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Rendering Pyramids

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Paula Ferreira

 

            No princípio era o ermo.[1]

 

A voz lúgubre que entoa esse verso é também um fantasma que narra uma sina inerente à experiência histórica da formação do Brasil contemporâneo. Um país marcado pela utopia positivista e tecnocrata que, no entanto, parece ter se perdido pelo caminho. No lugar desse ideal, que nunca chegou a encontrar as condições materiais para se concretizar, restou um vórtice (talvez infinito) de contradições e reveses, sobre os quais nove artistas se debruçam para pensar esse país que, ainda hoje, parece refém de alguns dos fantasmas que o assombram desde a sua colonização.

Rendering Pyramids, mostra de vídeos patente na plataforma digital Hangar-online até o dia 6 de maio, propõe uma revisitação a esse passado do país. Pela curadoria de Raphael Fonseca, estão reunidos nove artistas que trabalham com media digitais e sete obras (duas das quais são colaborações entre dois artistas). Entre a criação de imagens por softwares e uma espécie de assemblage de imagens documentais manipuladas digitalmente, os trabalhos se empenham em um exercício comum para desvelar camadas de herança histórica — sempre sob uma perspectiva essencialmente contemporânea. Quando os artistas “revisitam” o passado, entretanto não o fazem em busca de um sentido nostálgico ou saudosista. Pelo contrário, o fazem enquanto método para moldar, inventar, fragmentar, reconstruir e virar esse passado ao avesso, fazendo nascer daí um novo imaginário sobre o Brasil.

Em Os Ossos do Mundo, livro do escritor modernista Flávio de Carvalho, no prefácio escrito por Gilberto Freyre há uma passagem que diz que é no arregalar dos olhos de menino e às vezes de doido que o autor é capaz de ver o mundo. De enxergar as relações entre as coisas e ver aquilo que “os adultos sofisticados” não conseguem ver[2]. Sem necessariamente essa intenção, Freyre acaba por referir a um dos papéis essenciais da própria prática artística: a de desvelar as coisas do mundo. Ao olhar para o trabalho que Raphael Fonseca vem desenvolvendo ao longo da última década, é possível perceber que parte de seu pensamento curatorial vive justamente de uma necessidade em questionar as bases epistêmicas que sustentam as categorias pelas quais aprendemos, classificamos e representamos o mundo.

No caso de Rendering Pyramids, é preciso reconhecer a sensibilidade do curador em conciliar trabalhos que manifestam esse mesmo ímpeto questionador. Nas obras que compõem a mostra, um olhar cuidadoso consegue identificar duas ideias trabalhadas atenciosamente pelos artistas — ainda que o façam de maneiras bastante díspares entre si. Uma é a do tempo enquanto entidade linear, irreversível e determinante. A outra é a da construção da própria identidade nacional brasileira e do seu imaginário.

Antes de analisar a particularidade dos mecanismos utilizados e dos caminhos percorridos por cada uma das obras para elaborar novas hipóteses acerca dessas ideias, é possível apontar para um elemento que se mostra transversal em todas elas e que também merece ser destacado. A escolha por vídeos criados a partir de imagens geradas ou manipuladas digitalmente não é ocasional, mas sim expressão de uma espécie de espírito pós-moderno, que cria, dentro de sua linguagem visual própria, uma maneira de repensar as formas tradicionais de representação. Renderizar Pirâmides, como evoca o título em português, significa encontrar no cerne das imagens digitais um caminho para a erupção de ideias cristalizadas e inertes acerca dos conceitos de temporalidade e identidade nacional. Imagens geradas por computadores, sem lastro de origem na realidade, ou colagens digitais que fogem às convenções estéticas, provocam no espectador uma espécie de memória construída pela imaginação. Nesse jogo que aproxima a ficção da realidade, é preciso uma viagem no tempo para reinventar o significado das coisas.

O tempo a morder a própria cauda

No arrebatador fluxo imagético que resulta da conjugação dos trabalhos apresentados na mostra, passado, presente e futuro se encontram, dissolvendo a experiência linear do tempo. Nessa desarticulação cronológica, eis que surge uma panóplia de hipóteses de espaços-tempo imaginários. Em A Cristalização de Brasília (Guerreiro do Divino Amor, 2019), os anos do pensamento utópico que fundamentou a construção da capital brasileira são revisitados como maneira de lançar um olhar profundamente crítico sobre o presente e, simultaneamente, projetar uma distópica visão de futuro. Pela sobreposição de imagens documentais e animações digitais, o artista trabalha como um arqueólogo digital, desvelando as camadas de realidade e de ficção do passado mitológico de Brasília, como forma de desafiar os regimes hegemônicos de representação. Na narração cuidadosamente pensada que acompanha o vídeo, também são confrontados dados históricos com aquilo que a obra chama de “superficção” — enquanto um eco de Vinícius de Moraes recita o poema musicado Brasília, Sinfonia da Alvorada.

Por uma lógica próxima, Ibiritaquera (Darks Miranda e Pedro França, 2016) encontra no Monumento às Bandeiras[3] a representação de um passado-presente de imaginário profundamente colonialista. Em uma sequência de imagens digitalmente criadas, a obra sugere uma reflexão sobre as tradições que ainda hoje moldam a sociedade brasileira ao mesmo tempo em que projeta uma hipótese de futuro, no qual parece possível vingar essa herança conservadora. É em um movimento bastante alegórico que uma natureza anárquica cresce dominante sobre o monumento e a cidade ao seu redor.

Em Kebranto (Jonas Van e Juno B, 2021-22), é o retorno a um passado ainda mais longíquo que conduz à ressignificação do presente-futuro. No vídeo, é em um negro vácuo espacial, — o qual, aos poucos, começa a ser preenchido por esferas de luz e pelo simulacro de paisagens e figuras naturais — que se recria a lenda de Boitatá. Serpente de fogo com poderes místicos, essa figura do folclore brasileiro é utilizada simbolicamente para introduzir pedaços de ficção em um passado-presente imaginado. Esse sagaz mecanismo contrapõe tradição e contemporaneidade ao recriar a lenda sob uma perspectiva que questiona a visão binária e heteronormativa de gênero — e, assim, aponta para a necessidade de repensar as formas dominantes de compreensão, narração e interpretação da História.

Em movimentos que acabam por criar vácuos e desintegrar por completo as noções de temporalidade, Tropical Landscape Solutions (Gabriel Junqueira, 2017) e Elefante na Sala, Monolito Embaixo da Cama (Marcus Deusdedit) são duas obras que pensam a apropriação, a montagem e as imagens descontextualizadas como mecanismos para construir narrativas e propor reflexões acerca das bases políticas, éticas, históricas e filosóficas que sustentam uma sociedade. Em ambas, a interação criada entre essas imagens estabelece um jogo dialético que expande o território geográfico e cognitivo abrangido pela mostra.

Um recurso visual muito próximo está presente em BVGO (biaritzzz, 2017), dessa vez alinhado à animação — naquilo que talvez seja a obra mais apocalíptica do conjunto. No confronto entre excertos de vídeos de manifestantes indígenas, imagens de jogos de realidade virtual, telas do jogo GTA e uma confusa narração jornalística, se evidencia uma contemporaneidade imersa em uma violenta fragilidade social. Aqui, o retorno ao passado recente não vislumbra nenhum alento ou sentimento de redenção. Já @ilusão (Vitória Cribb, 2020), obra que, na correta cronologia, inaugura a mostra, integra imagens criadas em softwares a uma narrativa guiada por mensagens de áudio em tom intimista. Nas evoluções monstruosas das figuras que povoam o vídeo, o tempo acaba por se convulsionar, transformando-se em uma espiral catalisadora de ansiedades e sentimentos angustiantes — que podem ser entendidos enquanto expressões sintomáticas da contemporaneidade.

O tempo, entretanto, não é o único elemento a ser desvairado em Rendering Pyramids. Como se estivesse diante do Enigma da Esfinge, vemos um Brasil que devora a si mesmo por não conseguir se decifrar. Em meio a iconografia e aos imaginários dos quais as obras se apropriam, a estética se torna o campo da luta de classes — da qual, felizmente, um sentimento libertador sai vitorioso. O que resta desse brilhante vórtice imagético que compõe a mostra é, para além da experiência de suspensão temporal, uma impressão de estarmos diante de um novo pensamento sobre a identidade brasileira. Há, na visão desses artistas, um compromisso despudorado com a ruptura das tradições artísticas eurocêntricas e com o desvelamento das camadas históricas e sociais de sedimentação do poder de representação.      

Não há maneira de colocar isso senão dizendo que os olhares lançados aos diversos passados não se limitam em redescobrir a História. Eles vão além e buscam na implosão do tempo uma maneira de desafiar os regimes de representação hegemônicos e questionar cânones do pensamento colonial. Em universos permeados pela multiplicidade de corpos, linguagens visuais e ruídos, alguma coisa se inaugura. E, se a herança colonial ensinou ao colonizado a enxergar a si mesmo enquanto o Outro, aqui esse Outro se afirma enquanto indivíduo.

 

Rendering Pyramids

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

 

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Rendering Pyramids. Stills dos vídeos, apresentados na mostra on-line Hangar. Imagens, cortesia de Hangar.


Notas:

[1] Frase que inaugura o poema musicado “Brasília, Sinfonia da Alvorada”, de Vinícius de Moares e Tom Jobim.

[2] DE REZENDE CARVALHO, Flavio. Os Ossos do Mundo. ARIEL, Rio de Janeiro, 1936. Prefácio por Gilberto Freyre.

[3] O Monumento às Bandeiras é uma obra do escultor Victor Brecheret em homenagem aos bandeirantes (sertanistas do período colonial). Foi inaugurada em 1953, como parte das comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.

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