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Laure Prouvost: Melting into one another ho hot chaud it heating dip

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Sofia Nunes

No outro dia, enquanto desinfetava os meus ténis, depois de vir da rua, reparei que o perfil da sola estava cheio de salpicos de tinta preta. Não me lembrava de ter passado por nenhuma zona de obras, nem de ter pisado nenhum pavimento sujo ou molhado. Aliás, os salpicos até já estavam secos e bem impregnados na borracha, mas continuavam a exalar um cheiro ligeiramente enjoativo, denso e fechado, embora familiar. Foi então que voltei a entrar, agora de memória, na exposição concebida por Laure Prouvost para a Kunsthalle Lissabon, a convite dos curadores João Mourão e Luís Silva.

É a primeira vez que Prouvost expõe em Portugal (finalmente!) e não tenho dúvidas de que esta é uma das melhores exposições a que pudemos assistir nos últimos tempos em Lisboa. É contida no número de peças (uma instalação principal que dá nome à mostra, acrescida de uma segunda peça mais pequena), mas suficientemente inventiva para nos envolver numa complexa rede de materialidades, onde o mundo é já sempre outro e onde o que sentimos e pensamos se negoceia no minuto seguinte com novas sensações, sentimentos, incertezas e ideias. Tudo se experimenta sob fluxos. É como se o nosso aparelho sensorial inteiro e o conhecimento das coisas se alterassem à velocidade da circulação de objetos, informação e imagens e como se os dados da realidade se modificassem ao ritmo das sinapses, do sonho, do desejo e da contaminação entre cheiros, texturas, estados líquidos e sólidos ou entre elementos físicos e imateriais. Um processo de associação livre que, nos termos de Prouvost, se alia a técnicas de escavação e à criação de zonas subterrâneas.

“Keep digging, keep digging deeper and deeper...” diz o poema que acompanha a folha de sala. E entramos.

O espaço expositivo da Kunsthalle, que por sinal é uma cave, foi totalmente transformado num ambiente escuro, húmido e de odor nauseante. O piso está coberto por uma substância líquida preta e fede a tinta de moluscos. A visibilidade é escassa. Caminhamos mais com o tato do que com a visão que se vai habituando, com dificuldade, à ausência de luz. O trajeto faz-se por entre cortinas que pendem do teto, lado a lado, formando corredores estreitos. É impossível não tocá-las com o corpo. São finas e estão molhadas por escorrências de água, como guelras de um animal aquático. Algumas bloqueiam a passagem por terem a si agarradas umas esculturas que o toque reconhece serem tentáculos. Outras deixam-nos passar até chegarmos a uma área mais ampla e iluminada pela luz brilhante das várias imagens-vídeo digitais avulsas que são projetadas sobre o piso ensopado.

Agora que visionamos filmagens de um polvo enfeitado de frutas a arrastar até si as imagens que se vão acumulando no chão e que descobrimos à nossa volta uma série de objetos e detritos do quotidiano, perguntamo-nos se não estaremos afinal dentro da cabeça de um espécimen de polvo a testemunhar as suas memórias e sonhos, apetites e inteligência. Não fosse a cabeça deste animal o repositório do seu cérebro, estômago ou brânquias.

 

Porém, nos espaços interiores escavados por Prouvost não há binarismos que resistam. Para além do polvo aparecer representado no vídeo com braços de mulher e de escutarmos ao fundo uns gemidos pré-verbais, meio-humanos meio-animais, percebemos que o chão está também povoado por uma série de tentáculos moldados a vidro e agarrados a mamas e pernas femininas passadas a argila. Múltiplas ressonâncias passam então a ligar os dois mundos, pelo que no desejo, corpo húmido e voracidade do animal é também a libido e o subconsciente humanos que se reveem, assim como a cultura digital que tudo aglutina e absorve. É neste instante que o cheiro intenso a tinta de moluscos volta a interrogar-nos. Sabemos que este líquido orgânico preto, viscoso e brilhante é expelido quando os polvos, à semelhança de outros moluscos cefalópodes, se protegem contra uma ameaça, mas a linguagem surrealizante de Prouvost recusa naturalismos. A questão persiste como latência, sem forma concreta, ainda que a ação das políticas extrativistas sobre o ecossistema não demore a surgir-nos, especialmente quando pensamos na captura económica e industrial da vida oceânica e reparamos que, entre as imagens projetadas absorvidas pelo polvo, se destacam notícias televisivas de cheias e incêndios descontrolados. 

Já de saída, somos atraídos por uma outra peça, intitulada The smoking mother is hot, 2023 que tende a funcionar como linha de fuga, introduzindo na exposição um contraponto. Trata-se de um telemóvel caído no chão com um vídeo a passar, cuja datação nos situa ficcionalmente três anos à frente. Baixamo-nos para ver melhor. Uma filmagem em close up mostra-nos uma mão a apontar para um solo de terra com alguma vegetação, enquanto uma voz off feminina sussurra. Pede para nos aproximarmos, ao mesmo tempo que nos seduz com humor e tenta oferecer algo. Será uma saída para a vida, para as suas possibilidades germinais? Enquanto olhamos para a terra através do ecrã e o desejo de escavá-la aumenta é também uma ideia de mundo que emerge e se alastra à exposição. Um mundo onde cada elemento material —animal, vegetal, mineral, digital, objetual, humano — intervém, se contagia e confronta para se re-singularizar. Pousados ao lado do telemóvel estão uma clementina e uns ramos de uma árvore. Um cheiro cítrico envolve-nos agora numa atmosfera fresca e não resistimos a tocar no fruto, sem imaginarmos que dali a escassos dias toda a experiência tátil mudaria e que a estratégia multissensorial e ecológica dos corpos explorada pela artista se tornaria talvez ainda mais preciosa.

Laure Prouvost   

Kunsthalle Lissabon

Vimeo

Sofia Nunes. Crítica de arte e doutoranda em História da Arte/Teoria da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL e na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Exerceu assistência de curadoria e produção de exposições no Museu do Chiado – MNAC, Ellipse Foundation e Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (2000 a 2007). Foi professora convidada no Mestrado de Arte Contemporânea da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2009 a 2011). Escreve com regularidade para publicações de arte contemporânea e académicas.

 

Translation PT-EN: Diogo Montenegro

  

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Laure Prouvost: Melting into one another ho hot chaud it heating dip. Vistas gerais da exposição. Kunsthalle Lissabon. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Kunsthalle Lissabon.  

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