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Veronika Spierenburg e Nuno Barroso: Cemitério das Âncoras

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Sara Castelo Branco

 

O primeiro plano do filme Cemitério das Âncoras (2019) de Veronika Spierenburg e Nuno Barroso é o encontro do mar com a terra — o espaço limiar de união e convergência, onde os dois se encontram num ponto comum. Os planos seguintes do filme mostram a paisagem de várias imagens da zona dunar da Praia do Barril no Algarve, onde várias centenas de âncoras foram deixadas, transformando o lugar num depósito vinculado à morte e à obsolescência, e que testemunha a decadência da indústria pesqueira do atum durante o último século. A âncora é o instrumento que mantém o navio estável e imóvel, simbolizando justamente a interdependência e o conflito entre o sólido e o líquido, a terra e o mar. É portanto sob o signo desta dependência comum que se concebe a exposição Cemitério das Âncoras (2021), apresentada na Galeria da Boavista, um espaço situado sintomaticamente no bairro lisboeta do Cais do Sodré, junto ao rio Tejo. Esta exposição resulta de um projecto colaborativo entre Spierenburg e Barroso acerca das ligações históricas, sociais, culturais e económicas que envolvem o mar e a indústria marítima, sejam os desafios que os pescadores e as mulheres da pesca artesanal enfrentam na contemporaneidade ou as particularidades identitárias e culturais desta actividade, que cingem uma memória colectiva e simbólica particularizada em determinadas práticas e representações.

Associando-se intimamente à construção do território costeiro e à constituição de parte da materialidade que integra a sua paisagem, a actividade pesqueira é observada em Cemitério das Âncoras através de uma experiência contemplativa sobre a natureza marítima, a expressão escultórica dos objectos pesqueiros ou os movimentos gestuais e corporais envolvidos neste ofício. Através de um conjunto de planos imóveis, a câmara fixa as paisagens de diferentes locais ao longo da costa portuguesa, ao mesmo tempo que capta diversos pormenores como redes de pesca ou pequenas embarcações que, moldadas e esculpidas pelo tempo, relevam um valor simbólico e memorial ligado a estes objectos. Esta correspondência, entre a intemporalidade da natureza e a temporalidade da materialidade ligada à pesca, é acompanhada no filme pelos relatos orais de pescadores e outras pessoas ligadas à pesca, que se expressam frequentemente através de frases elípticas e breves que não adivinhamos como começaram ou como irão terminar. Estas narrativas orais manifestam diversos aspectos que compõem as percepções sociais, económicas e culturais de quem trabalha com a pesca, como as denúncias às más práticas laborais, o aprendizado adquirido e herdado, a marcação das diferenças e semelhanças regionais, ou a organização das representações e conhecimentos plurais do “saber-fazer” piscatório.

No entanto, Cemitério das Âncoras é um igual reflexo do lado mais obscuro da pesca: o trabalho árduo, as mudanças nocivas da era de capitalismo, as alterações ambientais, a diminuição dos recursos da pesca, o desaparecimento de diversas artes artesanais em resultado da perda de rentabilidade e das múltiplas inovações tecnológicas de motorização e mecanização das operações piscatórias.

Por outro lado, estes diversos entrevistados nunca são praticamente figurados no filme, enquadrando-se dentro de uma estratégia discursiva de supressão da identificação de quem fala, que se compatibilizada com a forma como os locais são filmados, dado que o reconhecimento dos lugares se dá apenas por pequenos vestígios ligados ao nome dos barcos ou às particularidades de certas paisagens. Este exercício de imagens, onde nada é imediatamente dado, produz uma espécie de representação ecuménica da actividade piscatória, que remete a algo mais universal e colectivo, que pode vir do pessoal para o todo ou do todo para o pessoal.

Além do filme que a denomina, a exposição Cemitério das Âncoras representa o imaginário da pesca e do mar convocando a cultura material que lhe é imanente. Juntamente com as reproduções escultóricas concebidas pelos artistas em colaboração com artesãos locais, Spierenburg e Barroso apresentam artefactos e documentos visuais que foram emprestados por museus de todo o país, incluindo fotografias da autoria de Benjamim Pereira e Artur Pastor, ou, o legado dos etnógrafos do Centro de Estudos de Etnologia de Lisboa que, nas décadas de 1950 a 1970, procuraram preservar e documentar diversas técnicas e conhecimentos que se encontravam quase em extinção. A exposição convoca, portanto, o conhecimento tradicional e simbólico vinculado aos próprios materiais e objectos de pesca, procurando inscrever o carácter construído do património piscatório, que articula e expressa diferentes materialidades, memórias e visibilidades. Ao conceber a pesca como uma igual forma de engajamento material do humano com o mundo, o confronto destes objectos com o filme conduz a uma percepção mais alargada sobre o tecido comunitário, artístico e histórico da actividade piscatória. A exposição Cemitério das Âncoras agrega, portanto, questões críticas e simbólicas que, transitando sobre dimensões materiais e imateriais, inscrevem a urgência de salvaguarda e protecção da pesca artesanal enquanto entidade económica e social, mas também identitária, simbólica e cultural.

 

Galeria Boavista

 

Sara Castelo Branco é Doutoranda em Ciências da Comunicação/Arts et Sciences de L’Art na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e licenciada em Ciências da Comunicação e da Cultura (ULP). Na área da crítica e da investigação sobre as áreas do cinema e da arte contemporânea, tem colaborado regularmente com textos para revistas, catálogos e outras publicações de âmbito académico e artístico.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Veronika Spierenburg e Nuno Barroso: Cemitério das Âncoras. Vistas da exposição na Galeria da Boavista. Fotos: Nuno Barroso. Cortesia dos artistas e Galerias Municipais/Egeac.

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