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Flora: Aquisições do Núcleo de Arte Contemporânea da CML e do Atelier-Museu Júlio Pomar

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José Marmeleira

 

Na natureza de uma exposição residem as suas qualidades e, à falta de melhor termo, imperfeições. Flora, no Atelier-Museu Júlio Pomar (AMJP), é uma exposição que reflecte esta dualidade. Mostra-se generosa e, em simultâneo, excessiva. As obras ocupam o espaço numa efervescência visual e física. Vemo-las nos dois pisos, nas paredes, no chão, sobre uma insólita superfície. Por vezes, sem a ajustada distância, desorientam, confundem. Aparecem demasiado próximas umas das outras e, assim, passam despercebidas, furtando-se à experiência perceptiva, física e estética do visitante.

O objectivo dos dois curadores, Sara António Matos (directora do AMJP) e Pedro Faro, foi mostrar, tornar públicas algumas das aquisições realizadas pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo AMJP. Resumindo, esse é o princípio de Flora, como também foi o da exposição Aquisições 2016-17, realizada há três anos no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional. Mostram-se, portanto, dois trabalhos: o dos artistas e das comissões designadas pelas instituições para a aquisição das obras.

Mais do que uma exposição, Flora é, com efeito, uma mostra e, nessa condição, exige ao visitante um cuidado paciente. Ao todo, estão representados mais de 40 artistas, de gerações diferentes e com preocupações, opções e sensibilidades distintas. Abunda a diversidade de linguagens, questões, conceitos e gerações, sendo que é possível imaginar pequenas constelações, ligadas por elementos comuns, ou até desenhar — recorrendo a uma sequência de nomes — uma pequena narrativa cronológica da arte portuguesa dos últimos 30 anos. Há artistas que, porventura, expõem juntos pela primeira vez e há artistas que se reencontram, ainda que involuntariamente. E, como é habitual nestas ocasiões, constroem-se afinidades possíveis e improváveis entre universos e sensibilidades.

É este panorama vivo que Flora proporciona. Contudo, esse panorama, tendo em conta as limitações da arquitectura do Atelier-Museu e os princípios determinantes da mostra, transfigura-se, amiúde, numa polifonia, por vezes, demasiado intensa. A presença de uma black box, concebida de propósito para o centro do espaço, é exemplar desse estado. No seu interior é possível contemplar o vídeo de João Onofre, Vox (2015), mas a música deste trabalho — uma composição de Norberto Lobo — invade o espaço e, se com algumas obras desperta nexos imagináveis (a título de exemplo, com os desenhos de Pedro Tropa ou de Júlio Pomar), a verdade é que se sobrepõe, qual fundo repetido, à experiência de outras. No segundo piso, numa sequência de trabalhos de André Romão, Júlio Pomar, Bruno Pacheco e João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira sucede algo semelhante, mas mediante a profusão de formas e objectos. A distracção torna-se uma experiência quase inevitável e repete-se no último terço da mostra com uma selecção sôfrega e previsível de trabalhos.

Percebe-se este efeito, dados os princípios que presidiram à mostra: dar a conhecer a diversidade e coexistência de temáticas e explorações da arte contemporânea, sensibilizar o público para a existência e a vida das colecções e, por fim, publicitar as aquisições feitas. Isto não significa que Flora se reduza a esta missão. E por duas razões. A primeira é presença luminosa dos desenhos de Júlio Pomar, a segunda são as relações que as obras vão estabelecendo entre si, nos silêncios que encenam, longe do fluxo imóvel dos trabalhos. Do artista, que está no cerne da actividade do Atelier-Museu, é possível ver desenhos de vários conjuntos ou séries: alguns retratos; desenhos de observação de tribos indígenas do Xingu, Mato Grosso, na bacia do Amazonas, realizados durante a rodagem do filme de Ruy Guerra; desenhos abstractos — uma produção com a qual o artista nunca se sentiu confortável — em que a representação da paisagem se esvai; e um desenho alusivo ao râguebi, no qual se discerne a energia do cubismo. Estes trabalhos não apenas afirmam a identidade do espaço como permitem dialogar com as outras obras, abrindo ecos e passagens. Por exemplo, com as fotografias de André Cepeda, com a pintura de DeAlmeida e Silva ou com o trabalho de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Ao mesmo tempo, colocam questões inesperadas: qual é o lugar do retrato na arte contemporânea portuguesa? A julgar pelas aquisições, será assaz tímido. De que modo podemos pensar hoje a representação mimética enquanto ligação ao mundo? Não foi Júlio Pomar um artista sensível a esta interrogação?

Outras questões e outros diálogos vão aparecendo, por vezes contra a exposição, despertados pela força solitária das obras. Embora, separadas por uma distância razoável, as esculturas de Sara Bichão e de Cecília Costa parecem querer iniciar uma conversa, a instalação de Tatiana Macedo (que mereceria outro sítio de exposição) segreda algo à fotografia de Kiluanji Kia Henda, a pintura de Marta Soares observa, com interesse, os cartazes de Carla Filipe. Colocadas no mesmo espaço, é inevitável que as obras comecem a falar umas com as outras, com as suas formas, cores e temas, a criarem reflexos, ressonâncias, ecos, rumores. Em Flora, essa é uma experiência em tensão com a necessidade de apresentar não apenas as obras adquiridas, mas, passe a redundância, o que foram os últimos três de anos aquisições da CML. Como pode o visitante resolvê-la? Porventura, não pode. Cabe-lhe, nas condições que lhe são dadas, produzir sentido, atribuir significado ao que vê e olha, ouve e escuta. Aplacar a voragem.

 

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

José Marmeleira. Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Flora: Aquisições do Núcleo de Arte Contemporânea da CML e do Atelier-Museu Júlio Pomar, vistas gerais da exposição e pormenores de alguns dos desenhos de Júlio Pomar. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia de AMJP.

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