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Luigi Ghirri: Obra Aberta 

01_Marina di Ravenna, 1986 © Eredi di Luigi Ghirri.jpg
José Marmeleira

 

 

Quem encontrou o trabalho de Luigi Ghirri (1943-1992) em revistas ou outros suportes, sem nunca ter visto uma exposição deste autor e fotógrafo, tem, no MAC/CCB, uma oportunidade preciosa, absolutamente irrecusável. Com a curadoria de Pedro Alfacinha, Obra Aberta inclui três conjuntos de fotografias e, sobre três mesas, várias polaroids. Ao todo, correspondem a setenta e nove fotografias produzidas na década de oitenta do século passado. A selecção, podemos ler na folha de sala, “foi guiada pelas ideias de Ghirri no seu ensaio A Obra Aberta, de 1984, bem como pela própria estrutura do seu acervo, respeitando tendências e predileções evidentes”.

Não se irá aqui aprofundar, em demasia, a ideia de obra aberta do artista e fotógrafo. O fito é outro: traduzir, em palavras, as impressões provocadas pelas suas fotografias. Voltemos, então, ao início deste texto. Na primeira experiência das imagens de Luigi Ghirri, ainda distante das paredes, aquelas parecem-nos grandes, de um formato quase monumental. Ora, afinal, o seu tamanho é modesto. Talvez porque o seu lugar originário seja o livro e não tanto a galeria. Nem por isso, a impressão se esvai. Continuam, na sua escala, ampliadas, talvez, precisamente, porque abrem o olhar, o prazer de ver com uma atenção fascinada, mas uma atenção. De ver o quê, perguntarão?

Um dos motivos que atravessa muitas das imagens tem o nome de Paesaggio Italiano (paisagem italiana). Com efeito, observamos cores, formas e linhas que nos permitem identificar uma paisagem. Trata-se, também, de um território: o de uma natureza cultivada, senão embelezada pelo ser humano, portanto, artificial: precisamente, o da paisagem italiana. O diálogo com a história da pintura, o cinema e a arquitectura escuta e vê-se, mas as referências estão longe de explicar o torpor do qual as fotografias nos despertam. É como se ainda fosse possível renovar, com a devida humildade, uma experiência do mundo.

Esse mundo (ainda) é o nosso — porque partilhámo-lo com Ghirri — mas a partir da lente, dos enquadramentos, da vista, da sensibilidade do artista. Ela empresta-nos o seu olhar mediado pela câmara, olhar que é uma cartografia de inesquecíveis encontros (com Bob Dylan, Frederico Fellini, Aldo Rossi, Pieter Bruegel, Giorigio Morandi, Pieter Bruegel, Michelangelo Antonioni, entre outros) O efeito é o de um fascínio que nos arrebata devagar, sem nos deslumbrar. As cores não nos ofuscam, as cenas não nos abalam. Uma candidez (relutante) toca esta fotografia, uma curiosidade ilumina-a. Dir-se-ia que foi uma criança, e não o mero observador, quem viu estas paisagens, estas pessoas, estes objectos. O artista viu primeiro, encantou-se primeiro; só depois faz (a sua) fotografia.

A fotografia de Luigi Ghirri revela-se como disciplina, na condição de arte, não apenas imagem ou referente. Vemos (também) a fotografia e não apenas o mundo. Isto não significa que as imagens de Obra de Aberta procedem de uma metodologia crítica — no sentido destrutivo da palavra — mas apenas que a fotografia está sempre lá. Quando entramos na exposição, isso é muito claro. Das polaroids — que remetem, pela sua instantaneidade para uma impressão do mundo – às fotografias, delicadamente enquadradas, sabemos que o que vemos são imagens técnicas. E, contudo, Luigi Ghirri, não nos retira a inocência da comoção face ao que (nos) faz aparecer: a sugestão do movimento, a entrada da luz, a chegada ou passagem de uma pessoa, a presença de uma construção, os planos que as coisas fazem no horizonte, um ponto de vista para a rua. Estas aparições, voltamos a dizê-lo, não nos tomam. Podemos recuar, debruçar os olhos sobre as polaroids, ver e pensar, pensar e ver. A curadoria de Pedro Alfacinha revelou-se fundamental para assegurar a revelação plena dessas faculdades. Conhecedor das qualidades formais, estéticas e visuais da fotografia de Luigi Ghirri, proporcionou um encontro lúcido e rigoroso com a obra. Por vezes, poder-se-ia acrescentar, quase imaculado, ao ponto de tornar invisível o espaço do cubo branco. Afinal, este encontra-se, comme il faut, ao serviço das fotografias e do mundo que elas inventam. Um mundo no qual entramos e cuja beleza descobrimos contrariado assim — e para citar o próprio Liugui Ghirri — “o adágio de Eclesiastes: nada de novo sob o sol. A fotografia parece nos recordar que não há nada de antigo sob o sol”.

Há e, dizem-nos as imagens de Obra Aberta, continuará a haver, mesmo se esse mundo se encontra hoje, paradoxalmente, submerso em imagens. O mesmo mundo que nós fizemos e que ainda observamos com espanto e melancolia. O mesmo mundo que um dia despertou do Luigi Ghirri do seu torpor. Para a nossa rejuvenescida alegria, enquanto formos dele espectadores.

 

Luigi Ghirri 

MAC/CCB

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

 


Luigi Ghirri. Obra Aberta. Vistas gerais da exposição no MAC/CCB. Fotos: ©Rodrigo Cardoso. Cortesia de MAC/CCB.

Imagem de capa: Luigi Ghirri, Marina di Ravenna, 1986 © Eredi di Luigi Ghirri.

Imagem final: Luigi Ghirri, Verso Lagosanto, 1989 © Eredi di Luigi Ghirri.

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