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Giulio Scalisi: A house for a gentleman 

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José Marmeleira

 

 

Na Kunsthalle Lissabon, A house for a gentleman do artista italiano Giulio Scalisi (Salemi, 1992) reafirma uma abordagem que tem caracterizado, em especial nos últimos dois anos, o projecto dirigido por Luís Silva (actualmente com curadoria de Alberta Romano). Ao recriar as condições arquitectónicas do espaço, a KL é um lugar que excede o significado mais tradicional (moderno) do que é, ou deve ser, um espaço expositivo e uma exposição. Esta, na sua acepção comum e alicerçada em protocolos reconhecíveis, passa a ser concebida enquanto experiência que se dá fora da realidade quotidiana. Dir-se-á que é o que fazem todas as exposições. Ora, por meio da ficção, da encenação, do artifício, a KL permite que entremos noutro lugar, não isolado do mundo, mas física e visualmente separado da realidade mais mundana. Nesse lugar, o espectador vê e pensa, e, por vezes, diverte-se, espanta-se, irrita-se, impacienta-se.

Foi assim, por exemplo, nas exposições de Laure Prouvost, Ad Minoliti, Alice dos Reis, Mariana Caló & Francisco Queimadela ou Katja Novitskova. E volta a ser na exposição de Giulio Scalisi, artista para quem a arte permanece defronte do real não para o ilustrar, mas para o provocar. O real, neste caso, é aquele que reconhecemos e que, ao mesmo tempo, percepcionamos na sua estranheza: a do transe triste que as redes sociais despertam, a do medo (não dito), das alterações climáticas, a do isolamento que as tecnologias digitais de comunicação, ao contrário do que se profetizava, vieram exacerbar.

Como outros artistas contemporâneos, Scalisi recorre ao potencial especulativo da ficção científica a fim de explorar a relação ambígua do género com as ideias de utopia e distopia. Poder-se-ia acrescentar que conhece os recursos narrativos e visuais do género e é sensível aos dilemas que hoje se nos colocam, mas no lugar de um programa pedagógico propõe-nos a experiência de um ambiente em que o fascínio e a ansiedade se sobrepõem. No texto da exposição, escreve-se que os seus trabalhos são frequentemente imaginados como hipérboles, isto é, representações exageradas, quase naïves, de estados, cenários ou realidades. Quem entrar no piso inferior da KL, tenderá a subscrever esta asserção, mas com um sorriso que nada tem de condescendente.

Há uma ironia silenciosa, desprendida nas formas e nas imagens que compõem o que parece ser uma loja onde se publicitam e vendem produtos sofisticados. Desde logo, vale a pena mencionar o modo como o artista se apropria de outros elementos que não apenas os do imaginário da ficção científica. O design da comunicação e a cultura comercial, em sentido lado, são domínios claramente citados. Sobre um plinto branco, encontramos a miniatura de um obelisco liso e polido, na parede, um cartaz que anuncia o mesmo obelisco e finalmente, noutra parede, um cartaz que avisa para o perigo mortal da falta de oxigênio. O que será o obelisco? Tem a forma de um pénis, mas também podia ser a de um dildo ou a de um foguetão. A sua inusitada presença, reflectida nas imagens e nos objectos, faz sorrir, senão rir. E é ela que nos revela a ficção: a miniatura é, afinal, um modelo de habitação criada pela empresa Babel para um mundo hostil à vida humana. No exterior, fica-se a saber, já não é possível viver sem fatos especiais e capacetes apropriados devido à ausência de oxigénio. Concluindo: a vida a existir terá que ser técnica, totalmente artificial. Será aquela paisagem, que vemos em volta do edifício, a da Terra, entretanto transformada, ou a de outro planeta? O artista não nos esclarece, mas o espectador já entrou na ficção de Giulio Scalisi, isto é, na sua casa, no seu iglô.

Passada a primeira sala, vê um filme em animação 3D que “documenta” um dia de um homem que vive no Obelisco, Paul Baseth. Vemo-lo a fazer exercício físico, a comer, a conversar, a trabalhar. De movimentos lentos e robóticos, sem expressão no rosto, o cabelo verde (reminiscente de personagens do anime), assemelha-se a um boneco animado das séries juvenis, uma imagem genérica que raia a abstracção. O único som que se escuta é o das suas conversas com a assistente virtual, Home. Os dois trocam perguntas e respostas, numa tautologia não destituída de sátira. Baseth é um ser digital que fala como ser digital com outro ser digital, num mundo digital. E vive preso numa casa com forma de pénis, enredado em gestos que se reproduzem e repetem e que alguém programou. Toda e qualquer libertação não passa de um sonho. E é esse facto, dito com a ingenuidade tosca colorida da animação, que desperta um sentimento de incontornável ansiedade. Nem a arte servirá de consolo ao cavalheiro que vive na casa sobre o deserto, só com as suas imagens e objectos.

 

 

Giulio Scalisi

Kunsthalle Lissabon

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José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE), é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações (Ípsilon, suplemento do jornal PúblicoContemporânea Ler).

 

O autor escreve de acordo  com a antiga ortografia.

 

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Giulio Scalisi: A house for a gentleman. Vistas gerais da exposição na Kunsthalle Lissabon. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Kunsthalle Lissabon.  

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