesas em África, onde resultou num maior desgaste económico e na morte de um sem-número de soldados portugueses. 

[2] Susan Leigh Star e Audre Lorde, "Sadomasochism: Not About Condemnation", A Burst of Light: Essays by Audre Lorde (Firebrand Books, 1988). A citação completa: "No contexto da comunidade feminista lésbica, o sadomasoquismo não pode ser compreendido separadamente das questões económicas e sociais que envolvem as nossas comunidades, porque reflete toda uma tendência social e económica deste país."

[3] Paráfrase que, no entanto, retém o sentido do enunciado. A performance altera-se em conformidade com o seu público, ainda que ponto culminante da narração se mantenha.

[4] Wendy Mitchell, "Going to Extremes: Fatih Akin on His Turkish-German Love Story «Head-On»", indiewire (19 de janeiro de 2005): indiewire.com/features/general/going-to-extremes-fatih-akin-on-his-turkish-german-love-story-head-on-78433/.

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