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Guardar os Olhos no Bolso

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Paula Ferreira

 

Há uma voz ao longe que, sorrateiramente, se aconchega ao pé dos ouvidos. Há, pelo ar, uma voz que rodopia e inunda, aos poucos, o espaço com a sua presença. Há, no movimento serpenteante da voz, um círculo que se desenha. Há um sussurro discreto, mas persistente, que flutua pelos tímpanos adentro mesmo que não se queira. Há, em tal voz, uma firmeza e um enigma. As coisas que acontecem no mundo e há aqui uma marcha em eterno loop.

É pela discreta onipresença de tal voz, a repetir incessantemente o texto , da artista Cristina Mateus, que a exposição Guardar os Olhos no Bolso se inaugura. Como se pudesse o pensamento falar em voz alta, as palavras de teor confessional são reproduzidas em loop a elucubrar sobre as coisas que se passam na vida. A partir delas, se desenha no espaço um círculo imaginário, ao redor do qual outras obras de Aida Castro e Maria Mire, Associação Amigos da Praça dx Anjx, Fernando José Pereira, Francisca Carvalho + Paulo T. Silva, Horácio Frutuoso, Isabel Baraona, João Fonte Santa, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Missing Artist Foundation, Nuno Ramalho, PIZZ BUIN, e as trinta e cinco edições do projeto Inland Journal têm um feliz encontro com parte do acervo de Júlio Pomar.

Do desafio em entrelaçar o projeto editorial de André Cepeda e Eduardo Matos, cujo principal ensejo envolve dar aos artistas um espaço para a reflexão sobre suas práticas (em forma de texto ou de imagem), com o corpo de trabalho de um artista cuja produção é tão profícua quanto Júlio Pomar, surge uma exposição que, de certa forma, parece capaz de materializar as ideias em fluxo dentro do espaço expositivo — ou, ainda, fazer delas seres quase tangíveis. É na primeira sala do Atelier-Museu Júlio Pomar que essa impressão começa a se revelar: a partir de quatro mesas em formato de L, é instituído um círculo que centraliza o espaço. Ao redor deste, orbitam instalações sonoras, pinturas, fotografias e litografias fixadas às paredes. Traçar passos por esse espaço cria a possibilidade de uma leitura simultaneamente cíclica e autônoma da exposição.

Com suas curvas vacilantes e seus traços soltos, a série de litografias Catch, de Júlio Pomar, preenche a parede ao fundo da sala, deixando os corpos dançantes influenciarem o olhar (ou talvez seja o pensamento) a desenhar um espaço mental que circunscreve a si mesmo. Quase como se mimetizasse as ideias a nascerem no cérebro, Guardar os Olhos no Bolso não se trata propriamente de uma exposição usual de arte contemporânea, na qual a experiência visual muitas vezes sobrepor-se-ia aos outros sentidos. Há aqui um evidente privilégio pela cognição, e pela possibilidade de ser ela o meio para o pensar e o fazer artísticos — ambos entendidos como duas etapas de um mesmo processo. Em vez do gesto físico, a sinapse. Em vez do fluxo imagético frenético, a reflexão. Assim, se reproduz também na arquitetura da exposição a escolha curatorial de Cepeda e Matos em dar ao público a possibilidade de não se bastar enquanto receptor, mas agir como criador de significados.

Tal caráter emancipatório do espectador em relação à obra de arte não está, entretanto, presente apenas no pensamento dos curadores. Na última edição do Inland Journal, lançada a propósito da inauguração da exposição, está publicada uma parte dos relatórios que Júlio Pomar escreveu durante o tempo em que foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1964 e 1966. Neles, o artista defende, pelas suas palavras e pelas de Bertolt Brecht, um pensamento que resguarda o papel do espectador também como produtor de sentido para a obra de arte. Sob essa mesma perspectiva, se reúne uma panóplia de trabalhos, que também compartilham de um caráter propositalmente dúbio, ambíguo e, por vezes, provocador. Em Guardar os Olhos no Bolso, há o convite a uma experiência antes analítica e crítica do que catártica.

 

 

Tentativa de Reconstrução de Anja Retalhada para Fundição, 354 Kg e Grandiosa Romaria em Homenagem ao Corpo Ausente da Anja, da Associação de Amigos da Praça dx Anjx (aapA), encenam um caminho de retomada simbólica de uma estátua em bronze roubada do espaço público do Porto: A Anja, de autoria de Mestre José Rodrigues. Uma estátua roubada, irrecuperável, cujo furto propulsiona a criação do coletivo aapA. Sobre uma das quatro mesas centrais da exposição, 354 Kg traz uma réplica da cabeça da Anja, feita de argila policromada em tons de azul, a qual descansa ao lado de Tentativa de Reconstrução de Anja Retalhada para Fundição, uma espécie de falsa assemblage, feita sobre impressão fotográfica, que reconstrói o seu corpo imaginado. Ao lado da mesa, um ecrã reproduz em vídeo a romaria performática feita pela aapA no parque onde a estátua originalmente estava. Na parede ao lado, Retrato (duplo) do Artista como Golias, de Júlio Pomar, sobrevoa essas obras.

Há aqui uma proximidade estética entre a pintura de Pomar, a colagem e a cabeça da Anja, que se concentra na fragmentação de suas formas. Entretanto, é ao nível discursivo que a aproximação entre elas desperta maior interesse. Tanto o retrato de Pomar quanto as obras da aapA parecem perseguir, em suas representações, justamente a ausência daquilo que é representado, ou a sua continuação para além do representável. Em Pomar, a indisciplina do gênero pictórico ou a natureza de sua própria relação com aquele que o pintor representa. Nas obras da aapA, o significado da irremediável perda da estátua na realidade concreta da cidade, ou a arte enquanto manifestação do poder de agência dos indivíduos em sociedade. Em ambos, há o reconhecimento de que a obra de arte não termina em si mesma.

É também nessa espécie de vácuo cognoscível que habita parte das obras que ocupam o segundo piso da exposição. Logo na passagem entre a primeira sala e o andar de cima, No Campo Artístico, de Nuno Ramalho, dispõe de dois elementos: uma folha de papel milimetrado em vermelho, com alguns de seus pequenos quadrados preenchidos na mesma cor das margens, resguardada por um vidro, ao pé das escadas; e um movimento acústico criado a partir de duas colunas sonoras, uma instalada no degrau do meio e outra no último. As escadas são, assim, preenchidas por vozes infantis, robóticas e caricaturais, interpeladas por ruídos e gritos, que discutem entre si posições filosóficas sobre a arte. Embora haja ritmo, pausas e frases com nexo na conversa, a ambiência sonora que se cria ameaça se tornar cacofônica a todo o tempo — o que se dá, principalmente, pela estranheza das vozes e pela falta de linearidade no tom dos discursos. Provocante e propositalmente confusa, a obra crava uma afiada agulha na epiderme de um mundo artístico tão hermeticamente fechado em si mesmo que já quase se afundou no lago-espelho. No entanto, não deixa de ser curioso que tal mundo se mostre estranhamente propício a presentear liberdade ao pensamento.

Partilhando de tal bem-humorada acidez, YOLO #1, #2, #3, do coletivo PIZZ BUIN, se encontra à entrada do segundo piso da exposição. Trata-se de três televisores de tubo empilhados, cada um a reproduzir um trecho de aproximadamente vinte minutos de um scroll feito em uma conversa entre as artistas do coletivo em um grupo do Whatsapp. Outra vez, é a arte a falar sobre si mesma nessa versão contemporânea da torre de Babel. Entre memes e apontamentos sobre a filosofia estética, são discutidas as problemáticas referentes ao meio das artes — desde a posição ocupada pelo espectador em relação à obra de arte, até o funcionamento dos sistemas de financiamento e as suas implicações práticas na vida financeira dos artistas. É preciso certo distanciamento para não deixar o pensamento se enganar e perceber a conversa como um testemunho da dinâmica cotidiana das PIZZ BUIN. Isto é, ainda que a mesma existisse antes da intenção de a transformar em uma peça expositiva, é a obra de arte aquilo que o público tem diante de si. Nela, as artistas se colocam, simultaneamente, como objetos da especulação do público e sujeitos na produção da obra.

Em certa medida, a continuação do percurso pelo segundo piso da exposição parece funcionar como um boomerang. Ao fundo da sala, quando talvez a exposição acabasse, repousa sobre a última mesa do espaço a versão original dos relatórios de Júlio Pomar que foram publicados na trigésima quinta edição do Inland Journal. Nas palavras ali contidas, uma leitura mais dedicada é capaz de vislumbrar um convite implícito para retornar ao início da exposição — cumprindo, assim, o circulo imaginário percebido ao início. Porém agora, a partir do pensamento de Pomar, à procura de uma nova leitura de tudo que ali se encontra, e atenta às potências contidas na relação entre obra de arte e espectador.

Ao fim, é possível perceber que Guardar os Olhos no Bolso sobrevive em parte de uma vocação da arte, presente principalmente a partir de sua história moderna, para pousar o pensamento sobre si mesma. É esse recurso, uma espécie de metalinguagem, que permeia os estratos que originam os trabalhos que compõem a exposição. Diante do espelho, são desveladas as camadas que sustentam os sistemas de poder que mantém o campo artístico em movimento (a crítica, os espaços institucionais, os apoios econômicos às artes, quem tem acesso a eles, o conceito de autoria, o papel do público dentro dessa estrutura, ad aeternum no vórtice de suas inerentes problemáticas). E é no trilhar desse caminho que se desnuda o ponto de encontro entre a empreitada do Inland Journal e o legado de Júlio Pomar.

 

Inland Journal

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

Paula Ferreira é escritora, fotógrafa e pesquisadora independente. Nascida em São Paulo, atualmente vive em Lisboa. É pós-graduada em Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e em Estética pela FCSH NOVA. É fundadora de Aos Cuidados, projeto que abrange publicações impressas, exposições e workshops dentro de temáticas relacionadas ao acesso à saúde e aos direitos aos cuidados, sempre por uma perspectiva feminista, interseccional e transdisciplinar. Seu trabalho se desenvolve maioritariamente em uma pesquisa sobre formas de criação de espaços de diálogos e debates.

 

O texto foi escrito em português do Brasil. 

 

 

+ sobre AMJP:

— Os Livros de Júlio Pomar  por Isabel Nogueira.

 

 

Notícias do Atelier-Museu Júlio Pomar: Catarina Real (Barcelos, 1992) é a artista vencedora da 7ª edição da parceria entre o Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC e a RU — Residency Unlimited, Nova Iorque, EUA, que proporciona anualmente uma residência artística, com três meses de duração, naquela instituição nova-iorquina. + info

 

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Guardar os Olhos no Bolso. Vistas da exposição no Atelier-Museu Júliop Pomar. Fotos: António Jorge Silva / AMJP. Cortesia de Inland e AMJP/EGEAC.

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