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Julião Sarmento (1948-2021)

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Isabel Nogueira

 

A arte é modernidade e espanto

 

Julião Sarmento (1948-2021) partiu cedo. E cedo, porque ainda teria muito para dar à arte contemporânea e às pessoas que dele gostavam. Este texto de homenagem situa-se precisamente entre a história da arte contemporânea — de que foi um notável protagonista — e o assumido afecto pessoal.

Nasceu em Lisboa, onde passou a infância. Sem irmãos nem primos para brincar entretinha-se sozinho, ou seja, consigo próprio e com as histórias que ia inventado. Possivelmente aqui surgia a capacidade de criar universo, visão, mundo. Rapidamente o cinema e a literatura se tornavam seus cúmplices. Nunca mais os abandonaria, assim como à música. Ainda ponderou Direito e Filosofia, acabando por ingressar em Arquitectura, que abandonou quando lhe faltava apenas um punhado de disciplinas para a conclusão.

Entretanto, consolidava-se a amizade e a afinidade intelectual e artística, entre outros, com Fernando Calhau (1948-2002). Foram ambos assistentes de Joaquim Rodrigo (1912-1997), a quem Julião compraria a sua primeira peça. Além do artista, merece referência o Julião Sarmento coleccionador, igualmente criterioso e exigente neste papel. A sua enorme criatividade conheceu uma feliz fusão com uma notável capacidade de foco e de organização. O Julião Sarmento sabia sempre onde estava determinada fotografia ou informação importante, quando se lhe pedia. E era imensamente generoso e disponível nessa partilha.

Por estes anos, Julião teria diferentes trabalhos, desde professor de língua inglesa – na qual era absolutamente fluente e, de resto, é conhecida a sua referência cultural e artística anglo-saxónica —, fotógrafo de moda — a moda foi outra sensibilidade sempre presente no seu percurso —, ou designer gráfico. Viveu em Moçambique e África do Sul, mas o 25 de Abril de 1974 surpreende-o já em Lisboa, no seu ateliê. Na altura, e até ao nascimento dos seus filhos, definia-se como noctívago. Como referiu na entrevista que lhe fizemos há três anos — Contemporânea, 2018: "Nessa madrugada, estava a trabalhar no meu ateliê, que na altura era em minha casa — que ardeu no incêndio —, e que dava para a Rua Nova do Almada e para as Escadinhas de São Francisco. Estava a trabalhar e ouço a notícia na rádio. Fui à janela e passado um bocado comecei a ver os tanques passar. Foi uma alegria. Depois fui para onde todos iam, o Largo do Carmo".

Da ditadura recordava "O isolamento em que se vivia. Isolamento intelectual e social. Era difícil. Não se podia falar abertamente, ter acesso às coisas, aos filmes, por exemplo. Era tudo censurado e empobrecedor" — Contemporânea, 2018. Certamente. Entre 1974 e 1976, Julião Sarmento trabalhou como arquitecto no Fundo de Fomento da Habitação, concretamente no Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), e posteriormente, até 1985, na Secretaria de Estado da Cultura, na área de Artes Plásticas. A partir daqui seria artista a tempo inteiro.

Em 1976, na Galeria de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas-Artes, realizaria uma das primeiras apresentações individuais. No ano seguinte, participaria na mais importante e implicativa exposição colectiva da década, a Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, com organização de Ernesto de Sousa. Em 1980, a sua internacionalização seria acelerada com a presença na Bienal de Paris, e, em 1982, na Documenta 7, em Kassel, nesse ano com direcção de Rudi Fuchs. Em 1983, Julião participou na exposição que lançou o debate em torno do movimento pós-moderno em Portugal: Depois do Modernismo, com curadoria de Luís Serpa. Foi o representante de Portugal na Bienal de Veneza, em 1997. Em 2012, o Museu de Serralves apresentou a maior retrospectiva do seu trabalho, intitulada Noites Brancas. Receberia o Prémio AICA 2012.

Efectivamente, Julião Sarmento foi um dos artistas portugueses mais conceituados da contemporaneidade e com maior internacionalização, tendo sido representado por algumas das mais relevantes galerias a nível mundial e tendo exposto em alguns dos mais reconhecidos espaços dedicados à arte contemporânea. Contudo, e como afirmou: "Nunca desejei sair do meu país. Sou português e sempre procurei afirmar-me, ser o melhor artista que conseguisse, daqui para fora, para o mundo" (Contemporânea, 2018).

Do ponto de vista especificamente da obra, há uma modernidade constante e inequívoca em Julião Sarmento. Como o próprio afirmou: "(…) a arte, por definição, [é] um exercício de rebeldia" (Contemporânea, 2018). Percorreu vários suportes e linguagens, entre pintura, fotografia, escultura, instalação, filme ou performance. Julião trabalhou sempre em cima do momento artístico que se vivia, desde a ligação a um conceptualismo, nos anos 70, até, nos anos 80, ao designado “regresso à pintura”, no contexto do movimento pós-moderno. Aliás, as suas pinturas deste período são notáveis. Nos anos 90 voltaria a uma subtileza, a um maior depuramento. O seu trabalho, independentemente do suporte e do movimento a que se conecte, evidenciou sempre um elevado domínio técnico, uma enorme criatividade e versatilidade, uma elegância e um depuramento impressionante. Além, claro, de um certo fetichismo e erotismo de fundo.

Para Julião Sarmento a arte definia-se sobretudo pelo espanto. É efectivamente uma bela e oportuna definição. E talvez esta necessidade de espanto estivesse na origem da sua imensa curiosidade sobre o Mundo e sobre o Outro, inclusivamente no que diz respeito aos artistas mais jovens e ao Novo, num sentido genérico. Por isto também se percebe a juventude de Julião Sarmento. E voltamos ao início, Julião morreu jovem. Deixa imenso à arte contemporânea, mas deixa também muito aos que dele gostavam e que tiveram o privilégio de com ele privar. Obrigada e até sempre, Julião.  

 

Julião Sarmento

Cristina Guerra Contemporary Art

Entrevista a Julião Sarmento

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

Imagem de capa: © Cortesia de Cristina Guerra Contemporary Art.

Fotógrafo: Vasco Stocker Vilhena.

 

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