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PERFIL: Vera Mota

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José Marmeleira

 

Nas marcas de um corpo sem qualidades

 

Com duas exposições patentes na cidade de Porto, Sem Corpo/Disembodied no Museu de Serralves e Sensação Fantasma no espaço Sismógrafo, Vera Mota (Porto, 1982), afirma um percurso e uma obra solidamente construídos. Introduza-se algum contexto: o trabalho da artista tem sido exibido regularmente no circuito galerístico nacional, encontra-se representado em algumas das mais importantes colecções nacionais públicas e privadas e estende-se à actividade no campo da performance, assinalada em diferentes lugares e espaços desde 2005.

De alguma forma, as duas exposições mencionadas são um desenvolvimento destes trajectos sob os quais, por sua vez, radica uma determinada prática artística. Não é fácil descrever, com um carácter definitivo, tal prática. O desenho, a escultura e a performance podem ser convocadas, mas à margem de uma definição rígida do que são ou fazem. A aparecerem, fazem-no nos interstícios, em devir. Comecemos, neste retrato de Vera Mota, pela exposição Sem Corpo/Disembodied, a primeira da artista em contexto museológico, com a curadoria de Filipa Loureiro. Na galeria, a artista deixou-nos desenhos a óleo que imprimem uma ténue tensão entre o tecto e o chão. Dispostos verticalmente no centro da sala, tomam a forma de painéis cujos interiores parecem ondular no espaço. O que vemos e podemos tentar representar — dos e com os desenhos — não são formas harmoniosas e simétricas, mas imagens. Imagens que podíamos interpretar enquanto ossaturas de corpos ou marcas de seres não-humanos, porventura organismos em suspensas mutações. Imagens de um interior tornado exterior? De um corpo?

Vera Mota recebe-nos na galeria. Na sua companhia, circulamos à volta daqueles corpos sem corpo que, verticais e leves, desenham uma coreografia viva ainda que, aparentemente, não humana. “Embora [os desenhos] possam remeter para esqueletos, colunas vertebrais, para o imaginário biológico; resultam de um processo de repetição frio, de um corpo operativo, onde não há propriamente a intenção de representar um corpo”, comenta a artista. O que significará então esse corpo operativo? “Em muitos dos meus trabalhos, o corpo reduz-se a uma função, a um corpo operário que executa um conjunto de gestos e de exercícios, que excluem qualquer tipo de temperamento ou de expressão. Tenta reproduzir gestos de uma forma mecânica, como se se tratasse de um operário numa linha de montagem, que abdica dessa qualidade subjectiva”.

Os efeitos estéticos, formais e visuais não comunicam o que seria uma uniformidade. Na verdade, cada desenho, embora possa proceder do mesmo gesto, não é o mesmo desenho. “Cada desenho cristaliza um conjunto de gestos, regista uma determinada cadência, ou ritmo, inscrevem a participação do corpo naquele intervalo de tempo. Falo de um corpo operativo, na medida em que ele se comporta ou se assume enquanto ferramenta e exclui todas as outras camadas que o definem”.

O desenho está no corpo e o corpo no desenho, mas esta relação não seria possível sem a imprevisibilidade dos próprios materiais, do óleo ao papel. O primeiro expande-se sobre o segundo, animando as formas com a sugestão de movimento ou dilatação (até à diluição). A verticalidade é um elemento constitutivo de Sem Corpo/Disembodied. Os desenhos têm uma escala que confronta o corpo do visitante. E uma vez que não se encontram na parede, mas suspensos no tecto, levam aquele a mover-se entre e à volta. Nessa circulação, a experiência pode tornar-se óptica, sem deixar de ser visceral e física. Vemos o efeito da luz e transparência das manchas de óleo que transformam a opacidade do papel. Uma certa desorientação espacial pode assomar e, com esta, a necessidade de focar e desfocar aquilo que aparece no espaço: estes corpos — que são desenhos e figuras — que não se fixam e não são fixos. Vibram.

Tente-se, entretanto, encontrar um elo entre estes trabalhos e outros de Vera Mota. O que os aproxima ou une? “Há sempre uma vontade de compreender e desafiar os estatutos do corpo (humano). As suas funções, representações, processos de simplificação ou negação das suas qualidades. As hierarquias que o regem, que opõem por exemplo a cabeça ao resto do corpo. Compreender sua relação com outras matérias, o modo como se estabelecem essas relações, o que se altera nessa troca, o que pode mudar no corpo perante as qualidades que um material impõe e as suas forças auto geradoras. O que acontece ao corpo quando se materializa noutras substâncias, de que modo o confronto com as características dos materiais afectam o seu desempenho. Costumo dizer que há sempre três camadas no meu trabalho: o corpo, a participação [do corpo] e os materiais, cuja ordem apenas vai mudando”.

Cada um destes três elementos ganha maior ou menor relevância consoante a obra, mas há uma constante: a participação consciente do corpo enquanto presença, na condição de meio produtivo. “Podemos dizer, no limite, que todos os artistas precisam do seu corpo para produzir, mas [no meu trabalho] há uma observação muito consciente e constante do que acontece na produção do trabalho”, sublinha a artista. “Há sempre a intenção de falar de um corpo, (para mim) indistinto da prática, meio para todo o tipo de relações, sujeito a distintos processos de mutação, transferência, codificação, desqualificação.”

Virar do avesso, inverter posições, entre a cabeça e os pés, a cabeça e as mãos

Um corpo sem género? “Falar de corpo, pode ser algo extremamente amplo, não necessariamente humano ou biológico, aqui, no limite, remeto para o meu”. De novo diante dos desenhos, perguntamo-nos se o corpo (da artista) surge sublimado na obra. “O corpo já não está lá, senão naquilo que resulta do processo de produção do trabalho, em que se desqualificou em certa medida para se submeter a uma atividade, reduzir a uma função”, responde. “Serviu-me enquanto ferramenta. Pode adivinhar-se essa presença, mas aqui o corpo perde a sua materialidade, deixada para trás enquanto parte do processo, para se rematerializar nas membranas destes desenhos. A performatividade [do meu corpo] encontra-se cristalizada nestas partituras, sendo que não há intenção de representar [o meu ou outros corpos]”.

O que se manifesta, no fim, é uma contingência, a do trabalho artístico.“Verifica-se um reenvio para o corpo. De um exercício que se cumpre friamente, e que pretende afastar do corpo, remetendo-o para mero instrumento, o que acontece nestes desenhos resulta em configurações que as pessoas podem associar a ossaturas, a células. Interessa-me, de facto, que possam ecoar esses corpos biológicos. No fundo, é o exercício de um reenvio constante que procuro: negar e evidenciar o corpo”.

É esta relação holística com o corpo — aberta à inversão de funções, posições e hierarquias — que ganha peso em Cabeça sem corpo, escultura de bronze. Encontramo-la ao fundo, repousada no chão, quase num canto, qual monólito solitário, contra a espessura dos desenhos. Não apenas lhe falta o corpo, também as suas (potenciais) feições sofreram uma erosão, um misterioso apagamento. Dito de outro modo: não existem, nunca terão existido. “No limite, não temos a certeza de a identificar como uma cabeça”, diz a artista.

“Não quis que fosse percebida logo de imediato. E de facto vemo-la no chão, longe do plano privilegiado e alto das ideias, do conhecimento. Continuo interessada em inverter as hierarquias, os estatutos que o corpo traz, os eixos mais ou menos pré-estabelecidos que opõem partes do corpo. É uma peça que dá continuidade a um conjunto de trabalhos onde tenho vindo a explorar a oposição entre a cabeça e os pés, a cabeça e as mãos”.

Se Cabeça sem corpo pode ser lida como um corpo não humano — uma escultura — nem por isso a sugestão do antropomórfico se apaga. Procura-se um rosto, uma extensão, uma parte que permanece ausente. “Em algumas exposições, as minhas esculturas exprimem um carácter antropomórfico, mas de uma maneira enviesada. Sim, fazem referências ao corpo, mas sobretudo a simplificações ou representações do corpo com as quais convivemos e que já sofreram uma erosão, guardando apenas aquilo que é necessário para cumprirem a função que está associada ao corpo”, explica a artista. “Interessa-me ver como esse corpo se transforma no sentido de privilegiar apenas uma característica que mantem esse objecto preso ao corpo, mas ao mesmo tempo quase libertando-o por completo”.

Vera Mota convoca duas obras, apresentadas na exposição Ventriloquismo, para elucidar esta abordagem conceptual: Hold (2021) e Real Feel (2019). A primeira remete, em termos formais, paras próteses de pernas usadas por atletas, a segunda representa, em mármore, a articulação dos dedos de mãos.“Em Hold há uma tentativa de absorver essas representações e, no fundo, usufruir desse processo de modificação já realizado. Em Real Feel, que representa dedos a partir de mãos articuladas, a questão do material é muito importante. Por exemplo, se para Cabeça sem corpo quis utilizar o bronze, com o seu peso físico, os dedos de Real Feel são feitos de mármore. Há um encontro entre estas formas simplificadas e processadas e uma nova materialidade que convoca uma série de características e sentidos”.

O desenho, a escultura e a performance permanecem os eixos da produção artística de Vera Mota, sendo o primeiro aquele que acompanha todo o trabalho de uma forma quase meditativa. Perguntamos à artista sobre leituras recentes que têm vindo a acompanhar as suas investigações. E Vera Mota revela-nos alguns títulos: as obras colectivas Art and Subjecthood — The return of the human figure in Semiocapitalism (Strenberg press) e Realism Materialism Art (Strenberg press); Formless: A User's Guide de Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss;  Mimicry and Legendary Psychasthenia de Roger Callois; o ensaio Informe (de Georges Bataille); A billion black Anthropocenes or none de Kathryn Yusoff; Não-coisas: transformações do Mundo em que Vivemos de Byung-Chul Han.

“Mais recentemente tenho lido o filósofo André Barata que pensa também as questões da materialidade e da perda da materialidade do próprio corpo. Parece que estamos a falar de coisas muito abstractas, mas, para mim, o trabalho é também uma forma de comentar o que estamos a viver nos nossos corpos. O nosso distanciamento da materialidade, o modo como as comunicações se virtualizam, mas também a nossa relação com o corpo, sujeito a um crescente processo de desmaterialização, cuja percepção se vai distorcendo, mediada e monitorizada permanentemente.”

 


 

Corpo fora de cena (não completamente)

 

 Tais questões colocam-se, com outra luminosidade, na exposição Sensação Fantasma no espaço Sismógrafo. Distinta, em termos formais e materiais, de Sem Corpo/Disembodied é feita de delicadas esculturas que, sob o efeito da luz, parecem resistir à nossa visão e ao nosso tacto. Dito de outro modo, parecem não ter corpo, mesmo quando sabemos que existem materialmente: são feitas de vidro acrílico e aço. Assemelham-se menos a ossaturas do que a desenhos nos quais se pressentem contornos biomórficos, formas que a relação feliz entre a luz e sombra tornam incertas, voláteis e sedutoras. Entre a materialidade e imaterialidade, liberta-se uma ilusão que só o espectador pode experimentar.

“São objectos que parecem modificar-se com o nosso movimento no espaço. Os reflexos e sombras tornam-se por vezes mais fortes que o próprio material", comenta Vera Mota. “Surgem de uma série de desenhos, posteriormente transcritos para um formato digital e cortados a laser. O dispositivo é muito simples. Uso um foco de recorte que permite esta nitidez, nas sombras e reflexos. A relação entre o material e luz produzem o que é o trabalho”. O efeito de uma escultura que o desenho torna imaterial, de uma escultura que, por sua vez, se desdobra em sombras e vibrações lumíneas. Sem volume ou espessura.

“No contexto da perda da materialidade do corpo, aquilo que aqui alego que se torna fantasma não se trata apenas de um órgão ou um membro que se perdeu, mas de um corpo inteiro que tendemos a deixar de sentir. Perdemos gradualmente o contacto com a materialidade, e o corpo não escapa a esse processo. Estabelece-se uma espécie de relação fantasmagórica com o corpo, de ausência, de tal forma é mediado por um sem número de aplicações, códigos, filtros, formatos pré-definidos, cada vez mais presentes nas nossas relações e comunicações. Daí falar em sensação fantasma. Este título, tal como o Sem Corpo/Disembodied ou Ventriloquismo [da exposição na galeria Bruno Múrias] faz parte de um léxico que convoca estes processos de desqualificação do corpo. Há sempre um corpo que se vira ao contrário, que se vira do avesso, que perde as suas qualidades. São ideias que os trabalhos vão permitindo catapultar”. De volta à experiência sensorial e física de Sensação Fantasma, percebe-se uma sensibilidade cenográfica.

“Sim, ela existe. Mesmo em Sem Corpo/Disembodied há uma maneira de pensar a exposição como algo que se dá a ver, que sugere uma relação visual e física com as peças, com o espaço.  Também os trabalhos de Ventriloquismo se encontravam dispostos de modo a criar uma espécie de ritmo, convidando a um percurso. Aqui, quis pensar o trabalho como um objecto uno, que se dá a ver como um todo desde que entramos no espaço, que podemos percorrer em torno da peça, aproximar ou afastar para tentar apreender. A luz permite-me conduzir a atenção do visitante”.

 No espaço está o corpo, questão que atravessa a obra da artista ainda desde os tempos da faculdade. “Nesse contexto, os meus primeiros trabalhos já eram um pouco sobre a relação do corpo com a matéria, sobre o modo como dessa relação surgia o trabalho. Lembro-me de o meu primeiro projecto de escultura ser uma performance num poço de barro. E de dizer que minha relação com esse barro era a própria escultura”. Outra situação, que despertava as reflexões da artista em torno do corpo, surgiu na experiência escolar e tradicional da escultura: “Na aula de modelação, deparamo-nos com estatutos de corpo absolutamente distintos. Há o corpo de um modelo que se imobiliza para se deixar representar. Há um conjunto de corpos (os alunos) que se abstraem de si enquanto cumprem a função de modelar, criando uma série de gestos visando a reprodução da figura. E há um corpo representado na matéria do barro, que se vai construindo, (de)formando. Convocam-se assim várias possibilidades de corpo. Também diante desta peça, podemos perguntar pelo corpo que ela pode convocar. No fundo, ando sempre entre estas ideias e experiências de corpo, que no limite envolvem o meu”.

Mas desse corpo, o da própria Vera Mota, a artista só nos deixa marcas, impressões, ecos (como os que vemos, mais directamente, em Head Hand). No seu lugar estão os materiais, com as suas características específicas. “O interesse pelos materiais surgiu de uma vontade de retirar o corpo biológico de cena, de o remeter para um papel que não o de protagonista. Durante a realização do meu mestrado, nos anos 2000, observei uma disseminação da palavra performance, nos mais diversos contextos. E o tema da minha investigação viria a ser precisamente a procura por corpo menos evidente. Para tal, eu propunha o mimetismo na lógica de Roger Caillois, o informe de Georges Bataille e o uncanny em Lacan, e ainda a imobilidade, como forma de negar essa subjetividade e aproximar o corpo das matérias inertes. Depois dessa investigação, tive vontade de abdicar da minha participação, o mais possível, na produção do trabalho, e acabaria por focar a minha atenção nos materiais. Servi-me de estratégias simples, das grelhas, da repetição, para tentar evidenciar as qualidades dos materiais, criando apenas condições para se afirmarem, enquanto procurava escapar da responsabilidade de composição, e de alguma forma anular a minha presença. Mas deixa-se sempre um rasto.”

 

Vera Mota

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

Sismógrafo

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 





Vera Mota. Sem Corpo/Disembodied. Vistas gerais da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Fortos: Filipe Braga. Cortesia da artista e Museu de Arte Contemporânea de Serralves. 

Vera Mota. Sensação Fantasma. Vistas gerais da exposição no espaço Sismógrafo, Porto. Cortesia da artista e Sismógrafo. 

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