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Emancipação do Vivente 

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Maria Kruglyak

 

Emancipação do Vivente propõe um discurso crítico e interseccional de empoderamento e resistência ativa contra a injustiça, a violação e a deslocação forçada do humano e do não-humano. É a primeira exposição com curadoria assinada pelo Museum for the   Displaced (Mf   D), cujos membros passaram os últimos três anos a desenvolver uma metodologia curatorial alternativa através da organização de residências e programas artísticos que abrem espaço para se cuidar e para se demorar, prescindindo de enquadramentos centrados no resultado final e nas exigências da produção para, ao invés, apoiar e usar a arte para construir futuros inclusivos.[1]

Distribuída entre as Galerias Municipais de Lisboa (Galeria da Boavista) e de Almada (Galeria Municipal de Arte), Emancipação do Vivente mostra especial minúcia no equilíbrio que gera entre os dois espaços expositivos através das amplas e variadas investigações levadas a cabo pelos artistas e coletivos convidados.[2] Os três membros do Mf   D (Ana Sophie Salazar, Mohammad Golabi e Leong Min Yu Samantha) abordam a dualidade dos espaços com igualdade numérica: três peças encomendadas e uma peça previamente existente por espaço, conjuntamente com um coletivo "que funciona como ponte"[3] entre as duas galerias, distribuindo-se os restantes seis participantes fraternalmente pelas duas localizações.

Considerada esta circunstância, Emancipação do Vivente define-se como um projeto que assume especificidade espacial e temporal, fundando-se em duas premissas distintas: por um lado, a cidade de Lisboa, com as suas implicações internacionais, abre espaço a um conjunto de réplicas críticas à Europa enquanto território colonizador de raças, histórias e sexualidades; por outro, a galeria de Almada apresenta uma série de movimentos localizados de resistência no contexto de problemáticas relacionadas com a terra, incluindo-se aqui a questão dos despejos, da erosão e da extração. É a partir daí que se desenvolvem as diversas investigações artísticas da "emancipação" dos deslocados: a autoemancipação, a emancipação coletiva, a emancipação da paisagem urbana, do solo, da montanha. Trata-se sobretudo de um enunciado interseccional, assumindo o Mf   D o "dis place/meant de forma expansiva — algo que pode acontecer tanto a humanos como a não-humanos […] de uma forma física, mental e/ou emocional".[4]

De um carácter especialmente premente, e porventura, como tal, impactante, pro-sedimento (2023), do Frame Colectivo, e Alto Tâmega no Chthuluceno (2023), do estúdio de arquitetos ETC — ambos patentes em Almada —, debruçam-se sobre um conjunto presente de lutas emancipatórias locais. A obra do Frame Colectivo ocupa o rés-do-chão da galeria, e expõe o processo de despejamento e a consequente demonstração de resistência dos residentes do 2.º Torrão, na Trafaria. Este bairro, no qual aquele coletivo deu início a um projeto comunitário de construção em 2017, localiza-se a menos de dez quilómetros da galeria, configurando-se enquanto locus da ameaça de erosão que assola a costa portuguesa e que atingiu um ponto crítico após a ratificação municipal da demolição de habitações devido ao risco acrescido de inundação, que por sua vez decorre da construção de edifícios sobre um curso de água subterrâneo. Enquadrada pela imagem de um buldózer a ocupar a totalidade de uma janela, por um conjunto de fotografias dos destroços do bairro montadas no teto, e por uma instalação de som de uma demolição, esta instalação consciencializa o espetador para aquela ameaça existencial, ainda mais agravada por uma planificação municipal deficiente que, enquanto se demite de apresentar soluções justas e realistas para criação de habitação,[5] prevê desapropriar mais de 60 famílias das casas que aquelas construíram com as próprias mãos. A ambiência deste conjunto de elementos é também amplificada pelos trabalhos de construção que atualmente se levam a cabo na rua da galeria, assim se gerando uma sensação palpável da fatalidade iminente que apenas é contrariada pela reivindicação de ação direta, apresentada no espaço sob a forma de uma cronologia informativa de atividades de resistência.

A segunda peça, Alto Tâmega no Chthuluceno, encomendada ao ETC, está instalada no andar de baixo e expõe a expropriação e, por conseguinte, a deslocalização do meio ambiente causadas pela exploração de lítio no Norte de Portugal. Também aqui, a documentação da ação corrente assume especial centralidade, distribuindo-se diligentemente pelas paredes da instalação uma série de caixas de plástico que contêm os relatórios de impacto ambiental, ainda pendentes de aprovação, das empresas mineiras que pretendem explorar a área. Flanqueando os relatórios, veem-se fotografias de grandes dimensões de um lado e mapas detalhados do outro, referindo-se ambas as classes de materiais aos territórios do Norte português. O somatório destes elementos acaba por criar uma história especulativa das problemáticas que afetam Montalegre e Covas do Barroso, localidades nas quais, não obstante a prevalência de espécies em perigo de extinção, se prevê o desenvolvimento simultâneo de projetos de exploração de lítio, de centrais elétricas e de produção agrícola.[6]

O primeiro trabalho com que o espectador se depara na galeria lisboeta é Ações de rua, políticas e estéticas ancestrais (2014–2023), uma instalação site-specific do Colectivo Ayllu/Migrantes Transgresorxs na qual se constrói um arquivo de algumas das ações de rua que o grupo levou a cabo até hoje. Aqui, a luta decolonialista deste coletivo latino-americano, atualmente radicado em Espanha, pelo escape emancipatório da heteronormatividade é documentada através de um largo conjunto de faixas de grandes dimensões penduradas no teto que seguem uma planificação huaca triangular — um ancestral padrão arquitetónico oriundo dos Andes que representa tradicionalmente um objeto de reverência. Ao apresentar os seus cartazes ativistas nesta configuração, o Colectivo Ayllu cria uma instância de veneração pelas suas manifestações e oficinas queer decolonialistas, assim transportando o protesto coletivo de rua para museu de uma forma que fomenta a ação organizada. A instalação tem desfecho na instalação de vídeo Beautiful Creatures (2019), que mostra aquilo a que o coletivo chama "orgulho crítico": uma manifestação pelos direitos de pessoas queer de cor. O vídeo é de empoderamento e alegria — uma caracterização contrariada pelas palavras gizadas na parede, que dizem que não estamos todes presentes, já que aqueles que foram violades, assassinades, detides e deportades por cá não estão para se juntarem ao alegre protesto.[7] Este ténue equilíbrio e entre o empoderamento coletivo e a memória crítica persiste ao longo de toda a exposição, num reconhecimento simultâneo de uma injustiça sistemática e da possibilidade de uma mudança emancipatória.

 



 

Outras duas obras, cada uma em cada galeria, estabelecem ligações que extravasam o continente europeu: tratam-se aquelas da instalação de vídeo e poesia de Raquel Lima, instalada em Lisboa, e da instalação multimédia de Dima Mabsout, em Almada. De Lima, O Meu Útero Não Está na Europa (2023), apresentada na vertente escrita na parede e lida em concorrência com o som de um respirar meditativo que acompanha o vídeo de uma cascata filmado em São Tomé e Príncipe, reformula a deslocação migratória forçada introduzindo a ideia do útero como o lugar no qual se curam memórias intergeracionais — um território que existe para lá das racionalizações da mente e das expressões vocais de resistência.[8] Fazendo uso do vídeo, do som e da escrita para criar um espaço meditativo de regeneração que foi originalmente ativado na inauguração com uma performance da artista, esta peça recupera e aborda um conjunto de histórias coloniais dos primórdios da emancipação das pessoas escravizadas em virtude do nascimento da geração seguinte; as desigualdades raciais dos dias de hoje no campo da saúde, especificamente nas problemáticas relacionadas com o útero; a ampla presença de cascatas em São Tomé e Príncipe, onde Lima vive, bem como os entendimentos espirituais da cascata enquanto local de começos.[9]

Na outra margem do rio, Humbaba’s Womb: Mythologies of Fear (2022–2023) paraleliza-se à peça de Lima — até no título, ainda que aplicando um sinónimo (womb, ou ventre, em vez de útero) que tipicamente se reserva para o período de gravidez. Contrastando com a investigação metafísica da cascata que Lima desenvolve, Mabsout examina não só o problema de extração ilegal de areia que assola o Líbano, o seu país natal, como também os pigmentos, as folhas, as pedras e os ramos secos de Portugal. Valendo-se de uma série de desenhos, esculturas e objetos naturais que a artista encontrou e que ostentam o vigor natural daqueles pigmentos, Humbaba’s Womb fala da poderosa força de resistência da terra; nela, três poemas mitológicos escritos sobre as paredes contam uma história colonial de conquistas, recorrendo a um diálogo que circunscreve um ovo que caiu ao chão. Um dos poemas, intitulado Confrontation, relaciona-se com o discurso geral do piso de baixo da exposição de Almada, que por sua vez se vincula às possibilidades emancipatórias da natureza: "It can be easy to blame ourselves, / as monsters destroying her soils, / to forget sometimes, / that the slightest shift in her sleep is / an earthquake wiping out cities built by / our biggest machines." [Pode ser fácil culparmo-nos, / monstros que lhe destroem os solos, / e esquecermo-nos de vez em quando / que o mais ténue movimento enquanto dorme é / um terramoto que devasta as cidades construídas pelas / nossas maiores máquinas."

Também o ensaio cinematográfico Mined Soil (2012–2014), de Filipa César, exibido na mesma sala, se enquadra neste espaço de exploração do solo enquanto corpo vivo de memória com um passado, um presente e um futuro. Esta peça centra-se numa cronologia dupla da vida de Amílcar Cabral — o agrónomo, intelectual e líder revolucionário que lutou pela emancipação da África colonial sob domínio português e que, na década de 1950, levou a cabo investigação sobre a erosão dos solos no Alentejo e, em simultâneo, sobre a mina de ouro que existe na mesma região. No contexto de Emancipação do Vivente, este é um dos dois trabalhos previamente existentes que não incluem compilação de dados ou documentação site-specific, encontrando a sua contraparte na peça 1992, de Alfredo Jaar, instalada na galeria lisboeta. Trata-se esta, por sua vez, de uma fotografia com caixa de luz da típica vedação de arame farpado das fronteiras da Europa, que desta forma se protege contra a entrada de migrantes. Assim se evidencia a violência do continente europeu contra os povos deslocados; e assim se ligam os pontos da parte lisboeta desta exposição.

Por fim, a segunda peça do Frame Colectivo, calibragem (2023), apresenta uma instalação de texto e vídeo elaborada a partir de um conjunto de excertos e segmentos de um projeto que o coletivo desenvolve atualmente. Este trabalho reúne documentação de viagens em autoestrada que "realçam as narrativas eurocêntricas e nacionalistas incrustadas na paisagem",[10] desta feita apresentando uma autoestrada lisboeta colorida por edifícios do Estado Novo em contraste com uma viagem de automóvel entre o Luxemburgo e Antuérpia, cuja paisagem urbana mostra aquela que é a rede de autoestradas mais rica e que mais energia consome em toda a Europa, assim recuperando o passado colonial da Bélgica.

Ao agregar estes copiosos e variados atos emancipatórios de resistência à deslocação forçada, Emancipação do Vivente gera um equilíbrio ténue entre poder-conhecimento e entre esperança-ativismo. No seu todo, ao mesmo tempo que oferece o espaço devido à profundidade investigativa e à especificidade de cada instalação, a exposição demonstra um sentido premente de capacitação de resistência. Aliás, a própria ação de contextualização que o Mf   D leva a cabo sobre a disparidade que se verifica entre as obras das duas pequenas galerias acaba por tornar visível a estrutura global de poder do "dis place/ment", que se infiltra por entre grupos, fronteiras, espécies e elementos.

 

Museum for the   Displaced (Mf   D)​​​​​​

Galeria da Boavista

Galeria Municipal de Almada

 

Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redatora freelancer de arte.

 

Tradução do EN: Diogo Montenegro

 


Emancipação do Vivente. Vistas da exposição na Galeria da Boavista; 2023. Fotos: © Bruno Lopes. Cortesia das Galerias Municipais de Lisboa.



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Emancipação do Vivente, Vistas gerais da exposição na Galeria Municipal de Arte de Almada. 2023. Fotos: © Patricia Black. Cortesia de Museum for the Displaced. 

 


Notas:

[1] "Museum for the Displaced: Conversation between Yvette Mutumba, Ana Sophie Salazar, Mohammad Golabi, and Leong Min Yu Samantha", Stedelijk Studies Journal 12 (23 de janeiro de 2023): stedelijkstudies.com/journal/museum-for-the-displaced-interview/.

[2] A exposição é composta sobretudo por peças de coletivos ou de artistas individuais que trabalham de forma coletiva e colaborativa com diferentes comunidades e artistas em projetos investigativos, procurando ativamente gerar uma atitude de mudança.

[3] Folha de sala da exposição.

[4] Ibid.

[5] Ana Naomi de Sousa, "Portugal’s worsening housing crisis hits a diverse neighbourhood", Al Jazeera (5 April 2023): aljazeera.com/news/2023/4/5/portugals-worsening-housing-crisis-hits-a-diverse-neighbourhood.

[6] O ETC expõe sucintamente o problema numa publicação nas redes sociais de 13 de março de 2023: "In the same area : 2 lithium mining projects, 5 dams, 3 wind farms, 2 floating photovoltaic power stations, high-voltages lines, 6 agricultural colonies… and 3 endangered species. What future does all this hold for #barroso ?" [Na mesma área: dois projetos para a exploração do lítio, cinco barragens, três parques eólicos, duas centrais solares flutuantes, linhas de alta tensão, seis colónias agrícolas… e três espécies ameaçadas de extinção. Que trará o futuro a #barroso?], instagram.com/p/CpvjdNHMIn9/.

[7] "Não estamos todes / faltam es trans e lesbicas violades e assassinades. / Não estamos todas / faltam as dissidências sexuais que a Europa deportou. / Não estamos todos / faltam os corpos encerrados em centro de detenção de migrantes." Excerto das primeiras linhas de Ações de rua, políticas e estéticas ancestrais, do Colectivo Ayllu.

[8] "A cabeça racionaliza, a voz exprime, mas é o útero que guarda as memórias. E assim há úteros que gritam silenciosamente aquilo que outros diriam se não tivessem sido historicamente silenciados. // Mas todos trazem em si a memória de que um dia não é uma medida de tempo, tal como uma cascata não é uma medida de espaço. […] E se as águas milenares caem sempre pela primeira vez numa cascata, as águas uterinas, aquelas que nos trouxeram aqui, provavelmente serão localizadas, saradas e significadas pela primeira vez, repetidamente…" Excerto do texto introdutório de Raquel Lima para O Meu Útero Não Está na Europa.

[9] Em conversa com Raquel Lima, descubro que o seu trabalho de pesquisa académica em oratura, escravidão e movimentos afrodiaspóricos, investiga detalhadamente a TAFUA, canções da escravatura entre Angola e São Tomé. Canções essas que encontramos na vídeo instalação e que a artista cantou durante a performance. O tema do útero faz parte de uma pesquisa artística, em que Lima cuida da tensão entre saúde uterina e colonialismo, com algumas referências ilustrativas como a lei de 1871 no Brasil, a Lei do Ventre Livre, que estabelecia que os/as filhos/as das mulheres escravizadas nasceriam livres. A lei foi difundida em toda a América Latina.

[10] Folha de sala da exposição.

 

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