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Now Here, Nowhere

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Isabel Nogueira

 

Pelos olhos da América, uma Coimbra dos anos 90

 

Esta exposição não é só uma exposição. É um espaço onde fotografia, música e vida se misturam, curiosamente no ano em que o Centro de Artes Visuais comemora duas décadas de existência. Inserida no ciclo com direcção curatorial de Miguel von Hafe Pérez, A Vida Apesar Dela, Filipe Ribeiro assina a curadoria de uma mostra que tem por base as inúmeras fotografias a preto e branco, captadas por Victor Torpedo (n. 1972), também músico, aquando da primeira tournée da banda rock coninbricense “Tédio Boys” (1990-2000) aos Estados Unidos da América, em 1997. Com a duração de três meses, Victor Torpedo, acompanhado pelos restantes membros da banda (André Ribeiro, Kaló/Carlos Mendes, Paulo Furtado e Toni Fortuna), são as personagens de um road movie pela América, entre Nova Iorque e Los Angeles, que poderia seguir o trilho da canção dos “The Cramps”. Em Nova Iorque, tocariam no concerto de aniversário de Joey Ramone, a 19 de Maio, tendo-se tornando num dos momentos memoráveis da tournée e da históra da banda. Os “Tédio Boys” voltariam aos Estados Unidos mais duas vezes.

Do ponto de vista estilístico e plástico, estamos perante imagens de forte visualidade e pendor iconográfico, evidente, por exemplo, logo na primeira paragem, em Nova Iorque, nas fotografias captadas em frente ao toldo do icónico clube “CBGB”, ou no próprio interior pintado e grafitado do clube, ou com o inconfundível “Chrysler Building” de fundo. Esta iconografia americana vai pontuando as imagens e o imaginário, através das piscinas, móteis, estradas, clubes, edifícios, reclames luminosos, ou pessoas. Além de, claro, a presença constante destes rapazes enquanto condutores da acção. Do ponto de vista da matriz fotográfica, podemos identificar uma herança de Walker Evans (1903-1975) ou de Robert Frank (1924-2019), este último, autor do notável livro de fotografia The Americans (Grove Press, 1959). Em ambos os casos, trata-se de uma fotografia sobretudo dinâmica, mas potencialmente poética e metafórica, que contruibuiu decisivamente para a afirmação de uma estética fotográfica norte-americana. Podemos ainda evocar neste aspecto Arthur Danto quando, na obra The Transfiguration of the Commonplace (1981), propõe um entendimento da arte e da imagem como exteriorização de uma forma de ver o mundo a partir do interior, ou seja, como um espelho, entre a transparência e a opacidade. Em suma, as imagens de Victor Torpedo possuem cadência e vida espelhadas numa tournée de rapazes na aventura da descoberta e da viagem, numa resonância entre imaginário e realidade.

Mas, além de boas imagens, há outro aspecto importante nesta exposição, que tem que ver com um manancial de memórias e de afectos que, inevitavelmente, vem com elas e que se relaciona com uma banda rock que surgiu numa cidade académica, largamente definida pelo fado e pelas fitas entediantes. O tédio pode, por vezes, ser produtivo. Os “Tédio Boys” foram, neste contexto, uma forma de resistência e de contracultura numa Coimbra dominada pela acrópole universitária, com toda a simbologia que esta topografia incorpora, possivelmente ainda hoje. Coimbra reúne qualquer coisa de nostálgico e de festivo, ao mesmo tempo. E também por isto é bipolar nas emoções que suscita às pessoas que aí vivem ou que por aí passam, construindo-se ela própria também como produto das memórias que a partir dela são produzidas.

Na verdade, antes de estes rapazes irem à América, a América já estava neles e na Coimbra dos anos 90, por exemplo, no clube de culto que era o “States”, sobretudo às quintas-feiras. O espaço era pequeno para tantas pessoas, numa evocação evidente da América desde logo no seu nome, e que era fervilhante à sua maneira. Era também a cidade dos Encontros de Fotografia, com início em 1980 e antecessores do Centro de Artes Visuais, e que contribuíram para educar o olhar para a imagem, curiosamente, sobretudo para a fotografia norte-americana. E tudo se torna orgânico e conectado, agora, com esta exposição a tomar forma neste espaço.

Esta exposição funciona como um diário de viagem, que inscreve o tempo e o espaço, perpetua vivências e anota o mundo mediado pela visão. A viagem representa o movimento para o desconhecido, que permite um certo grau de abandono, capaz de abrir caminho ao prazer e à emoção de fixar uma paisagem, uma habitação, um rosto, um concerto, uma confraternização, a amizade. O fotógrafo assume, simultaneamente, a função de operator e spectator, quando revisita o seu diário visual, a seu modo, íntimo, mas que agora, num contexto expositivo, generosamente partilhado. Pelos olhos da América, mostra-nos uma Coimbra dos anos 90.

 

CAV-Centro de Artes Visuais

 

 

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Now Here, Nowhere. Vistas da exposição no CAV-Centro de Artes Visuais de Coimbra. Fotos: © Photodocumenta. Cortesia de CAV.

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