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Território Solar — Coleção de Fotografia do Novo Banco

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José Marmeleira

 

No Museu Municipal de Faro, uma exposição colectiva dá a conhecer a colecção de fotografia do Novo Banco, reagindo ao espaço que a acolhe, sem se deixar determinar por um tema ou objecto precisos.

 

Apresentar, numa exposição, uma colecção de obras de arte é um exercício incompleto, parcelar. É impossível mostrar tudo e, por vezes, não é possível fazer uma exposição que seja, cabalmente, representativa da colecção. Por outro lado, traduz sempre um exercício criativo de reinterpretação e montagem dos trabalhos seleccionados. Ao curador cabe não apenas mostrar e introduzir obras a um público pouco conhecedor, mas construir uma exposição. E construir uma exposição é compor um texto inédito, desenhar um caminho, que embora temporário, nunca antes havia existido.

Território Solar, com a curadoria de Maria Eduarda Duarte, reflecte estas experiências, iluminando as suas qualidades e lacunas. No Museu Municipal de Faro, pretende desvelar a Colecção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco, permanecendo sensível a contextos, lugares e paisagens particulares. Isto é, não se encerra na colecção, mas, partindo desta, deseja reagir ao espaço que a acolhe. A ideia de um Sul, abstracto, nem sempre tangível, é o horizonte conceptual e temático proposto, mas não há um assunto ou objeto precisos. A exposição dispersa-se, livre, por vezes sem rumo, por uma série de áreas e espaços, dando a ver trabalhos pouco vistos (e esta é uma qualidade que não pode ser menorizada: há obras notáveis expostas no primeiro piso do antigo Convento da Nossa Senhora da Assunção).

Via Appia da série Portobello de Patrícia Almeida recebe o visitante, com o retrato de um espaço de lazer que, esvaziado da presença humana, se exibe no seu mais triste kitsch. Foi um lugar fictício e, no entanto, real. As colunas, o repuxo e o verde artificial do chão estiveram ali, mas a paisagem, ao fundo, confere à cena uma irrealidade fria. É menos o retrato de um território do que de uma malaise geral: as férias e o lazer no Sul deram lugar à vida abandonada das coisas. Com semelhante preâmbulo, Território Solar promete, por instantes, enveredar por um teor documental ou sociológico-cultural, mas logo se desvia noutra direção.

Na sala seguinte, estão trabalhos de Willie Doherty, Ignasi Aballí, Michael Wesely e Uta Barth. É um conjunto heterógeno de imagens e universos estéticos, formais e visuais que dissolve qualquer tematização, expandindo a natureza da imagem fotográfica (Aballí), a sua perceção (Uta Barth) ou os seus géneros (Michael Wesely). A imagem e prática fotográfica tomam o lugar do território, permitindo ao visitante explorar outros domínios, mesmo quando certas imagens — é o caso da magnífica série Grey Day de Willie Doherty — resistem ao desaparecimento do referente documental (no caso, a Irlanda do Norte).

A questão da identidade reúne obras de Aino Kannisto, Leslie Hewitt e Daniel Malhão, mas num sentido, porventura, demasiado lato. A ficção do retrato encenado de Aino Kannisto desencontra-se da arquitectura fotografada por Daniel Malhão enquanto Untitled (Pyramid) de Leslie Hewitt parece entretida num monólogo, separada das outras imagens. As relações que as obras deviam criar surgem diluídas pelas distâncias que as separam e nem sempre a montagem, por si, consegue produzir constelações de sentidos.

Mas é isso que acontece no conjunto composto de obras de Susan Meiselas, Gabriel Orozco, Faivovich & Goldberg e Tacita Dean.

A exposição religa-se a uma ideia de território, por meio da terra, do solo e outros elementos naturais (árvores), numa alusão simbólica e subtil à realidade geográfica, geológica e atmosférica do espaço exterior.

O sul representado é o do Mali (Gabriel Orozo), do bairro da Cova da Moura (Susan Meiselas) ou Madagáscar (Tacita Dean), mas a representação (pela paisagem ou as pessoas) não se detém no documento. Dispostos no mesmo espaço, os trabalhos vão levantando interrogações sobre a escultura e a paisagem, a arte e a cultura, a globalização e a natureza, o espaço e o tempo. É um dos momentos mais bem-sucedidos da exposição, pela dialética que vai desenhando entre diferentes géneros e tipologias.

Território Solar experimenta-se num movimento pendular entre o fotográfico na arte — note-se as propostas de Gabriel Orozco e Tacita Dean, e, especialmente de Faivovich & Goldberge — e o fotográfico de pendor mais documental, que começar por reagir ao real (sem necessariamente proceder de uma pesquisa preliminar do artista). É no intervalo produzido por estas duas abordagens que a sala final se estabelece, com trabalhos de Samuel Rama, Jeff Wall, Pauliana Valente Pimentel e José Manuel Rodrigues. Neste conjunto heterodoxo, pretende-se pensar a presença e a perceção do corpo na paisagem, corpo esse que pode ser não-humano, corresponder um efeito de um corpo ou ser uma parte do corpo. Diante da intensa polissemia do conjunto, a exposição abeira-se não tanto de um diálogo, mas de uma série de discursos mais ou menos isolados que cabe ao visitante ligar entre si. Não é um exercido fácil, mas pode ser ensaiado. Por exemplo, colocando o espaço ferido de Jeff Wall diante da timidez desprendida da família de Pauliana Valente Pimentel. Ou, em termos formais, os rostos de José Manuel Rodrigues frente às árvores de Samuel Rama. Deste modo, fazendo emergir o território em que se inscrevem, que não é apenas físico, mas existencial e fotográfico.

 

Museu Municipal de Faro

Coleção de Fotografia do Novo Banco

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

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Imagem de capa: João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Sobre a gravidade, 2009. Prova por revelação cromogénea, 95 x 135 cm. Ed. 1/6+ 2PA © dos artistas, todos os direitos reservados. Cortesia da Coleção de Fotografia do Novo Banco. 

Restantes imagens: Vistas gerais da exposição Território Solar no Museu Municipal de Faro. Fotos: © Marco Pedro. Cortesia do Museu Municipal de Faro / Câmara M unicipal de Faro.

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