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Ilídio Candja Candja: Octopus e Miopia

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Cristina Sanchez-Kozyreva

 

A energia oculta

 

Peça central da exposição individual de Ilídio Candja Candja Octopus e Miopia, Meditação corporal, 2021, é um altar instalado ao fundo do espaço expositivo — no qual, além desta peça, se apresentam cerca de 20 telas coloridas de grandes dimensões. Sobre uma plataforma posicionada no chão da galeria, dispostos simetricamente como se de um arco se tratasse — ou, nas palavras do artista, com a forma de uma caravela portuguesa, aludindo àquelas que transportaram séculos de escravos africanos —, tijolos de terra, vasos de barro com água, ramos de árvore, flores e velas veiculam silenciosamente um momento de adoração ritualística. Diz-me Candja Candja que, tipicamente, há altares em qualquer domicílio africano; embora enverguem as distintas particularidades de cada casa em que se encontrem, cada tribo que os detenha ou cada clã que os construa, todos aqueles são passados de geração em geração pela sabedoria popular oral. O altar presta reverência aos antepassados e à terra, funcionando como um veículo para se procurar orientação e pedir ou dar graças. "Tudo o que fazemos está ligado à terra", diz Candja Candja, ao contrário da maior parte das tradições religiosas europeias, nas quais, em geral, aponta o artista, os devotos olham para o céu. Esta instalação no espaço não é apenas uma vigorosa evocação da tradição africana: também é um espaço concreto de reverência e paz.

Acima do altar, sobre um fundo mascarrado de terra, encontramos duas pinturas abstratas, Untitled, 2020, e Afrodeezia #1, 2016, com recurso a variadas técnicas. Na segunda, lê-se missa, que poderia referir-se ao serviço religioso; a palavra, porém, é missava, ou "terra" na língua materna do artista, o changana, ocultando-se a última sílaba, "-va", sob manchas de tinta no canto superior direito da tela. O português, língua dos colonizadores de Moçambique, é a língua administrativa oficial deste país, mas configura apenas um dos 43 idiomas falados em todo o território. As ramificações do processo de descolonização, incluindo as guerras, a pobreza e as consequentes crises migratórias que o constituíram, são ademais agravadas pela hostilidade com que os refugiados e os imigrantes se deparam ao chegar à Europa. Se, em vez de varrermos estas questões para debaixo do tapete, tivermos a capacidade de empatizar com aquelas experiências e de atentar na gestão colonial de África, não tão distante assim, que as originou, então conseguiremos perceber que existe uma injustiça histórica que, até hoje, afeta muitas pessoas que ainda trazem consigo feridas abertas. Candja Candja, na crença de que estas possam sarar, tenta encetar um conjunto de diálogos interculturais particularmente difíceis: questões relacionadas com o racismo, o passado colonial e a escravatura. Infelizmente, lamenta, estes são diálogos para os quais há quem ainda não esteja preparado.

Candja Candja mudou-se para Portugal em 2006, altura em que o seu país não lhe oferecia quaisquer perspetivas de futuro. O artista nascera em Moçambique em 1976, um ano após o término do conflito pela independência do país, e apenas um ano antes da eclosão de uma devastadora guerra civil que trouxe ainda maior pobreza ao território e que só cessaria em 1992. Não obstante o subsequente crescimento económico e a estabilidade entretanto alcançada, metade da população vive atualmente abaixo da linha de pobreza, e a descoberta recente de gigantescas jazidas de gás natural no nordeste do país suscitou a insurgência de forças armadas apoiadas pelo Estado Islâmico, o que, por sua vez, desde março deste ano, tem avolumado uma das crises humanitárias de crescimento mais acentuado a nível mundial. Trata-se por certo de uma infindável história de luta. Aqui, no âmago do trabalho de Candja Candja, encontra-se uma flutuabilidade que recorre a um amplo reservatório emocional de esperança, frustração, empatia, instinto de sobrevivência, incompreensão, desejo e amor. Grande parte destes sentimentos são expressos através de um choque entre cores primárias e fluorescentes e diferentes tonalidades de preto, que constituem as diferentes técnicas de que faz uso: acrílico, marcadores permanentes, spray, colagem e, por vezes, óleo.

"Eu venho do espaço tropical, as cores representam o presente, o movimento de todas as coisas", é o que me diz quando o meu arrebatamento visual se lhe torna aparente.

Em África, porém, explica ele, as pessoas usam as cores perante a adversidade como se de armas se tratassem. Num funeral, por exemplo, um fato preto pode ser contrabalançado com pigmentos vibrantes, e a tristeza com a dança e bebida.

Em Caminho de volta para casa, yes we can #2, 2016, alguma da simbologia — em parte pessoal, em parte inspirada na tradição — de que o artista faz uso provê a desoladora temática que é a migração. Se a deslocação para novos territórios era característica de uma vida nómada tribal pré-colonial, espoletada por exemplo por uma seca, o entendimento contemporâneo das populações deslocadas é pesarosamente mais trágico. Porém, tal como no passado, as comunidades recorrem aos seus antepassados, estejam estes mortos (o altar) ou vivos (o líder espiritual da comunidade), para enfrentar as adversidades da vida. Nas composições de Candja Candja, surge recorrentemente uma figura de quatro pernas que representa o arquétipo do líder espiritual, aquele cujo conselho tutela a forma de vida da comunidade, sobejando também figuras geométricas, como o triângulo. Através destes elementos, o artista faz alusão à ligação — entre uns e outros e entre o passado e o presente. Depois, também temos as pegadas sobre as telas, que ou fazem parte do processo de pintura no chão ou ecoam aquelas dos que seguiram viagem.

Em Untitled, 2020, uma pintura de tonalidade sobretudo verde, à parte uma erupção de malvas, azuis, cor-de-rosa e vermelhos ao centro, bem como um conjunto de materiais colados, Candja Candja faz alusão visual ao legado e à história da arte africana. A observação que avança é a de que, fora uns poucos estudos antropológicos, não há muita informação sobre o assunto. "Não temos registos. É tudo transmitido pela tradição oral, e quando as pessoas morrem perdemos essa informação", diz o artista. Por outro lado, aquilo que persiste em documentos impressos trata-se de uma orquestração ornamental que é em si mesma incompleta. No canto superior esquerdo, encontra-se uma página colada sobre a tela com uma serigrafia de uma águia de duas cabeças— frequentemente associada à ideia de império —, representando a velha e piramidal estrutura de poder europeia; no lado direito, em baixo, vemos o efeito do apagamento de uma fotografia, também colada, que mostra uma estatueta africana, sugerindo a perda de informação relativa à sua proveniência.

De carácter mais pessoal será Memórias e fantasias #4, 2017, uma pintura de uma tonalidade geral azul-clara na qual as manchas abstratas de Candja Candja constituem focos de expressão emocional de memórias pessoais: um livro ou um filme que o comoveu, oriundos da Europa ou de África. Na sua superfície, talvez os números e palavras riscados e agitados insinuem as memórias de acontecimentos factuais. Dominante na composição, também uma janela alberga os contornos daquilo que parece um busto esculpido, que tudo supervisiona. À semelhança do processo criativo de muitos outros pintores, Candja Candja começa por consumir uma grande quantidade de recursos visuais e imagens. O artista gosta de mergulhar naquilo a que chama a sua bíblia, um panorama visual de arte tribal e ancestral: o livro African Art, de Franziska Bolz. Candja Candja revisita objetos e máscaras tribais a fim de lançar pontes entre as histórias do passado e o presente — tudo isto através da sua própria perspetiva. "Não quero copiar", diz, "quero sentir a energia." Acho interessante que ele refira a energia por detrás das coisas — e das pinturas —, uma vez que, em última instância, foi isso que me cativou no seu trabalho. As suas composições abstratas, polvilhadas com elementos figurativos, geram um ritmo que, vindo de uma obra de arte, não posso deixar de apreciar, não obstante a técnica berrante. A energia que lhes subjaz tem uma organização particular; de outra forma, não nos pareceria tão intensa assim. As pinturas também parecem sossegar quando interagem com o repositório que o altar constitui. Em última instância, precisamos de confiar nas pinceladas de Candja Candja e em todo o movimento gerado para, no fim, nos conseguirmos envolver num espírito original.

 

Folha de Sala

Galerias Municipais

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribui, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Traduzido do inglês por Diogo Montenegro.

 

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Ilídio Candja Candja: Octopus e Miopia. Vistas gerais da exposição na Galeria Quadrum, 2021. Fotos: © Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galerias Municipais/Egeac.

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