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Hélice: SPECTRUM 

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João Seguro

Fotógrafos que usam a fotografia — foi com este epíteto algo insolente que em 2015 Duarte Amaral Netto, João Paulo Serafim, Rodrigo Tavarela Peixoto e Valter Ventura se apresentaram enquanto coletivo de nome Hélice. Já lhes conhecíamos a obra autoral individual e até alguns empreendimentos coletivos mas agora formalizava-se um grupo que propunha a utilização da fotografia, para lá das circunstâncias e vontades individuais. Desde essa altura a Hélice desdobrou-se em atividades — exposições, um programa de estudos avançados em fotografia, seminários, workshops e a edição de uma publicação regular temática, a Propeller, assim em Inglês, dado o carácter internacional das colaborações e da circulação.

A exposição Spectrum, patente até ao final de Junho de 2022 na Galeria Avenida da Índia, propõe um itinerário por alguma dessa atividade e aproveita a oportunidade para estender as suas trocas. 

Entramos na galeria e somos confrontados com uma grande abundância de imagens, em diversas escalas, dispostas em várias formações, distribuídas pelo espaço de forma a favorecer ou a questionar processos de leitura apropriados à sua natureza, por vezes mais orgânica, por vezes mais estrutural. O que observamos primeiro de forma mais dispersa por todo o espaço da exposição é uma série de imagens [incógnitas], em pequenos grupos, ou individualizadas. Estas imagens são provenientes do ar-qui-vo [2017] — um repositório de imagens em processo contínuo, para o qual os quatro membros da Hélice contribuem regularmente, e que tem como princípio a agregação de coleções de imagens de escolha individual que, ao entrarem nesse conjunto, perdem obrigatoriamente a sua vertente estética de nome próprio e embarcam numa anomia estratégica. Para que este «arquivo» ganhe densidade e consiga acompanhar esta desindividuação, convidam-se outros agentes para contribuir com material que, de igual forma, se sujeita às mesmas limitações. 

 

 

Foi a partir deste ar-qui-vo que se desenharam as declinações públicas anteriores, e é a partir deste mesmo material em constante ampliação que emergem as imagens e objetos que aqui se apresentam para trabalhar a temática da Duração.

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As imagens dos quatro elementos da Hélice a quem se juntam para esta etapa os colegas e amigos Carlos Lobo, Diogo Bento, Fernando Marante, Garcez da Silva, Humberto Brito, Katerina Poliacikova, Manuela Marques, Oleksandr Lyashchenko, Pedro Tropa, Sofia Silva, e Soraya Vasconcelos, apresentam-se primeiro numa organização central em grelha, na qual seiscentas e trinta imagens [apenas 315 visíveis, estando as outras sob as imagens expostas, à mercê da curiosidade do visitante, no total o arquivo conta já com 750 entradas], nos dão conta da atual iteração do arquivo agora subordinado, de forma muito aberta, à noção de Tempo e de Duração, e à sua premência no contexto alargado da definição de imagem fotográfica, sob a alçada de Henry Bergson, e de Peter Handke, que citam:

« — Essa duração o que foi? Foi um espaço de tempo? Algo de mensurável? Uma certeza? Não, a duração foi um sentimento, o mais fugidio de todos os sentimentos, que passa muitas vezes mais depressa que um instante, imprevisível, impossível de dirigir, impalpável, imensurável. […] Para tais momentos de duração, permite-se usar um verbo especial, eles constelam-se. […] É também peculiar o sentimento de duração em face de certas coisas pequenas, quanto mais simples mais impressionantes. »

 

Esta enorme grelha serve de matriz ao trabalho da Hélice; no fundo, o trabalho fotográfico que a circunda funciona como pequenas erupções desse arquivo de imagens, indo algumas delas desembocar a outros meios de expressão como o vídeo ou a escultura. Esta abertura parece ser tática e de alguma forma responder aos desígnios programáticos do coletivo - nunca acabar como se começa, e talvez por isso nunca permitir que uma imagem se apresente como um fim. Neste ar-qui-vo, sublinha-se a correlação da imagem e do texto, tentando de certa forma alterar a escala de valores que advém da reciprocidade da linguagem verbal e visual institucionalizada. Ensaia-se a inutilidade, nas palavras da Hélice, que parece pari passu com o desejo Kantiano de uma finalidade sem finalidade para a arte. 

 

 

Observamos estas imagens e objetos e vislumbramos algumas pistas — movimento, repetição, unidades de medição, camadas, sobreposição e palimpsesto, gesto e signo, alegoria e interstício, evocação, memória, sugestão e especularidade. Este conjunto é colocado sob o título Efetivação do ar-qui-vo [2022] e o que parece querer fazer é enunciar a fluidez das portas de entrada e saída que a cultura fotográfica suporta através da desqualificação e desenraizamento das imagens. Sem objeção, que estas perdas não são em prejuízo da fotografia, antes a proposta de possibilidades que só se podem encontrar alterando continuamente os limites da sua utilização. 

Por vezes as imagens são agrupadas em conjuntos, como que a desencadear possíveis leituras associativas, outras vezes surgem isoladas, como forma de particularização do acontecimento, no entanto têm quase sempre um pendor pictural. Ou seremos nós que atribuímos um sentido pictural porque sabemos que as imagens têm determinada origem, um certo pedigree identitário, apesar de nos ser negada essa “identificação positiva” de uma autoria? 

Tínhamos deixado para trás uma sala escura que nos apareceu logo à entrada da exposição porque o o magnetismo das constelações de imagens espalhadas pelo espaço atraiu a nossa atenção. Voltamos na esperança de encontrar alguma informação complementar que nos permita fazer sentido deste inusitado dispositivo visual. Nesta sala apresenta-se uma tripla projeção de diapositivos intitulada Do funcionamento dos relógios e outros padrões [aplicação do sistema de zonas a arquivos comerciais e vernaculares da 2ª metade do século XX], [2022]. Esta peça é constituída por três projeções de diapositivos sincronizadas, nas quais as imagens se vão sucedendo e intercalando, sugerindo morfologias combinatórias díspares e enigmáticas.

Se nos anteriores agrupamentos de imagens a desindividuação autoral encaminhava os nossos esforços de leitura para a anomia e para a inutilidade tática, aqui compreendemos que o território é mesmo o da concretização do sonho contra-arquivístico — como reconquistar o espanto do olhar originário, aquele que conduz a imaginação, numa época inteiramente dominada por uma suposta transparência dos signos?

À medida que as imagens se sucedem, e o ritmo das combinações assaltou por completo qualquer capacidade de encontrar padrões e modelos de leitura que estanquem as imagens em conjuntos mais ou menos estáveis, eis que somos tomados por imagens manuscritas de potenciais taxonomias:

 

ESTUDOS DA TERRA E DO TEMPO; APONTAMENTOS DE OROGÉNESE E NÁUTICA; MEDIÇÕES, PADRONIZAÇÕES E COMPARAÇÕES; VERTIGEM E OUTRAS HESITAÇÕES; SIGNOS TÉCNICOS E MECÂNICOS; METAMORFOSES E OUTROS ACIDENTES; ANATOMIA E AUTÓPSIA; CONSTRUÇÕES E ACUMULAÇÕES; PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES VITAIS; JOGOS ENTRE O CÉU E A TERRA; PROBABILIDADES E INCÓGNITAS.

 

Já conhecíamos estas classificações do ar-qui-vo e fica no ar a dúvida sobre qual a natureza dos cruzamentos dessa coleção de imagens quando sujeitadas esta declinação. Há uma manifesta desacomodação da utilização destas coleções, com o claro objetivo de volatilizar não só a integração das imagens, como das estruturas ideológicas dentro das quais podem operar. Ao migrarem estas gavetas taxonómicas do arquivo para este estudo de carácter conjetural e ficcional, estão a afirmar a prática do uso da imagem enquanto uma folksonomia, a sublinhar o carácter coletivo enquanto modo de escrever, pensar e produzir imagens, e de imaginar a micro-história potencial de uma comunidade de indivíduos. 

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Num outro extremo da sala de exposição encontramos um conjunto de materiais gráficos, visuais e verbais que dão conta das atividades editoriais da Propeller, o braço editorial da Hélice. Já com 4 números editados, com temas tão díspares como O Pornográfico, A Mancha, Ficção ou, Propaganda, e com um novo volume em preparação com a temática do Tempo, desenvolve-se aqui uma pulsão um pouco diferente — o meio artesanal das publicações serve para combinar trabalhos que já existem, ou inéditos de autores que de alguma forma servem para enquadrar um dado tópico. Não se pode dizer que seja de todo afastado daquilo que é a lógica combinatória do que se apresenta na exposição, mas uma forma assumidamente autoral de apresentar, que obedece a lógicas próximas da curadoria. É que cada publicação trabalha as intervenções dos artistas e fotógrafos com a particularidade material que cada trabalho exige para se tornar legível neste formato. Esta ética origina naturalmente objetos muito artesanais, que em muitos casos replicam um deslumbramento original, associado ao prazer do manuseamento destas imagens e destas matérias como um todo. Este recanto da exposição permite um mergulho nos muitos aspetos relacionados com as fases preparatórias dessas publicações, e até entradas nos episódios mais caricatos da vivência diária do coletivo.

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Saímos da sala com a ideia da desadequação do formato exposição à cada vez mais urgente complexidade do trabalho crítico e criativo das e pelas imagens. É no entanto, um parêntese, no qual se pode abordar estas limitações. 

Ouvimos uma voz que ecoa no espaço e que, apesar de nos ter acompanhado durante todo o tempo da nossa visita com tiradas vocalizadas em períodos regulares, apenas agora distinguimos com atenção: — 16h32, Encontrou o templo que procurava, não era o que tinha imaginado — diz. 

Esta peça sonora tem a duração de 24 horas e a voz está sincronizada com a hora atual, indicando sempre a hora antes de cada frase.

Aguardamos alguns minutos e regressa com a seguinte tirada: — 16h46, Após um susto o homem escreve na margem do livro que lia “Se trabalho morro, se não trabalho morro também. Que fazer? Continuar a trabalhar!”. Ri-se e chama a neta que estava sentada ao seu lado dizendo-lhe — Olha o que escrevi!

Haveria alguma ordem para desvendar nestas palavras? Haveria alguma ordem naquelas imagens? A voz regressa e diz-nos: — 16h53, Sentado no escuro Irineu recordava.

Permanecemos mais um pouco porque estas frases parecem alegorias, talvez nos permitam descodificar o alfabeto e a estrutura que preside ao que nos rodeia… E a voz irrompe novamente: — 17h00, Resolveu comprar o urinol, algo nele o atraía, era o objeto ideal, iria ressoar mais alto quando o devolvesse ao mundo.

Assombrados pela acutilância das palavras permanecemos, até que que ecoa: — 17h03, Os sons em redor emudeceram. Nyembeti sabia que nada de bom vinha depois deste silêncio.

 

 

Galerias Municipais — Galeria Avenida da Índia

 

 

Hélice

 

 

 

João Seguro [1979], vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou, desde 2006, as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

 

 

 

Hélice: Spectrum, Vistas de exposição. Galeria Avenida da Índia, Lisboa. Fotografia: João Paulo Serafim. Cortesia dos artistas e Galerias Municipais de Lisboa.

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