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Luísa Cunha: Grande Prémio Fundação EDP Arte 2021

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Isabel Carlos

Luísa Cunha:

Uma Deslocação Inquieta

 

A recente atribuição do Grande Prémio Fundação EDP Arte 2021 foi a motivação para uma selecção de obras e textos que não só mostrassem aspectos menos conhecidos do percurso de Luísa Cunha mas sobretudo que fossem uma cartografia pessoal. E também potenciar o facto da Contemporânea ser uma plataforma digital que permite a inclusão de som, a matéria prima da sua obra.

Assim, da primeira performance até à mais recente obra, esta síntese elenca sem desvendar: as casas onde viveu, as pessoas determinantes, as cidades e lugares que foram marcos, as escolas onde aprendeu (Ar.Co) mas, também, nas que leccionou (Liceu Passos Manuel) ou a praia que tanto preza.

 


10 Obras, 10 Textos, uma Voz e um Canto


 

 

What’s behind that curtain?

1992

 

Performance, IFICT (Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral) situado à data no mesmo edifício da escola Ar.Co, em Lisboa.

 

“A performance iniciava-se com a artista sentada na plateia, anónima no meio do público. O cenário reduzia-se ao palco negro, sobre o qual estava colocada uma estrutura formada por dois planos rectangulares e abertos e ligados em ângulo recto, sugerindo um outro espaço, imaginário. Depois de uma espera de longos minutos, gerando um crescendo de expectativa em relação ao que se iria passar, a artista levantou-se e dirigiu-se para o espaço de transição entre o palco e a plateia. Nesse momento, começava a ouvir-se uma banda sonora hipnótica, que iria durar cerca de vinte minutos, e que consistia na repetição incessante de um pequeno excerto do tema What’s behind that curtain? de Laurie Anderson (…) Luísa Cunha começou então a desenhar a giz no chão os contornos das pernas e dos pés de alguns espectadores que estavam sentados na primeira fila. Em seguida, foi desenhando os contornos do seu próprio corpo em diferentes pontos do espaço e em diferentes posições. A performance terminou, no momento em que a banda sonora chegou ao fim, com a artista a abandonar a sala, tão silenciosa e discretamente como aparecera, ficando no espaço o desenho abstracto das marcações dos corpos, do seu em particular. A questão do corpo enquanto medida da nossa relação com o espaço e os objectos, em suma, com o mundo à nossa volta, era expressa de forma lapidar nessa performance.”

 

Miguel Wandschneider 

— excerto de O "Eu" Reflexivo: Notas Sobre o trabalho de Luísa Cunha, in Luísa Cunha, Fundação de Serralves, Porto 2007, p. 33-34.

 

 

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Ali Vai o João

1996

 

Espelho, cadeira, 4 altifalantes e voz gravada, 35’’ (LOOP)

 

 

“Resumidamente, Ali Vai o João é uma descrição fotográfica de uma sala. Um processo constituído por nomes e pela cadência com que as coisas são ditas: lenta, rápida e depois repete-se e volta tudo ao princípio (…) Uma voz que parece ser a do próprio espaço. Não se trata de nenhuma personificação literária em que subitamente as coisas começam a falar. Mas é como se o espaço pudesse ter uma voz e através dela falasse acerca de si, daquilo que tem, do que é, de como se estrutura. E voz quer aqui dizer ponto de vista. O facto de ser uma descrição não implica que o espectador esteja numa posição de passividade: ouvir as palavras e não fazer nada. Pelo contrário, trata-se de descrições que impelem os olhos a procurar, a mover-se, a descobrir. E os olhos empurram o corpo a seguir a voz, isto é, não se resiste a tentar identificar os pontos cardeais, a tornar o nosso olhar idêntico ao olhar que as palavras identificam.

(…) Os vidros de uma janela estão cobertos por espelhos e na sua frente está uma cadeira vazia: a expressão é a de uma exigência de concentração absoluta e o reforço da necessidade de permanecer no interior do local onde se está. Diminuem-se as distracções, as fugas, o olhar concentra-se e o elemento subjectivo é reduzido ao mínimo. Porque não se trata de uma duplicação ou camuflagem do espaço, nem do registo em palavras que formam imagens que resultam numa descrição. (…) a voz serve de guia, de memória de um movimento.” 

 

Nuno Crespo

— Excerto de As palavras não me chegam, in Luísa Cunha, Fundação de Serralves, Porto 2007, p.113-114.

 

 

 

 


 

Canto

1997

Gesso, dimensões variáveis

 

 

“O objecto em gesso é uma peça de canto que corresponde ao resultado de uma acção muito simples: despejar uma determinada quantidade daquele material na esquina de uma divisão. Seguidamente, deixá-lo escorrer e solidificar sem nenhuma intervenção. Tudo decorre “naturalmente”, depois de decisões apriorísticas que ligam a peça, sem dúvida, aos protocolos instrutores que definiram muita da escultura feita nas décadas de 1960 e 1970. Como resultado de uma receita, mais ou menos incontrolável depois de posta em marcha, esta peça de canto tem tanto de rigor e austeridade como de vulnerabilidade e de transitoriedade”. 

 

Ricardo Nicolau

— Directo ao Assunto: Texto e Voz, Depois da Arte Conceptual, na Obra da Luisa Cunha in Luisa Cunha, Fundação de Serralves, Porto 2007, p. 58-59.

 

 


 

Diário, pág. 0

2000

 

Instalação, 6 letreiros autocolantes em vinil azul fixados nas paredes de seis corredores na Escola Básica e Secundária (Liceu) Passos Manuel

 

 

“…a secura, a austeridade ou a precisão — enquanto componentes integrando de forma profunda os procedimentos compositivos — tornam difícil encarar a proeminência do som no trabalho de Luísa Cunha como parte de uma simples deriva interdisciplinar. Assim como Bresson podia dizer que o cinema sonoro tinha, sobretudo, inventado o silêncio, também as peças estritamente visuais de Luísa Cunha surgem como objectos contaminados a priori pelo som que não emitem. Visualidade e acústica nascem como campos gémeos, debruçados, antes de mais, sobre o fora-de-si-mesmos, o antes-de-si-mesmos ou o depois-de-si-mesmos. Daí, também, que as obras pareçam constantemente criar, envolver e depender de “personagens” que precedem qualquer registo inscrito ou formato disciplinar, cada obra não sendo mais do que a “cena” onde se vem enquadrar o jogo das suas paixões”. 

 

Manuel Castro Caldas

— A Liberdade do Sonhador no Estado de Vigília, in O Material Não Aguenta Júlio Pomar, Luísa Cunha, Atelier-Museu Júlio Pomar, Sistema Solar Crl. (Documenta), Lisboa 2019, p. 54 .

 

 

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Mirror #3

[2002-2003]

 

Video Pal, aprox. 9’45’’

 

 

“De regreso en Lisboa nos dirigimos directamente al barrio de Belém, junto al rio, donde Luisa residió tres años, entre 2001 y 2004. Aquel fue un periodo especialmente duro para ella, por motivos personales. La artista considera que fue entonces cuando se produjo el segundo gran viraje de su carrera, tras comenzar sus estudios en Ar.Co, en 1987. Aquella casa, que una amiga le alquiló, le proporcionó reposo cuando más lo necesitaba. De esa experiencia nacieron obras importantes (…) y su primer video; Mirror #3 (2002-03). Una pieza en la que filmó el exterior de la vivienda, desde todas las ventanas de la casa, incluida una claraboya y un lucernario de pavés, en cuatro momentos distintos del día. El resultado refleja las variaciones que se suceden en el entorno a lo largo de la jornada.

Esta obra representa una constante en la práctica de Luisa Cunha, que tiene que ver con su interés por identificar su cuerpo y el espacio, bien sea la arquitectura, como en este caso (…) El otro aspecto importante de Mirror #3 es que trata sobre los cambios urbanísticos y la renovación de Lisboa. Hoy en día, por ejemplo, esta obra no sería la misma que cuando fue creada porque, justo enfrente de la casa, se acaba de inaugurar la sede del MAAT.“ 

 

Pedro de Llano

2017

in Latitudes


 

Words for Gardens

2004

Som, 5’43’’ (loop), voz gravada, 2 pares de auscultadores

Colecção Fundação de Serralves

 

“It is a project for a public space, the Royal Botanic Gardens, a particularly large open area covered with grass, where a garden bench ‘calls upon’ the viewer to sit and listen to a broadcast text with the help of available headphones, allowing a moment of intimacy. (…)

Seeing and drawing occur as the expression of a similar attentive attitude towards reality which materialises in a precise object of these verbs, appearing in the text as a compliment simultaneously transformed into the subject and object of the verbal actions it gives rise to: Grass. You can draw grass. At this point, the text begins to associate its extreme syntactical simplicity with a powerful exercise in generating phrases that express the process of drawing, linking its infinite possibilities to the evidence of the textual infinity in which phrase emerges from the preceding phrase. And again and again and again. Next, there is a return to seeing. And then it is noted that drawing grows in the way that only grass can grow. Drawing becomes planting and vice-versa. (…)

So, drawing shows itself to be an exercise in communing with the world and the world becomes a construction exercise from drawing, in what might be designated a state of happiness, because of its perfect circular and infinite correspondence. When we hear this voice calling us from the headphones, we enter into a situation in which we had already found ourselves, without realising it. By its elocutionary performativeness, the text turns us into characters of ourselves and the world around us. We are summoned by the word and, through it, we reiterate our presence in the world. We abandon meaning for feeling. We enter into the drawing we hear like a sculpture that is whispered, our senses awakened by the sync asthenia of the sensations inherent in our being there at the precise moment. Grass, flowers, people, things, paths, everything that makes a garden, reveal themselves inside us, just as we will be able to reveal ourselves to whoever sees us.

These Words for Gardens show our proximity to the world. A world where things are always closer than they seem: just as we had already been warned by Cunha’s earlier film Mirror #3 (2003), in which the images of a city captured through eight windows in a house were accompanied by a voice telling us: objects in the mirror are closer than they appear, phrase taken from the rear-view mirrors of certain cars when purchased new.” 

 

João Fernandes

— Words for a Inner Garden, in On Reason and Emotion: Biennale of Sydney 2004, p. 76, Sydney, 2004

 

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Side by Side

2006-2007

C- print, 14 (10 x15 cm)

 

 

“… em Luísa Cunha as obras são espoletadas pela vivência da realidade, por imagens e aspectos presenciados pela própria no contacto com o mundo, sendo isso exemplo Side by Side (2006-2007), constituída por um conjunto de fotografias de uma bicicleta estacionada num areal. No entanto, sabemos pela artista, que foi a própria que foi mudando o seu posicionamento e enquadramento da máquina fotográfica face ao campo de visão”.

Sara Antónia Matos

— Desconstrução de Protocolos, in O Material Não Aguenta: Júlio Pomar, Luísa Cunha, Atelier-Museu Júlio Pomar, Sistema Solar Crl. (Documenta), Lisboa, p.16.

 

 

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Senhora!

2010

 

Coluna de som (14,7 x 24,3 x 13,3 cm), cobertura vermelha, voz gravada, loop

Colecção Fundação Calouste Gulbenkian | Colecção de Arte Moderna

 

A questão da perceção e da comunicação são problematizadas através do escutar, do olhar, da atenção a ações simples da vida quotidiana que resultam em mensagens aparentemente gratuitas mas que deslocam o espectador para um outro tempo e espaço e criam uma multiplicidade de interpretações e emoções, precisamente porque são expressões que operam uma espécie de tábua rasa da comunicação, como a frase da obra Senhora (2010). Repetida mais uma vez em loop, emitida por uma coluna de som forrada a tule encarnado colocada na parede à altura do ouvido, diz somente isto: "Senhora! Toda a gente sabe!".

E assim nos deixa pendurados, sem mais história mas abertos a criar na nossa imaginação todo o tipo de intrigas, boatos, suspeitas, preconceitos, juízos de valor, relações de classe e géneros que poderão estar na origem daquele remate enfático dirigido a um sujeito feminino e desta vez em português: "Toda a gente sabe."

 

Isabel Carlos

Esculturas Sonoras, in AA.VV., Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas de 1900 a 2020 / All I want – Portuguese women artists from 1900 to 2020, Fundação Calouste Gulbenkian / Direção-Geral do Património Cultural / Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2021 (no prelo).

 

 


 

1.680 metros

2020

 

Tripé com coluna de som, voz gravada reproduzindo texto em português (loop) duração 23”+ 3” de pausa

Faz escuro mas eu canto, 34 Bienal de São Paulo, Pavilhão Ciccillo Matarazzo, São Paulo.

 

 

1.680 metros (2020) foi concebido a partir das características únicas do pavilhão Ciccillo Matarazzo, desenhado por Oscar Niemeyer e sede histórica da Bienal de São Paulo. A artista nos conta primeiro sua própria altura e o tamanho do seu passo — imediatamente nos comparamos com ela, somos mais altos ou mais baixos, andamos com passos mais largos ou estreitos, ou percebemos que nunca pensamos no tamanho do nosso andar. Na frase seguinte Luísa Cunha calcula o tempo que demoraria para percorrer o pavilhão vazio — tentamos imaginá-lo — e reflete sobre a impossibilidade de definir quanto levaria visitar uma exposição no mesmo lugar. Esta exposição, uma anterior, ou outra ainda, algum dia?

 


 

Canto #2

2021

 

Coluna de som reproduzindo canto, duração: 1’19’’ (em loop)

Radio Gambozino: espaço STAND, projecto de Lea Managil, Lisboa, Março , 2021

 

Junto a um automóvel negro, uma coluna no chão emite o som estridente de um galo a cantar, ouvindo com atenção, pelo barulho de fundo de tráfico, percebemos que o animal se encontra num ambiente urbano. Insólito e desconcertante. interrogamo-nos sobre a história deste canto, que galo será este e aonde estará? Será o canto um grito dilacerante de ajuda ou a celebração de uma conquista?!

Mais perguntas do que respostas, mais imaginação e criação de mundo do que realidade palpável e certezas.

 

Isabel Carlos

Luísa Cunha, uma deslocação inquieta.

 


 

Agradecimentos:

Luísa Cunha e os autores: Miguel Wandschneider; Nuno Crespo; Ricardo Nicolau; Manuel Castro Caldas; Pedro de Llano; João Fernandes; Sara Antónia Matos.

Autoria: Isabel Carlos.


 

Legendas das imagens:

— What's behind that curtain?, 1992, performance (performer: Luisa Cunha), IFICT, Lisboa, Portugal.

— Diário, pág. 0, 2000, instalação, 6 letreiros autocolantes em vinyl transparente (15,2x89,8cm) fixados nas paredes de 6 corredores. 

— Words for gardens, 2004, (um banco de jardim, se no exterior), 2 auscultadores, leitor de CD, amplificador, voz gravada , 5’ 43’’ (loop). Obra concebida para a Bienal de Sydney 2004 (comissária: Isabel Carlos) e instalada nos Royal Botanic Gardens em Sydney. Colecção: Fundação de Serralves, Porto, Portugal. 

— Side by Side, 2006-2007. C- print, 14 (10 x15 cm)

1680 Metros, 2020, Tripé com coluna de som, exposição Faz escuro mas eu canto. 34ª Bienal de São Paulo. Foto: Giovanna Querido. Cortesia Bienal de São Paulo.

Todas as imagens: Cortesia de Luísa Cunha.

 

 

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