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Cut Down The Middle

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Cristina Sanchez-Kozyreva

 

Encontrar consolo em espaços apertados

 

Cut Down The Middle reúne mais de 20 obras que exploram, de forma subtil, a monotonia do tecido urbano e trazem à luz gestos, emoções e pensamentos de uma infimidade apenas aparente através de uma variedade de media, incluindo vídeo, instalação, gravura, escultura, aguarela, som, performance e tinta sobre madeira. Partindo de um conjunto recente de trabalhos realizados por João Vasco Paiva, a exposição dá corpo a uma série de diálogos entre aquelas obras e as de diferentes artistas com quem Vasco Paiva tem vindo a colaborar ao longo dos últimos dez anos, tais como Heman Chong, Ramiro Guerreiro, Ko Sin Tung e Magdalen Wong. Estas práticas cruzam várias geografias (sobretudo Portugal e Hong Kong) sem, no entanto, as documentarem: pelo contrário, promovem a preservação de determinados elementos das suas essências urbanas, revelando as qualidades discretas mas permanentes dos domicílios físicos e conceptuais e jogando com perceções coletivas e individuais.

Servindo de ponto de partida para a elaboração da exposição, Emergency Crash Gate, Typical Details of Concrete Profile Barrier to Accommodate Column of Light Pole e Concrete Profile Barrier - Terminal Section, Elevation + Plan (ambas de 2021) são aguarelas estilizadas de grandes dimensões que tratam a questão das barreiras urbanas. Retiradas do seu contexto e sujeitas a uma reconfiguração geométrica e colorida, os desenhos tornam-se símbolos, uma espécie de hieróglifos provenientes de um código de trânsito peculiar. Ao lado, pendurada na parede, encontra-se Untitled_ Sunday IV (2017), uma representação de um caixote de cartão achatado em stone resin. O cartão é um material predominante em qualquer cidade. Em Hong Kong, especificamente, as empregadas domésticas internas (sobretudo filipinas e indonésias) usam-no nas suas folgas para se sentarem e conviverem nos espaços públicos. Qualquer um que se passeie por Hong Kong ao domingo ficará perplexo e fascinado perante a paisagem de milhares de mulheres alegres que invadem escadarias, pontes pedonais e tantos outros cantos da cidade para jogar às cartas, ouvir música, dançar com as amigas, as primas e as irmãs, num mar de caixas de cartão tornadas salas de estar virtuais, todas ao lado umas das outras, cobrindo o rigor do tecido cimentado da cidade.

Este prolongamento entre a fluidez e a rigidez da arquitetura urbana tem eco na obra de Ramiro Guerreiro — Grelhagem sobre abertura pré-existente II (2021), uma dupla cortina de grandes dimensões em lona que parece uma parede, com tijolos estampados, que temos de empurrar para entrar na exposição. Ao lado, numa prateleira, uma seleção de postais que retratam fachadas de aspeto semelhante, fotografadas em Lisboa (os nomes das ruas estão indicados nos versos dos postais), são disponibilizados precisamente para que os visitantes os levem enquanto lembrança da exposição. Seguem-se outros souvenirs em forma de cartazes, disponíveis gratuitamente em versão virtual no site da exposição, tal como conceptualizados pelo artista Heman Chong, de Singapura, em MAKE YOUR OWN PUBLIC LIBRARY! (2020) — constituindo também o papel de parede destes múltiplos, que ocupa uma das paredes da galeria. Estes cartazes fazem lembrar outros que publicitam espetáculos musicais, tipicamente aplicados nas ruas da cidade (menos em Singapura do que em Lisboa), em candeeiros de iluminação, tapumes e outros géneros de paredes temporárias. A injunção que o artista leva a cabo é algo que ele próprio pratica, tendo reunido numa biblioteca itinerante uma série de livros que os doadores nunca haviam lido (intitulada The Library of Unread Books, iniciado em 2016, não figurando nesta exposição).

Cut Down The Middle faz alusão não aos humanos que são donos da cidade mas àqueles que nela existem, frequentemente para trabalhar, e que se adaptam, informes como a água, aos seus ângulos e fissuras: a classe média-baixa, os trabalhadores, a juventude. Dando testemunho do envolvimento corporal possível com a mobília e a arquitetura urbana, pessoa-pano-do-pó, av. Marconi (2009), de Guerreiro, é um vídeo em loop no qual o artista, envergando um fato-macaco cor de laranja vivo, em cima de uma estrutura de andaimes, limpa com o seu próprio corpo uma escultura em relevo sobre a porta de entrada de um edifício. De forma idêntica, a série Paisagem/Objeto LB/MRC, ICL, IR e TM (todos de 2016), de Vasco Paiva, é parte integrante de um parque de skate modular coberto por imagens de satélite de lugares que o artista visitou e que, consequentemente, convidou vários skaters a usar, conservando diversas marcas da passagem destes enquanto registo.

 

 

Como que pinceladas sobre uma tela tridimensional conceptual, a multiplicação de obras na exposição aproxima-se da circulação e interação dos humanos no ambiente edificado em que existem, da forma como se ajustam àquilo que é tipicamente designado como selva urbana — e às forças praticamente invisíveis sob as quais vivem. Restam apenas gestos e arranhões, uma variabilidade de pensamentos com vista a encontrar algum género de liberdade em espaços inesperados, e uma construção de geringonças que não fazem parte oficial do planeamento urbano mas que, ainda assim, crescem como ervas daninhas. Sunflower and safety helmet (2017), de Ko Sin Tung, capta a ampliação de um pormenor fotográfico de um anúncio publicitário encontrado junto a um local de construção em Hong Kong. Ao centrar os amarelos de dois girassóis e a parte lateral de um capacete, parece veicular a resistência que responde aos grotescos e manipulativos esforços promocionais que nos vendem a ideia de que as urbanizações são unas com a natureza. Recorrendo igualmente a grandes planos centrados no banal, a artista assinou um encantador vídeo em dois canais, The world of yesterday (2017), que, à semelhança de um puzzle visual, foca e desfoca recortes de imagens da cidade — as vistas obstruídas da janela da artista, o seu gato, etc. —, em azuis ou vermelhos emocionais, ou escurecidos, acompanhados do comentário legendado de uma voz interna meditabunda.

A água e o cimento — dois materiais tão fundamentais como vulgares em povoações humanas — estão representados em conjunto em Untitled (Containers)_barricade remake I e II (2021), composto por duas pilhas de moldes em cimento de recipientes de água no chão da galeria. A presença destes moldes documenta a ubiquidade manufaturada dos objetos originais em áreas de alta densidade populacional, onde o consumo de água engarrafada é especialmente alto (para não referir que — com motivo para preocupação — Hong Kong apresenta um dos maiores consumos a nível mundial de água da torneira e de águas residuais), bem como a versatilidade manufaturada do cimento enquanto material usado em grande parte para erigir centros urbanos em qualquer dado lugar.

É fácil não se dar pelas várias peças — parece ser essa a ideia, no entanto — de Untitled water (2020), da artista de Hong Kong, Magdalen Wong, que se aparentam a poças de água. Feitas de resina, jazem em diferentes pontos do chão da galeria, jogando com o nosso entendimento cognitivo daquilo que é intencionalmente encenado e daquilo que é uma ocorrência acidental. Assim que o visitante as descobre, estes salpicos realistas revelam-se um desafio ao caminhar — e se forem escorregadios? Ou, no contexto codificado de uma exposição, e se os danificarmos? Como que pequenas pedras nos nossos sapatos, as armadilhas discretas de Wong estorvam o nosso caminhar de uma forma subtil mas persistente. Também da autoria de Wong, Dying robots’ last words (iniciada em 2017) é uma peça de som que, esporadicamente, pelas vozes de diferentes pessoas, transmite as últimas palavras de robôs de filmes famosos. Irregular, por vezes inaudível e fantasmagórica, esta obra habita a exposição na sua presença em parte maquinal e em parte humana.

Em última instância, Cut Down The Middle é uma exposição cheia mas sossegada que solicita um olhar para o nosso interior, não tanto num sentido espiritual mas a fim de alcançar mais alguma independência individual, por forma a encontrar espaço num ambiente fabricado e mecanizado. Os cenários urbanos podem ser quase sufocantes, ou assoberbantes, e conseguem conduzir os nossos pensamentos numa direção que não a que pretendemos; estes artistas, contudo, embora de forma tímida, por via de ações ínfimas, abrem pequenas brechas naquilo que poderia contribuir não só para uma maior autonomia pessoal mas também, por via de empatia, para reforçar os laços sociais.

 

João Vasco Paiva

Galeria Avenida da Índia

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribui, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Traduzido do inglês por Diogo Montenegro.

 

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Cut Down The Middle. Vistas da exposição. Galeria Avenida da Índia. Fotos: Joana Hintze. Cortesia de Galerias Municipais/Egeac. 

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