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André Príncipe e António Júlio Duarte

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A Hard Eclipse is Going to...

 

Partindo de uma ideia original de Daniel Blaufuks, André Príncipe e António Júlio Duarte conceberam este ping-pong, uma troca de perguntas e respostas, tendo como mote as suas últimas exposições — A Hard Rain is Going to Fall e Eclipse, patentes na Galerias Carlos Carvalho e Bruno Múrias, respectivamente. 

 

André Príncipe (AP): Olhando para o conjunto de imagens da exposição, e vendo onde as fotografias foram feitas, é inevitável que o tema no meio seja a situação actual em Hong Kong. Eclipse é o título de um filme de Antonioni sobre a alienação da sociedade moderna e de um fenómeno astronómico em que a lua se alinha entre a terra e o sol criando escuridão por breves períodos. Como é que o título funciona aqui? É como uma outra imagem ou é o que tu achas que está a acontecer em HK?

 

António Júlio Duarte (AJD): O nome Eclipse foi encontrado quando a escolha das fotografias para a exposição já estava quase terminada e foi inevitável que as contaminasse. A alienação dos jogadores de Pokémon Go, o sobressalto dos animais, a ocultação parcial dos corpos ou o fim de um território, parecem variações do eclipse. Nesse sentido, as duas fotografias dos protestos em Hong Kong, embora tenham um lugar central na montagem, não definem a exposição.

Acho que estamos a assistir, em HK, ao fim de uma situação de excepção. Esse fim estava previsto para 2047, mas foi antecipado. Sou solidário com qualquer luta pela liberdade, mas não acho que o caminho seja apelar à intervenção americana ou empunhar a antiga bandeira colonial. Tem de haver outra coisa, outro caminho.

O eclipse é um fenómeno natural transitório e completamente indiferente à vida humana. Mas o mesmo não se pode dizer de algo como A Hard Rain is Going to Fall. Na sinopse da tua exposição dizes que queres “exprimir o estado do mundo hoje, em Setembro de 2020”. O título evoca o dilúvio bíblico ou o apocalipse da canção de Bob Dylan. Chegámos ao fim?

 

AP: Não sou profeta mas a exposição e o título referem-se à sensação que caminhamos para um fim e que, tal como no dilúvio da arca de Noé, esse fim vem porque os homens viveram mal, estão a fazer muito bem o seu trabalho de alienação e auto-destruição. Talvez seja para isso que existem, mas não posso aceitar esse entendimento.

Acho que a ideia de alienação é o que une as nossas exposições. O dilúvio bíblico é o fim de uma era e o começo de outra. Também acho que este ano mostra-nos que é tarde demais, que já não vamos mudar. Isso não será o fim, mas um fim e um outro início. Infelizmente, não haverá nenhuma arca de Noé e talvez por isso não haverão Rinocerontes, nem Elefantes, nem Tigres. Na minha exposição eles ainda estão, mas em circunstâncias muito difíceis, encurralados.

Não pensei nisso quando preparei a exposição agora, foi inconsciente se quiseres, mas como em todas as minhas coisas verifico depois que os temas são sempre os mesmos e repetem-se. Os livros com os títulos dos animais; Smell of tiger precedes tiger, I thought you knew the place where all of the elephants lie down, Elephant e ainda mais significativo um trabalho que fiz na Turquia em 2012 e que se chamava Notes on searching for the Ark, em que fui no Anatolia Express de Istambul até á fronteira Arménia para subir o Monte Ararate, onde diz a história, a Arca de Noé foi ter no fim das tempestades. Não consegui chegar ao topo porque fui atacado por cães vadios. Não era ainda a altura...  Retrospectivamente, parece que estas coisas são ideias fixas, coisas que estão no ar e que apanhamos e ficam. Mas divago... já íamos no Curdistão Turco!  

Dizes que o título para a exposição veio com as imagens já quase todas escolhidas. Qual foi a baliza para escolheres as imagens? Que critério presidiu à escolha do grupo de pré-seleção? E ainda, no futuro consideras usar estas imagens noutro contexto, com outro nome?

 

AJD: Em 2016 fui a Taipei. Tinha muita curiosidade sobre a cidade, que só conhecia do cinema, dos filmes do Tsai Ming-Liang, do Edward Yang, do Hou Hsiao-Hsien. Fui em Agosto, um calor brutal e poucas fotografias. Algumas que sabia que viria a usar: os jogadores, a garra do urso, o pássaro e o homem que dorme.

Três anos depois em Hong Kong, o mesmo calor. As imagens que fiz em HK e Taipei faziam sentido juntas, havia a ligação política, um território em ameaça constante de  perder a sua independência, outro a querer tê-la. Fiz cerca de quinhentas fotografias em Taipei e HK. As oito que estão na exposição são as que fizeram sentido ser usadas neste momento. Concordo quando dizes que é a ideia de alienação que une estas exposições. É uma ideia constante no meu trabalho, no White Noise, no Mercúrio. Não vejo os meus trabalhos como peças acabadas, com o tempo podem vir a ter outras formas e outros significados, como aconteceu com o trabalho do Japão (Peepshow, 1999 - exposição e livro; exposição Japão 1997 e livro Deviation Of The Sun 2013; Japan Drug 2014).

Na tua exposição há duas fotografias pouco habituais, diria mesmo novas, no teu trabalho. São as nuvens. Sei que são imagens recentes. Queres falar sobre isso?

 

AP: Sim, são recentes e  novas no meu trabalho. Para uma exposição que se chama A Hard Rain is Going to Fall, duas fotografias de nuvens carregadas parece uma coisa muito apropriada mas não foi esse o caminho para chegar a elas. A exposição estava inicialmente marcada para Março, ia chamar-se EXPATS AND OTHER WISE e a seleção de imagens estava feita. Era sobre o exílio voluntário em que vivemos, como se tivéssemos escolhido não ter uma casa. Penso sobre o que é que a fotografia pode fazer, e  parece ser uma coisa da revolução industrial, feita para fotografar as pessoas a viver nas cidades, os comboios, os aviões, os carros, as roupas. Como dantes era usada a pintura, para ver como as pessoas vivem, para ver as mudanças. Imagina que por um milagre qualquer alguém descobria uma caixa com fotografias da Antiguidade, da Grécia, da Dinastia Tang, da Idade Média. Seria uma desilusão ver que eram fotografias de nuvens, por muito boas que fossem.

Há coisas que parecem não mudar; o mar, o céu, as montanhas e há as coisas que estão sempre a mudar, o que as pessoas vestem, os carros, os telefones, o que fazem, como fazem, como vivem. Sempre me senti atraído por isso. Gosto quando se sente o tempo na fotografia, gosto que a fotografia fique datada. Isso torna as coisas mais exigentes. Quando olho para uma boa pintura antiga  parece que aquelas pessoas estão vivas e tudo o que era específico daquele tempo e local foi transportado para hoje, que é universal, intemporal.

Com a arrogância da juventude sempre gozei com as fotografias de nuvens. Dizia que estava a guardá-las para quando estivesse na cadeira de rodas. Com o Covid, a exposição foi adiada e eu passei meses isolado no campo. Como sempre continuei a fotografar. Tenho que contar outra coisa, que aconteceu e que teve a sua influência nisto. Há uns dois ou três anos estava no estúdio do Jorge Queiroz. O Jorge estava a preparar uma exposição e para ele o grande problema era saber se os quadros estavam acabados ou não... pôs-se a olhar para um quadro muito tempo e num gesto, para mim, inesperado colocou o quadro ao contrário. Deu uns passos para trás, voltou a olhar e disse agora está. Aquilo bateu-me. Fiquei a pensar que se fizesse aquilo na fotografia era batota, mas quem me dera fazer!

Agora nestes meses a olhar para as nuvens voltei a pensar nisto. Muitos fotógrafos fotografam as nuvens e cada um cria o seu efeito, há as nuvens do Araki, da Nan Goldin, são nuvens de emoções, despedidas, de aceitação da impermanência... Há as nuvens do Steichen, do Edward Weston.... eu encontrei as minhas nuvens, preto e branco, médio formato e como manchas de Roscharch. Fotografar nuvens é muito mais difícil do que achava, e tens que ser técnica e fisicamente  rápido, além de que quase sempre apanhas uma molha. Acho que as coisas que não mudam podem ficar ao lado das que mudam, porque afinal tudo muda e nada mudou e as nuvens vieram para ficar no meu trabalho. 

Na tua exposição há uma imagem que é mais pequena que as outras. É uma imagem inquietante que eu quero chamar sem cabeça. Podes falar dessa imagem e porque é que a escala muda?

 

AJD: É um pássaro que voa mas que não sai da fotografia. Talvez seja inquietante por isso. Um pássaro sem cabeça é outra coisa. 

A fotografia  é mais pequena porque quis que a imagem do pássaro fosse mais próxima do seu tamanho real. A mudança de escala também obriga a aproximar mais, criar uma relação mais íntima com a fotografia. Pareceu-me importante acentuar a pequena dimensão da ave, a sua fragilidade.

A tua exposição acaba (ou começa) com uma imagem de um monge budista que parece estar a olhar para as outras fotografias. O que é que o monge está ver?

 

AP: A Hard Rain is Going to Fall.

 

 

António Júlio Duarte: Eclipse @ Galeria Bruno Múrias

André Príncipe: A Hard Rain is Going to Fall @ Galeria Carlos Carvalho

 

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Imagem de capa: André Príncipe por António Júlio Duarte e António Júlio Duarte por André Príncipe. Cortesia dos artistas.

Restantes imagens: O Eclipse, Michelangelo Antonioni, still do filme; Imagem de Playmobil Wildlife; André Príncipe, Monte Ararate, 2012; Tsai Ming-Liang, Walker, 2012 (um homem caminha em Hong Kong); António Júlio Duarte, Caderno de Notas Taipei; Jorge Queiroz, Sem título, 2010; Roscharch, test image 1; Mike, o frango que viveu 18 meses sem cabeça em Fruita, Colorado em 1945. Cortesia dos artistas.

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