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Federico Herrero: Tactiles

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Cristina Sanchez-Kozyreva

Fronteiras que respiram

Há qualquer coisa de estimulante na interpretação que Federico Herrero gera das duas salas de estilo white cube na cave da Kunsthalle Lissabon.

Ao descermos as escadas, dá-nos as boas-vindas, com a confiante inocência da juventude, uma profusão de formas retangulares arredondadas e coloridas pintadas diretamente sobre a parede. Divididas em grupos, parecem subir pelas superfícies, alcançando o teto como que fossem bolhas de alegria ou balões prestes a rebentar num céu tácito. Em deliciosas matizes de verdes e amarelos confeitados, com destaques laranjas, rosas e azuis, produzem assim um confronto espirituoso com a frieza descorada das paredes e da iluminação. No chão, vêem-se dois arranjos quadrangulares de esculturas cinzentas de cimento em forma de prismas triangulares; como que por instinto, o visitante lembra-se prontamente de montanhas pontiagudas, ou de fileiras de pinheiros, particularmente se as olhar do início das escadas. Também de uma especial subtileza, o suave cinzento pastel do cimento de que são feitas é sublinhado aqui e ali, junto à base das formas, por uma pincelada verde rasgada.

Na Costa Rica, onde vive e trabalha, Herrero distribui o seu tempo entre o ambiente urbano e a selva, pelo que a sua linguagem visual não só se vê largamente influenciada pela experiência que deriva de ambos como também observa os limites de cada envolvência. Quanto à sua obra, o artista fala do espaço liminar que nasce dos encontros mareais entre o oceano e a selva e que é mediado pela areia da praia, transformando-se com o tempo e com cada vaivém entre as águas e a prolífica expansão das florestas tropicais. Porém, mesmo não conhecendo a vida do artista, esta sala oferece ao observador uma paisagem minimalista e luminosa que se insinua não por montes, vales, campos ou florestas tropicais, mas antes por blocos de cimento e de cor — será aquilo uma tira de oceano no horizonte? E ali, um prado? Ou um canteiro? De qualquer forma, a paleta de Herrero recorre a tons sorbet, verdes exuberantes e azuis soalheiros, evocando em certa medida a prática de um pintor moderno de espaços tropicais.

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A segunda sala, mais pequena e contida, vê-se obstruída por várias esculturas de mesa em cimento e madeira e de altura variável que o visitante tem de contornar. Todas partem da forma retangular, tratem-se elas de blocos de cimento ou de tábuas, às quais o artista juntou cavaletes, como que para construir uma mesa, ou divisórias, como numa mesa de pingue-pongue com a rede descentrada. Há qualquer coisa na textura e cor do cimento que quase lhe dá uma aparência aveludada; e esta qualidade palpável é sustentada pelo título da exposição, Tactiles, que parece incitar o visitante a passar os dedos pelas esculturas, como se estas tivessem forro de pelúcia. Ao redor das esculturas-ilhas, a cor azul persevera — um azul pastel levemente acinzentado aparentado ao cinzento suave das esculturas de cimento — cobrindo os rodapés das paredes circundantes, como se a própria sala fosse uma ilha. E, se de facto o fosse, não seria uma ilha selvagem, virgem; antes, habitá-la-iam construções brutalistas despojadas, feitas de material cimentício. 

Acima de tudo, a obra de Herrero deve ser compreendida fisicamente, uma vez que reintroduz uma abordagem sensorial de apreensão do mundo às almas adultas que já há muito esqueceram as alegrias cinestéticas do jardim de infância. No entanto, se, atentando em certos aspetos, a obra se mostra ingénua e lúdica, também implica uma certa pressão, nem que seja pela aparente contradição inerente à experiência da natureza através do cimento; ou até pela ideia de que as ervas, as flores e até as árvores conseguem invariavelmente rebentar e crescer — será certamente o caso em climas tropicais — por entre as rachas e fissuras do betume. E isto também é uma chamada de atenção: a natureza vai sempre encontrar solução, com ou sem humanos, ou apesar dos humanos, que poderão muito bem ser simplesmente descartados. As teorias que o sugerem ainda são algumas, nestes nossos tempos de preocupações ambientais e de subidas particularmente alarmantes de temperatura e do nível médio dos oceanos, com a ameaça constante de ilhas e terras alagadas. 

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Contudo, à parte a necessidade de ouvir a mensagem da Terra, esta obra convida-nos a atentar nas incarnações dos limites e das fronteiras — incarnados por partições, formas membranares e horizontes. Os nossos corpos são capazes não só de compreender as realidades da gravidade da Terra e da natureza das marés mas também, por extensão, a ideia dos limites psicológicos e a implicação da coexistência generalizada.

As forças que empurram e puxam os oceanos e os litorais, ou aquelas que existem entre a natureza intocada e os lugares construídos, ou até aquelas que se disputam entre dois países ou territórios marítimos: todas estas podem ser manifestações da forma como qualquer elemento deste universo — até uma mera partícula — ocupa espaço, em coexistência com todos os outros elementos, ou partículas, deste universo.

Viver ou ser em conjunto cria energia. E, assim, as zonas fronteiriças entre as paisagens; as divisões e sobreposições culturais, sociais, económicas e políticas; as semelhanças e diferenças ideológicas: qualquer material ou imaterial que contenha contraste gera um enérgico território interseccional. Noutras palavras, esse território liminar, que se encontra em constante movimento, vive.

Um limite não é somente um fim: é uma zona viva, num estado constante de fluidez, não diferente do — ou, antes, em tudo idêntico ao — universo em que vivemos.

 

 

Federico Herrero

 

Kunsthalle Lissabon

 

 

 

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro.

 

 


 

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribuiu, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic. É editora chefe da revista digital Curtain Magazine.

 

 

 

 

 

Federico Herrero, Tactiles. Vistas de exposição. Kunsthalle Lissabon, Lisboa. Fotografia: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Kunsthalle Lissabon. 

 

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