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It's a date: Henrike Naumann

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Alberta Romano

 

It’s a date é uma rubrica da Contemporânea da autoria de Alberta Romano, dedicada a visitas a ateliês de artistas de Lisboa e de todo o mundo, tanto físicas como online.

 

Episódio n.º 7:

Henrike Naumann

 

Lisboa > Berlim, novembro de 2021

 

Quando a prática da artista com quem conversas é profusa em camadas e ramificações e nela revês a tua própria sensibilidade, pensar numa introdução que esteja à altura da sua obra torna-se uma tarefa particularmente difícil.

Foi o caso da Henrike Naumann, com quem tive o prazer de conversar, pela primeira vez via Skype, há uns poucos dias. Parte do prazer que esta chamada me deu teve que ver com a autenticidade da conversa. A Henrike quis falar-me do seu mundo, da sua pesquisa, da sua infância, sem que nada parecesse forçado, como se já nos conhecêssemos há algum tempo; trocámos ideias, memórias e alguns conselhos. Ainda assim, aquilo que me deu maior satisfação (uma satisfação porventura egotista) foi poder dizer: "Eu sabia que ela é um ser humano fantástico. Soube-o assim que vi uma peça dela pela primeira vez."

Mas comecemos pelo início.

Henrike Naumann nasceu em 1984 em Zwickau (na antiga República Democrática Alemã), uma cidade que era o baluarte da Clandestinidade Nacional-Socialista, num país que praticamente já não existe. Além disso, Zwickau também albergava a sede da Trabant, fabricante automóvel que produziu entre 1957 e 1991 aquele que foi considerado o carro da Alemanha Oriental — a empresa não duraria mais de um ano após a reunificação da Alemanha.

Isto para dizer que a cultura que terá cercado a Henrike enquanto crescia não só sofria a influência de uma fortíssima ideologia de direita como também padecia de um acentuado fechamento ideológico que, hoje, a obra da artista tenta desdobrar, questionando todo e qualquer elemento que tenha enraizado aquele fechamento de forma tão profunda naquela sociedade.

Na sua obra, Henrike conjuga vídeo e som com instalações imersivas compostas sobretudo por mobília e objetos decorativos. Todas as peças que integram as suas enormes instalações resultam de uma cuidadosa pesquisa realizada in loco, o que lhe permite saber mais sobre a história de determinado sítio enquanto navega pelas estéticas predominantes de cada período.

 

Henrike: "Venho de um contexto de formação centrado na cenografia; quando comecei a fazer instalações no campo da arte, trazia comigo o fascínio pela mobília e pelos objetos. Provavelmente porque gosto de falar sobre as pessoas, embora não me interesse tanto mostrá-las, acabo por preferir mostrar os espaços em que elas existem e que dão forma às suas realidades.

Mas outra das coisas que trouxe da minha formação cenográfica foi a relação entre o documentário e a ficção. Fascina-me a forma como a história se pode configurar em virtude daquilo que nela queremos ver ou daquilo que deixamos os outros ver."

 

Entretanto, Henrike fala-me da sua obra DIE MONOTONIE DES YEAH, YEAH, YEAH (2020), em cujo vídeo se combinam excertos de materiais pedagógicos da RDA com sequências provenientes da série de desenhos animados The Flintstones. Ali, é difícil situar a fronteira entre a realidade e a sua idealização; as duas dimensões fundem-se; e assim se sublinham todas as mentiras de uma e todas as simplificações da outra.

 

Alberta: "Quando é que te começaste a interessar por este género de análise histórica? Mas, sobretudo, em que medida é que a nostalgia influencia a tua pesquisa (se é que influencia, claro)?"

Henrike: "Voltar a um tempo passado não é apenas uma questão de nostalgia; também é uma forma de revisitar alguma coisa que conhecias mas à qual nunca prestaste atenção porque, na altura, era só «normal» para ti. No início da minha adolescência, por exemplo, lembro-me de já ter um certo fascínio pelo «passado». Andava a pesquisar sobre os anos '70 e '80, e de repente percebi que, algum dia mais tarde, as pessoas haveriam de falar dos «anos '90», e perguntei-me: «O que é que isso sequer vai querer dizer? Tudo parece tão normal agora.» Portanto, foi nessa altura que comecei a olhar de forma diferente para aquilo que me precedia. Claro, é difícil falar do presente, mas podemos começar por olhar um bocadinho mais para trás, 10 anos por exemplo, e isso já nos dá a possibilidade de descobrir alguma coisa em que ainda não tínhamos reparado."

Alberta: "Exato, e, se fizeres isso, decerto conseguirás obter as ferramentas para ler o teu presente, como a tua mobília da IKEA, por exemplo."

Henrike: "Tal e qual!"

Alberta: "Já agora, já me disseste quando aconteceu, mas fico curiosa de saber o que é que te fez sentir esta necessidade de interpretar a realidade à tua volta."

Henrike: "Durante a minha infância, perguntas como «Como é que explico a forma como vejo o mundo a alguém que o vê de forma muito diferente?» ou «O que é que me faz ser tão convicta das coisas em que acredito?» eram muito presentes, uma vez que eu vinha da Alemanha Oriental, onde tudo era tão diferente da Ocidental. Foi aí que percebi quão imersa eu estava em certas convicções e de que forma estas podem mudar as nossas vidas por inteiro. O nazismo, por exemplo: todas as pessoas que conheço na Alemanha têm ou tiveram um avô que esteve envolvido com o nazismo de alguma forma. Sempre esteve tão próximo de nós, que cresceu por dentro das nossas famílias e da nossa sociedade, e acabou inevitavelmente por influenciá-las. E é assim em todo o lado; ninguém cresce num meio neutro."

Alberta: "Oh, a quem o dizes. Enquanto italiana, acho que percebo perfeitamente o que dizes. E corrige-me se estiver errada, mas imagino quão difícil pode ser analisar o passado quando este se esconde sob um véu de hipocrisia…"

Henrike: "Sim, sem dúvida alguma. De facto, quando estive em Roma, fiquei estupefacta com a quantidade de gadgets com a cara do Mussolini. Cheguei até a encontrar um livro intitulado Coma com o Duce, ou qualquer coisa assim. Foi inacreditável. Não estava à espera de ainda encontrar tantas coisas sobre ele!"

Alberta: "Sim, bem sei. Temos carradas deles, especialmente em feiras! Mas isto é totalmente normal: para dar um exemplo, em Predappio, a cidade em que Mussolini nasceu, há montes de lojas de souvenirs dedicadas à figura, e claro que todos os anos produzem mais e mais quinquilharia — calendários e afins. A minha avó tinha alguns; ela era uma grande fã dos «velhos tempos». E isso acontece porque o povo italiano nunca repudiou efetivamente o fascismo. No rescaldo da Guerra, preferiu-se lavar as consciências com o mito da resistência, e de repente tornaram-se todos partigiani, ou pelo menos filhos de partigiani. Nunca houve um repúdio aberto do fascismo; só o puseram em mute, e assim está há uns tempos, como vemos hoje."

Henrike: "Na Alemanha, o nazismo é tabu. Edifícios, monumentos, esculturas — praticamente tudo o que tivesse que ver com esse período foi destruído."

Alberta: "Em Itália, não. O meu liceu, em Pescara, está construído em M; tiraram os símbolos, mas deixaram tudo o resto. O que acho incrível, atenção. Acho que a estratificação é a solução — não a será nem a destruição nem o silêncio. Olha para a modificação do baixo-relevo gigantesco do Mussolini em Bolzano, por exemplo; até se falou disso no Guardian.

Henrike: "Claro, e isso acontece porque a realidade é complexa. Cada vez mais chego à conclusão de que não tenho interesse algum em traçar uma linha no chão e dizer «isto é mau» e «isto é bom», comigo na minha condição de artista num lado «crítico-bom». Grande parte das vezes, as exposições que abordam os assuntos sobre os quais trabalho são feitas desta forma, e não acho que isso seja interessante. Seria melhor mostrar a complexidade da realidade. Em vez de mostrar quão mau o fascismo é, acho que seria melhor questionar o fascista que existe dentro de cada um de nós."

 

Podíamos ter continuado a falar sobre isto durante horas, mas, no entretanto, a Henrike acaba a prometer-me que vai contactar-me quando fizer uma peça que, de alguma forma, tenha que ver com Itália.

 

Alberta: "Tenho uma última questão para ti. Invariavelmente, pões pelo menos um televisor nas tuas instalações. É só uma forma de mostrares os teus trabalhos em vídeo, ou é porque não consegues imaginar um espaço «doméstico» em que não haja um televisor?"

Henrike: "Ahahahah! Na verdade, sempre fui obcecada com a televisão, devo dizer. Quando era miúda, vivia no campo, com muita natureza à minha volta, mas sempre preferi ficar a ver televisão a ir brincar para o bosque. Quando não me deixavam ver televisão, punha-me a construir o meu próprio televisor, com tábuas de madeira, e a criar revistas de televisão sobre os programas que eu inventava. Lembro-me de uma vez, na escola básica, que tivemos de desenhar a nossa profissão favorita (é possível que na altura já tivesse algum sentido de humor), e o que aconteceu foi que desenhei uma pessoa sentada à frente de uma correia transportadora sobre a qual passavam televisores, e o trabalho da pessoa era pôr antenas em cada televisor."

 

E partimo-nos a rir.

 

Muito poucas palavras conseguem entrar no meu coração como uma bala, e uma delas é "televisão". Falo com a Henrike sobre Blob, o programa italiano para o qual desde sempre quis trabalhar, e que de alguma forma tem que ver com este misto de realidade e ficção de que falávamos havia uns minutos.

Depois a conversa continua, e falamos sobre novos projetos no horizonte, e trocamos anedotas e memes, mas a nossa chamada (provavelmente uma das mais longas que já fiz para a Contemporânea, e certamente a mais densa) vai chegando ao fim, e temos de nos despedir — não sem antes combinarmos um aperitivo em Veneza.

Mais uma vez, quando conheces uma pessoa bonita e uma artista com estrutura, por um lado ficas com a sensação de que já devias tê-la conhecido há mais tempo — mas, por outro, também te resta a certeza de que vão encontrar-se de novo em breve.

 

Tradução do EN: DIogo Montenegro.

 


 

Henrike Naumann nasceu em 1984 em Zwickau (RDA). Tendo crescido na Alemanha Oriental, a ideologia da cultura juvenil que Naumann experienciou durante a década de 90 era predominantemente de extrema-direita. A sua obra aborda a história do terrorismo de direita na Alemanha, bem como o acolhimento generalizado de ideias racistas nos dias de hoje. A artista atenta não apenas nos mecanismos de radicalização mas também na forma como estes se relacionam tanto com a experiência pessoal de cada um como com a cultura juvenil. Naumann explora a fricção existente entre opiniões políticas opostas através da ambivalência do gosto estético. Nas suas instalações imersivas, a artista conjuga vídeo e som com espaços cenográficos. Nos últimos anos, alargou o objeto da sua prática para a conectividade global das culturas juvenis e para a inversão da alterização cultural. De destaque, realizou exposições individuais na Belvedere 21, em Viena, na Kunsthaus Dahlem, em Berlim, no Museum Abteiberg, em Mönchengladbach, e na Galerie Wedding, em Berlim. Também participou nas Bienais de Busan (2018) e Riga (2018), na Steirischer Herbst, em Graz (2018), na 4.ª Ghetto Biennale, em Port-Au-Prince (2015), e no 3.º Herbstsalon, no Maxim Gorki Theatre Berlin (2017).

 

Alberta Romano é historiadora de arte e curadora de arte contemporânea. Nasceu em 1991 em Pescara. Atualmente é curadora da Kunsthalle Lissabon. Desde 2017, tem trabalhado com a Fundação CRC em Cuneo, coordenando as aquisições para a coleção de arte contemporânea desta instituição. Depois de se formar em História de Arte na La Sapienza em Roma e terminar o Mestrado em Culturas Visuais e Práticas Curatoriais da Academia de Belas Artes de Brera, em Milão, frequentou o programa curatorial CAMPO16 na Fundação Sandretto Re Rebaudengo, em Turim. Escreveu para publicações como Artforum, Flash Art, Contemporânea, Kabul Magazine e outras revistas.

 


 

Henrike Naumann. 14 Words, 2018, vista da instalação no MMK Frankfurt, foto: Axel Schneider. 2000 2018, vista da instalação no Museum Abteiberg, foto: Achim Kukulies. DDR Noir, 2018, vista da instalação na Galerie im Turm, foto: Eric Tschernow. Anschluss 90, 2018, vista da instalação no Steirischerherbst, foto: Clara Wildberger. Das Reich, 2017, vista da instalação no Herbstsalon, foto: Ladislav Zajac. Ruinenwert, 2019, vista da instalação na Haus der Kunst, foto: Ulrich Gebert. Todas as imagens, cortesia da artista.


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