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Mariana Caló e Francisco Queimadela: Flor Fantasma

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Susana Ventura

 

Conversa entre os artistas

Mariana Caló e Francisco Queimadela, e Susana Ventura

 

Nota prévia: A seguinte conversa decorre de um encontro entre os artistas Mariana Caló e Francisco Queimadela, e Susana Ventura sobre a exposição Flor Fantasma, com curadoria de Ana Anacleto, actualmente no Centro de Artes Visuais de Coimbra, que surge, aqui, sob a forma de guião implícito, revelando gestos e impressões de um fazer e de um experienciar a obra de arte. 

 

 

 

Na primeira sala, vê-se Subir e sumir (2021), um filme que filmámos em 16mm nos meses em que estivemos em Trás-os-Montes durante o primeiro confinamento. Estas imagens nunca chegaram a tempo de Corpo Radial,[1] andaram perdidas entre o laboratório na Roménia e Portugal, no caos gerado pela pandemia. Não foi mau que tivessem andado desaparecidas, mais tarde percebemos que não faziam boa continuidade naquele contexto e aqui decidimos que era um bom momento para as abrir. Nunca chegaste a ver essas filmagens na altura, mas deves ter reconhecido pelas descrições que fizemos. A montagem vem de uma sensação de ausência; fala-nos da tua impressão sobre este filme, das imagens tácteis e dos ciclos.

A neve tornou tudo num plano branco sem profundidade. Tudo fora do tempo. A neve em Abril, quando as flores estavam a brotar e as folhas viçosas e carnudas. A terra húmida calca-se com os dedos, fazendo pressão. Uma vez, outra vez, outra e outra… O céu nasce azul, as telhas vermelhas vivas incendeiam o ar e corroem o tempo. Deliro lancinante infligido pela lentidão das imagens. Apreendo a linguagem de uma geometria oculta que se descobre na natureza e nas suas mais subtis manifestações. A proximidade do olhar desenvolve-se, então, em extensão no tempo, acordando um afecto que me preexiste. Não se trata de uma contemplação, mas de uma vivência submersa e vibrante que as imagens libertam: tudo é energia, pulsação, afecto, proveniente da matéria, dos objectos, dos gestos, das memórias pré-individuais. A mão que acaricia o cão dormente, quieto, acaricia-me, também, o rosto e eu acaricio o cão, sinto a suavidade do seu pêlo lânguido. Como sinto a terra por entre os dedos e a textura rugosa da carapaça do cágado. E, mais uma vez, não é o meu acto de contemplar que me permite “tocar” a imagem, é a imagem tornada táctil que cria em torno do meu corpo a reverberação dessa sensação (como ondas sonoras). 

 

O que fazes é um exercício de empatia pouco comum, sem dúvida poético. Não é fácil encontrar essa disponibilidade e envolvimento em quem vê um filme com uma estrutura não linear, ou mesmo em quem vê uma exposição. Parece haver, na generalidade, pouca vontade de escrever e interpretar de forma espontânea.

Realizámos Subir e sumir sem projecto, sem grandes pretensões. Filmámos as nossas experiências e sensações naquele contexto rural e na montanha, a nossa relação com os animais, as plantas, as construções em pedra e o tempo. Depois editámos por associação de imagens e sons. No fundo é feito a confiar que o nosso instinto é também o de quem vê.

 

O branco reaparece entrecortado pela sombra dos cardos no Verão. O tempo continuou a passar, mas não lhe prestei atenção. O tempo que passa não pertence a este lugar, nem a estas cores, nem à dança das flores, que tecem um tempo só delas. Ou é a sua existência que permite a existência do tempo. Regresso às primeiras imagens, quando as pálpebras se abrem para conhecer o mundo feito, primeiro, de som, suave, estridente, que acorda os poros da pele. Contaram-me, um dia — lembram-se? — que derramar leite sobre os olhos irritados ajuda a acalmá-los e a limpá-los. Desconhecia, por completo, este facto. Perante a imagem, não me interessam factos, também. Existe, no entanto, um movimento do olhar, que se torna cada vez mais próximo, mais colado, mais uno ao plano dos olhos, fixando-se neles o olhar, no olhar do cão, de novo, no leite a derramar. O início de Subir e sumir é um prenúncio. A natureza aparece disfarçada dela mesma. O que julgamos, primeiro, que são evidências inflamadas pela luz, pelo movimento e pelo tempo, são construções mágicas que nos hipnotizam. Sei, nesse preciso momento, que não quero dar qualquer sentido ao mundo, apenas, deixar-me ir com ele, desprender-me das estruturas lógicas e ir… subir e sumir. 

Subir e sumir (à semelhança d’A dança do cipreste) acolhe e expressa todo o excesso que transborda do fervor do universo e que, quase sempre, com excepção da poesia (e não será toda), permanece intraduzível e informe. 

 

Impressões livres e generosas, que bom seguir essa descrição.

Para nos deixarmos levar, tivemos vontade que o filme começasse com uma limpeza aos olhos, uma espécie de preparação solene para ver. Ficámos a saber que o leite é bom e que ajuda a aliviar a ardência nos olhos, depois de um episódio de aflição que tivemos com uma malagueta. 

A nossa vivência atravessa as filmagens: o passeio em xisto que nos ocupou os dias, o calor sentido, as mudanças meteorológicas repentinas, a neve fora de época, a ausência de chuva, a trovoada, a observação da vida secreta dos insectos, a tartaruga e os cães soltos na aldeia, o ciclo das flores e das casas em ruínas que encontrámos nas idas à montanha, que em sequência se relacionam em continuidade, para mais uma vez falarmos da nossa matéria sonhadora e do nosso corpo cadente.

 

Reaparecem obras mais antigas sob ligações novas. Uma espécie de trabalho vosso sobre o próprio tempo das obras. Não interessa de quando são (lembrar-lhes as datas será encerrá-las no passado e este, para vós, é virtual, sempre a cristalizar-se no presente sob forma de uma linha, de uma cor ou de fotograma): há um fio invisível que vão tecendo a cada nova exposição, dando lugar ao espanto, a uma rememoração que se faz outra, a um conhecimento expandido, porque as condições de percepção da obra se alteraram. Descubro dois filmes que nunca foram mostrados em simultâneo: Leite transbordante (2019) e Corpo aéreo (2019). Na sala, surgem em espaços contíguos. Numa visualização desatenta, Leite transbordante descreve um fenómeno químico (quando ao atingir o ponto de ebulição, a gordura do leite se solta do líquido e sobe à superfície), quando encerra, de facto, dois mistérios: o mistério de um rosto desfigurado, que aparece reflectido no fervedor onde parece estar preso ao seu próprio grito (de dor? de algo insuportável para a própria condição humana?), e o mistério das formas imprevisíveis e voláteis que a nata do leite desenha no ar. Descobrir nela perfeição da abóbada celeste. 

 

 

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Isso interessa-nos muito, perceber que o contexto e sequência em que as obras são apresentadas, podem sugerir novas leituras. É muito bonito pensar que a obra está sempre aberta, ainda que mantenha o que a constitui enquanto tal. O convite que a Ana Anacleto nos fez, foi o de darmos visibilidade a um conjunto de trabalhos anteriores e de produzirmos algo de novo. Gostamos de pensar em como o espaço expositivo funciona como um todo, é um desafio que nos faz investigar as relações silenciosas entre aquilo que temos feito ao longo do tempo.

Para esta exposição, pensámos que o título Flor Fantasma pudesse ser transversal a todas as obras, no sentido em que todas se relacionariam com uma ideia fantasmática de naturalidade, de algo que é fecundo em si mesmo ou que é originário de espectros. Leite transbordante é como descreves, um pequeno filme centrado nesta acção que contém em si um desdobramento do tempo: enquanto que o leite ferve e transborda, o reflexo da senhora que o socorre está em suspenso e fragmentado em fotogramas, são imagens de catarse em distorção. Corpo aéreo advém também deste imaginário fantástico, onde nos podemos multiplicar no sonho ou na morte.

 

Aos meus passos, junta-se um corpo deitado na erva verde húmida sob a luz crepuscular. Já não há sombras quando a luz desdobra o corpo num outro corpo, espelho de si mesmo. Um sonho ou o desejo de evasão que o nosso próprio corpo contém pela suspensão do tempo (que não seja o da morte)? Vejo um ângulo recto com o vértice na terra para a qual o corpo regressa. A sequência espacial entre os dois filmes cria um espaço intercalar denso, do qual a saída só pode ser a do jogo (no sentido Benjaminiano). Entre formas e linhas, na cadência do projector de slides, que mantém em movimento a infinita possibilidade de combinações de composições abstractas: uma linguagem pictórica elementar — pontos e linhas — que o projector baralha e combina, novamente. O Fio condutor (2013) continua o mesmo, desde o início. Leio a vossa entrada de “Agosto de 2016” (Inland Journal 23, Junho de 2021): “O abstraccionismo é sério e corajoso, importante. É generoso porque dá lugar, abre espaço. Não vale a pena o esforço de tudo fazer sentido a partir do compreensível, quando nos precisamos de preparar essencialmente para o inexplicável”.

Existem formas que se revelam e vão revelando e outras que escondem e guardam, muito bem, o seu segredo. Não é função da arte desvelar qualquer segredo. O segredo, que se desvela, será sempre o daquele que a toma para si.

 

Fio condutor foi produzido e mostrado pela primeira vez na exposição colectiva Entrevista Perpétua, sob curadoria do Ricardo Nicolau, no Porto. A ideia sugerida pelo título, de algo que é perpétuo, contínuo ou infinito, influenciou-nos. 

Neste contexto, no CAV, achámos que faria uma boa continuidade com as outras obras em exposição, também pela relação com o desenho e pela ideia de geração e aparição num ambiente de escala doméstica.

Num painel vertical assente no chão, há uma projecção em 16mm, que se centra na acção de um fio que gravita sobre um círculo branco, que gera desenhos simples e circulares e a acção de desvendar modelações em chumbo. 

Numa projecção paralela, existe uma sequência de diapositivos feitos a partir de combinações entre cartas-símbolo e uma peça móvel, à semelhança de um possível jogo de tabuleiro de jogo ou de adivinhação. As figuras das cartas são compostas a partir das formas do ovo volante, pintado a preto e branco com dois eixos cartesianos. A sequência dos diapositivos vai oscilando entre composições a positivo e a negativo, o encontro do ovo com formas-espelho e o desdobramento das relações geométricas. É uma espécie de enigma que não sabemos resolver, e talvez isso se relacione com essa tal necessidade de nos abrirmos àquilo que não conseguimos explicar.

 

Ao deparar-me com Flor Fantasma (tríptico) (2021), lembrei-me de um verso de Fernando Pessoa de que gosto muito: “Pálidas sombras, as rosas”. 

 

“Elas são vaporosas,

Pálidas sombras, as rosas

Nadas da hora lunar…

 

Vêm, aéreas, dançar

Com perfumes soltos

Entre os canteiros e os buxos…

 

Chora no som dos repuxos

O ritmo que há nos seus vultos…

 

Passam e agitam a brisa…

Pálida, a pompa indecisa

Da sua flébil demora

Paira em auréola à hora…

 

Passam nos ritmos da sombra…

Ora é uma folha que tomba,

Ora uma brisa que treme

Sua leveza solene…

 

E assim vão indo, delindo

Seu perfil único e lindo,

Seu vulto feito de todas,

Nas alamedas, em rodas,

No jardim lívido e frio…

 

Passam sozinhas, a fio,

Como um fumo indo, a rarear,

Pelo ar longínquo e vazio,

Sob o, disperso pelo ar,

Pálido pálio lunar…”[2]

 

Há uma inversão na imagem. Os seres flutuantes, que usualmente nos surgem das sombras das flores como aquelas dos cardos, são feitos de luz brilhante e criam, entre si, uma dança sagrada. Flores ou algas ou torções do nosso corpo, quando libertamos os gestos e os transformamos em dança. Recupero uma ideia antiga que tenho da vossa obra e que, surge, agora, nos desenhos das duas instalações de Flor Fantasma: a criação de um desenho em devir. Um desenho que nasce dessa indiscernibilidade entre flor e corpo, entre corpo de sombra e imagem de luz, entre movimento e gesto, entre permanência e volatilidade… que cria, em nós, o desejo de ser flor, ser alga e ser dança. Há uma sensualidade e uma fluidez nos desenhos que facilitam esta transformação, esta passagem entre todos estes estados luminescentes. Na instalação de dois diapositivos sobre sete painéis de seda tingida manualmente, esta passagem torna-se, ainda, mais expressiva na fusão dos dois desenhos e as diferentes gradações de intensidade, criando uma latência, um pulsar, entre uma flor-rosto-grito e um caule-espada. 

 

Interessa-nos muito pensar a imagem-luz e a cor em translucência. Estes desenhos vêm desse desejo de vermos projectados seres-luminescentes, formas vegetais levitantes, espíritos fluidos e orgânicos. Depois de realizarmos a estrutura de Corpo radial, composta por painéis de madeira e seda, ficámos muito entusiasmados e com vontade de continuarmos a trabalhar com estes meios e foi óptimo termos o apoio do CAV e da equipa do Jorge Simões na construção destas novas peças. O tipo de seda que usamos é um material muito flexível e que nos agrada muito em termos visuais e tácteis, pela possibilidade de podermos tingir, pintar, esticar e pelas sobreposições que se criam no espaço. A velatura é um gosto que ainda vem do interesse pela pintura e que parece dar corpo a uma sensação de prazer. 

 

Identifico, ao mesmo tempo, uma procura pelo carácter primordial e originário da fabricação de imagens-movimento e imagens-tempo, que remonta às lanternas mágicas, em que as imagens eram projectadas sobre panos, criando essa imagem dupla reverberante entre sombra e luz, e ainda a alguns brinquedos ópticos, como o zootrópio ou o taumatrópio, em que as imagens utilizadas, ao contrário do que acontecia no cinematógrafo, eram pinturas ou ilustrações feitas à mão e apresentadas em sequência. 

Permanecer entre as imagens é hipnótico. Existe uma imagem-movimento que surge entre os passos e entrego-me ao prazer de ensaiar diferentes medidas de tempo entre imagens/painéis. Perfaço uma sequência. Dou a volta e perfaço outra diferente. Provocar a imagem-movimento e a imagem-tempo para as fazer ressoar uma na outra na criação dessa outra imagem pairante, que sobrevoa o desenho e surge entre a retina e o nervo óptico do meu olho. 

 

Porto, Janeiro de 2022

 

Mariana Caló e Francisco Queimadela

Centro de Artes Visuais de Coimbra

 

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Foi co-curadora de Utopia/Distopia, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). Recentemente, foi curadora da exposição Corpo Radial de Mariana Caló & Francisco Queimadela na Galeria da Boavista, em Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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Mariana Caló e Francisco Queimadela: Flor Fantasma. Vistas gerais da exposição Flor Fantasma, CAV. Centro Arte Visuais, Coimbra. Fotos: Photodocumenta. Cortesia dos artistas e CAV. Stills dos filmes: cortesia dos artistas.

 

 

 


[1] Exposição de Mariana Caló e Francisco Queimadela na Galeria da Boavista (Galerias Municipais de Lisboa), de 30 de Julho de 2020 a 1 de Novembro de 2020.

[2] “IV - Minuete Invisível”. Fernando Pessoa, Poesias. Lisboa: Ática, 1942 (15.ª ed. 1995): 72.

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