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Odete: Excuse me, miss, their history was always a matter of technique

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Alice dos Reis

 

No que diz respeito ao Tarot, tenho algumas preferências. Certas cartas continuam a acompanhar-me ao longo dos anos, enquanto temas que não devo esquecer. Ainda sou resistente a algumas, outras adotei-as logo muito cedo. A Morte é uma das que mais gosto. Das coisas mais incompreendidas sobre esta carta é que raramente indica a morte física, quando surge numa leitura, fala, antes, de transformação súbita e irrevogável na vida de alguém. A Morte aparece anunciando e insistindo que faças o luto daquela parte de ti que já não te serve. Frequentemente, esta mudança abrupta é inconsciente, mas se aceitares segurar a bandeira da Morte[1], os teus olhos vão estar abertos para as várias “mortes” e renascimentos a que uma pessoa é sujeita ao longo da vida neste planeta — tuas e de outros. Convida-te a recebê-las.

Às vezes, a Odete e eu, lemos o Tarot uma à outra. Enquanto me mantenho fiel ao baralho clássico de Rider-Waite-Smith, ela usa o Tarot de Thoth, tão belo quanto poderoso. Estes dois baralhos, que foram publicados com pouco tempo de diferença no início do século XX, refletem os ensinamentos de dois (e discutivelmente opostos) célebres académicos oculistas da mesma ordem mística secreta, a Ordem Hermética da Aurora Dourada. Foram ilustrados por duas artistas: Pamela Colman Smith e Lady Frieda Harris, a primeira, já mencionada neste texto, — utiliza um estilo leve, decorativo e mundano, fiel ao movimento britânico Arts and Crafts; a segunda emprega traços Deco, do oculto, austeramente sensuais e inteligentes. Se tivesse de atribuir uma carta à Odete penso que escolheria uma mistura entre O Mágico e A Morte, alguém que possui as ferramentas e a prática necessárias para dominar a transformação. Muito como o trabalho multidisciplinar de Odete, uma leitura de tarot, com o baralho de Thoth, torna as sombras visíveis. E trabalhar as sombras não é para toda a gente.

Quando falo de ferramentas, quero dizer que ela as possui mesmo. Uma compositora e produtora dotada, em paralelo com o seu trabalho visual, performativo e de escrita. O alcance dos interesses e habilidades da Odete é amplo e em expansão.

Depois de lançar três mixtapes e um álbum, encenar um remake de O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, para o Festival Dias da Dança, e compor a banda sonora de quatro filmes e três espetáculos, foi a primeira vencedora do prémio RExFORM, projeto internacional de performance, do qual resultou Revelations and Muddy Becomings, estreado, este ano, no MAAT. No verão de 2020, inaugurou a sua primeira exposição a solo no Bardo, com curadoria de Diana Policarpo. Ou talvez segunda — lembro-me da sua performance/exposição a solo Anita Escorre Branco na Rua das Gaivotas 6, em 2019. Foi no espaço independente Bardo, fundado por um grupo de artistas no ano passado, que Odete mostrou, pela primeira vez, o filme agora aqui disponível.

O título da exposição MTF PRIESTESS CUTTING THE BONE TO REVEAL ITS LIE, oferecia-nos uma imagem detalhada antes de entrarmos. Tinha-nos sido feito um convite para testemunharmos os procedimentos de um ato de dissecação. Mas ao contrário dos métodos expositivos da ciência moderna ocidental, preocupada com “a verdade”, a Sacerdotisa da exposição de Odete está prestes a revelar-nos uma mentira. Que mentira? Bem, a fabricações da história, da arqueologia, do tempo. As violências e apagamentos estabelecidos pelos sistemas de fabricação de verdade do colonialismo cispatriarcal. As vidas e legados daquelxs excluídxs da verdade —pessoas transgénero, não-binárias, intersexo. É por isso que tens de de começar por cortar o osso [the bone]. Osso, esqueleto, a partir do qual a arqueologia contemporânea reconstitui corpos. O osso é um documento demasiado opaco, uma mentira, e Odete impele-nos a olhar além (e por debaixo) dele. Penso que, em parte, é isto a que Odete chama o exercício (ou disciplina) de Arqueologia Paranóica. Devemos procurar em todo o lado por vestígios de ancestralidades queer — queimadas, afogadas, encarceradas, experiências de género dissidente, que ainda vivam em julgamentos e acusações documentadas, descobertas arqueológicas rejeitadas, lacunas em relatórios médicos, e mitos esquecidos. Devemos fazer leituras queer das disciplinas da história, da arqueologia e da biologia, de modo a aprendermos com os vestígios que sobrevivem até hoje. Nem que seja para os honrar. A paranóia tal como a histeria são sintomas psicossomáticos inventados pela modernidade, frequentemente empregues na atribuição de patologias a corpos marginalizados considerados incapazes de perceber ou integrar “verdade” racional. Reivindicar a paranóia como um método, a partir do qual estudar e examinar a arqueologia é reinscrever agência [2] a esses corpos sobre sistemas de exclusão produtores de verdade. NÓS NÃO SOMOS DO FUTURO NÓS SOMOS DO PASSADO, escreve Odete.

Ao entrarmos na exposição, atraíam-nos desenhos coloridos de quimeras mágicas, pedaços de texto de parede com transcrições antigas que se misturavam com ficção biográfica. Várias ilustrações detalhadas — desenhadas à mão e digitalmente — formavam um mapa de revelações que o faziam parecer vivo e em permanente expansão. Nada naquela exposição estava parado. As figuras moviam-se e transformavam-se, ascendiam, diluíam-se, materializavam-se e mudavam de forma. Perto da janela, uma seleção de livros, convidavam a ficar um pouco mais de tempo entre aquela guilda de feiticeiras poderosas, figuras da Sanrio e escrituras arqueológicas. Para ler com elas ou para elas: Testo Junkie de Paul B. Preciado; livros sobre magia e feitiçaria por Doreen Valiente e Scott Cunningham; Transgender History de Susan Stryker; a autobiografia de Catalina de Erauso, entre outros.

Num dos cantos da pequena sala, uma grande TV, sustida num tripé, expunha um vídeo em loop, no qual Odete usando um capuz, com longos cornos, e sustendo um microfone entre grandes patas peludas falava suavemente, quase ASMR. Por detrás de si flutuavam muitos dos desenhos e ilustrações, da exposição, que no vídeo se espalhavam num espaço escuro e isolado. Uma lanterna guiava-nos entre estas imagens, como num sítio arqueológico. Algo de marcadamente presente e simultaneamente frágil me impressionou a respeito destes desenhos, sem moldura, empilhados em comensalidade contra as paredes brancas do Bardo. Acrescentavam algo ao que já tinha observado anteriormente no trabalho da Odete, um tipo de precariedade material radical. Muitos dos objetos, que Odete cria, parecem despreocupados com a robustez ou durabilidade, porque são generosamente feitos à escala do quotidiano. Crafted. Sustêm uma sensação de matéria alquímica aglomerada, como uma feiticeira faria na sua oficina de campo. Depois da trabalhosa colheita, recolha e infusão do que há por perto é criada uma poção ou amuleto. Já olhaste para amuletos alguma vez? São uma amálgama confusa de partes — secreção animal, raízes de plantas, rasgões de tecido, fungos secos, o pertence mais querido de alguém. São crafted, produzidos manualmente. E resultam mesmo. A carta da Morte para ti.

ODETE

Alice dos Reis é uma artista que vive e trabalha entre Amsterdão e Lisboa. Estudou Fine Arts no Sandberg Instituut, em Amsterdão, e tem mostrado trabalho regularmente em galerias, instituições e festivais de cinema na Europa, EUA e Austrália. Em termos gerais, o seu trabalho analisa encontros entre agentes humanos e mais do que humanos em sistemas bio-políticos.

 


 

Notas:

 

[1] A artista, ilustradora, escritora e ocultista Pamela Colman Smith, reconhecida, também, pelas ilustrações do Tarot Rider-Waite, de Arthur Edward Waite, na sua interpretação da carta da Morte, desenha o mensageiro a segurar uma bandeira de esperança, em vez da foice tradicional.

 

[2] Ver: Sujeito e agência no pensamento de Judith Butler: contribuições para a teoria social.

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