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Lisbon Roundup #10

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Isabel Nogueira

 

Chegámos ao Roundup #10. O ano vai quase a meio e há muitas propostas para ver neste final de Primavera. Seleccionámos três exposições que apresentam uma leitura do espaço e da obra com considerável grau de originalidade, conseguindo, por um lado, algum distanciamento face ao espaço expositivo tradicional, tantas vezes expectável e asséptico; por outro, o mesmo distanciamento, sobretudo visível nos últimos tempos, perante exposições com uma profusão barroca e sufocante de elementos. Por último, trata-se de propostas que procuram, de modo consequente e efectivo, perceber, interrogar e incrementar discursos, de facto importantes, tais como a relação do Homem com a Natureza e com o Outro.

Roundup #10

Lisboa: vários locais

 

 

Luís Paulo Costa: Janeiro-Dezembro

@Sociedade Nacional de Belas Artes

 

Luís Paulo Costa (n. 1968) traz-nos o tempo, desde logo evocado no título da exposição, Janeiro-Dezembro, com curadoria de Sara Antónia Matos. A sua pintura pressupõe códigos de expressão figurativa, desafiando a linha de abstracção que o modernismo determinou, corria ainda o século XIX. Luís Paulo Costa assume a importância da figuração e do objecto como modo de relação com a temporalidade, com a vida e com o mundo. Mas este tempo mostra-se também a acontecer, como uma espécie de “imagem-cristal” de Deleuze, percebida como uma imagem presente e uma imagem virtual — passada — que lhe corresponde, isto é, e como afima o próprio Deleuze, um “fundamento escondido do tempo” (L’image-temps, 1985). A imagem-cristal assemelha-se a um duplo/espelho/reflexo, localizada entre o tempo pretérito e o presente, e que está sempre a passar; está sempre a já não o ser. Um pretérito imperfeito, talvez, porque não finito. Eventualmente o presente que coexiste com o passado, ao modo de Proust em À la recherche du temps perdu.

Curiosamente, uma das primeiras peças da exposição é uma “t-shirt” preta pendurada, por conseguinte, o próprio objecto apresentado e não a sua imagem. Ao longo da mostra, além da pintura de céus nas suas subtis variações de luz e tonalidade, aparecem-nos papéis pintados amarfanhados no chão, testemunhos objectuais e temporais de pinturas falhadas, mas também livros empilhados no chão, pinturas de gestos ou de morangos prontos a serem trincados, pinturas de barbatanas de mergulho, e de outros tantos objectos na sua representação pictórica. Respira-se uma presença da vida de todos os dias, na sua subtileza e cadência, que assinala as estações do ano e o tempo a acontecer, com perspectiva de tudo voltar ao seu início. A vida selvagem não está excluída desta organicidade, conferindo totalidade e complexidade ao conjunto. Um elefante de enorme dimensão recorda-nos o nosso lugar na Natureza. A exposição respira e permite a pausa nesse processo de contemplação e reapropriação. Qual é a nossa Madeleine de Proust? Qual o nosso eventual retorno a um lugar de origem?

Na organização da exposição há algo que nos chama ainda a atenção. É como se existisse uma zona pública e outra de domínio mais privado. Ou seja, uma área em que se pressente o processo de trabalho do artista, a temporalidade do seu trabalho, o erro e o recomeçar, ou ainda as paisagens acessíveis a todos; e uma outra zona de acesso mais restrito, que se adivinha, por exemplo, na pintura da cama desfeita, ou de objectos erotizantes, num potencial convocar de intimidade. De todo o modo, é por entre esta figuração virtuosa e sofisticada que se convocam universos abstractos, contrariando, por conseguinte, a condição ontológica da pintura figurativa como verosímil. E se a pintura for, afinal, a verdade? 

 

Luís Paulo Costa, Janeiro-Dezembro. Vistas da exposição na Sociedade de Belas Artes. Cortesia do artista.


 

Pauliana Valente Pimentel: Faro-Oeste

@Galeria Quadrum

 

O percurso fotográfico de Pauliana Valente Pimentel (n. 1975) vem assumindo uma consistência crescente e relaciona-se, entre outras, com problemáticas de género, exclusão social, ou comunidades racializadas. Esta exposição foi inicialmente apresentada no Museu Municipal de Faro e no Centro Cultural de Lagos (2021, 2022) e resultou de um processo de trabalho que começou em 2019, quando a artista decidiu fotografar algumas famílias da comunidade cigana algarvia, com o objectivo de combater preconceitos e estereótipos racistas e xenófobos. As fotografias estão impressas sobre tecido e o primeiro efeito da exposição é o de uma bela instalação, através da qual os vistantes se podem movimentar e escolher ângulos de visão e de passagem. Entramos no espaço, de facto. Esta proposta de vivência do espaço expositivo é apelativa e surpreendente, considerando também que a qualidade das imagens não se perde nesta espacialidade.

Estes panos pendurados evocam o acampamento, de algum modo tornando-o presença e simultaneamente universo. As fotografias revelam os interiores de habitações e o exterior dos baldios onde estas se implantam. Situando-nos nestas coordenadas espaciais,  aproximamo-nos e vemos modos de vida, animais, objectos diversos, roupas, pessoas. O colorido é intenso e envolvente, convocando e atraindo o olhar. Segue-se todo um processo de atenção ao pormenor, como o detalhe de uma mesa gasta, de uma coluna de som, de um baú de roupa, de um quadro pendurado na parede. Não somos muito diferentes uns dos outros na irredutível humanidade que nos une.

Uma das melhores imagens da exposição é o retrato de uma jovem cigana vestida de vermelho, que nos olha junto a uma janela, através da qual, ao modo da pintura flamenga, a luz entra de modo lateral, cálido e opalino. As mãos pousam suavemente e o olhar é frontal. É um retrato notável e faz-nos convocar o ensaio de Roland Barthes La chambre claire (1980), quando o autor se refere ao punctum, entendido como algo não codificado, portanto inquietante, como um pormenor que se acrescentaria à fotografia mas que, na verdade, já lá estava. Segundo Barthes, o studium seria a informação a decifrar contida na imagem produzida pelo operator, isto é, uma espécie de acção principal; o punctum representaria o fundamento emotivo da imagem, que se situa entre o operator e o spectator, o que Barthes define como “mistério da presença”. E o mistério deste retrato é também do domínio poético, deixando em suspensão um espaço importante de relação subjectiva com o espectador.

Esta exposição dá-nos a possibilidade de olhar uma comunidade, por vezes sentida como inacessível no seu espaço de intimidade, o que não é comum e é relevante, precisamente porque abre portas de contacto, conhecimento e comunicação. E são estas vias que poderão ter um papel de reconhecimento, desmistificação e empatia. Eventualmente, esta exposição contribuirá, de forma significativa, também para isso. Saímos, talvez, de um modo diferente do que ali entrámos. A arte é também isto.  

 

 

Pedro Vaz: Transect

@Galeria Diferença

 

Pedro Vaz (n. 1977) mantém-se coerente na sua linha de trabalho ligada à Natureza, sob diversas formas e formatos visuais. Transect — o título desta mostra — é, por definição, uma faixa de terreno usada para monitorizar um fenómeno em estudo. Antes de entrarmos na sala começamos a sentir o perfume de casca de pinheiro e de pequenos trocos de árvores no chão. A exposição vem ao nosso encontro antes de o olhar o permitir. E isto sucede, além do olfacto, também pela audição. À medida que nos vamos aproximando, o barulho dos passos sobre o chão da floresta torna-se mais distinto (Outro ser, 2023, vídeo). Está fresco ali. De súbito, percebemos que estamos também na floresta, ao pisar a casca de pinheiro, ao ouvir alguém a percorrer a floresta e ao sentir o perfume das árvores na sala. Esta entrada é efectivamente bem conseguida, porque causa alguma surpresa e convida à vivência efectiva do lugar. Na verdade, a visão e a caminhada são uma constante no trabalho artístico de Pedro Vaz, numa simbiose entre tempo-espaço-visão-obra de arte.    

Nas duas paredes da galeria econtram-se dispostas seis telas, pousadas no chão e encostadas às paredes, com uma altura (um pouco mais de dois metros) à escala do espectador. Além de ser uma boa resolução curatorial do espaço, este torna-se então numa espécie de simulacro do bosque. As telas evocam arvoredos, numa gramática de pendor abstractizante e elegante. Na verdade, esta exposição permite uma experiência estética e sensorial ao visitante. Esta ideia de experiência tem vindo a ser muitas vezes uma forma de publicitar exposições, sobretudo recentemete. Mais um aspecto das modas do momento. Contudo, no caso de Transect esta experiência afigura-se uma boa surpresa e bem conseguida, sem artificialismos, pelo contrário.

Do ponto de vista histórico, o entendimento da paisagem como género autónomo, isto é, de primeiro plano, acontece inicialmente com a pintura holandesa do século XVII, com o barroco e, posteriormente, no âmbito da estética romântica, concretamente no que se refere ao processo de abandono definitivo do princípio básico de imitação, por exemplo, com a introdução da categoria estética do “sublime”, na sua extrema amplitude e intensidade que transcende a categoria do belo. O sublime pode precisamente acontecer pela observação tanto da paisagem como da imagem da paisagem.  No século XIX, pintores e fotógrafos aventuram-se pelo bosque dentro nesta procura. Fontainebleau foi um dos predilectos. No século XXI, com a rapidez da vida e da tecnologia, faz todo o sentido a existência destes espaços de contemplação, também do ponto de vista da fruição artística. Esta exposição é, possivelmente, das melhores de Pedro Vaz nos últimos tempos e assinala também uma boa aposta da Galeria Diferença. O tempo ganha uma dimensão de contemplação sensorial.

 

 

 

Isabel Nogueira [n. 1974]. Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte [Universidade de Lisboa] e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem [Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne]. Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014]; "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" [Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015]; "Théorie de l’art au XXe siècle" [Éditions L’Harmattan, 2013]; "Modernidade avulso: escritos sobre arte” [Edições a Ronda da Noite, 2014]. É membro da AICA [Associação Internacional de Críticos de Arte].

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

 

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Pedro Vaz. Transect. Vistas da exposição na Galeria Diferença. Cortesia do artista.

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