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2019: presentismo e precarização

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Marta Mestre

Temas

2019 não é (ou não foi) um ano muito diferente de 2018, de 2017 ou de 2010. Aquilo que o torna particular é o facto de encerrar simbolicamente uma década, um ciclo abstrato de tempo onde depositamos um certo tipo de linguagem histórica. A multiplicação de notícias, acontecimentos, eventos, catástrofes é avassaladora. E o presente revelou-se o narcótico mais forte da nossa década. 

É justamente o “excesso de presente” ou “presentismo” o principal traço da década que 2019 encerra. Este termo, cunhado pelo historiador francês François Hartog, diz respeito à sensação de um presente que nos asfixia, onde a ideia do fim procura dar suporte conceptual à ação política, num horizonte de futuro que se apresenta minado. Entre o “storytelling” efabulatório com propensão pós-revolucionária (sublinhado por autores e autoras como Donna Haraway, Anna Lowenhaupt Tsing, Paul B. Preciado, Hito Steyerl, entre outros), e o impulso revisionista das narrativas hegemónicas, foram inúmeras as iniciativas artísticas e curatoriais, que deram corpo à narração do “presentismo”. A Bienal de Veneza 2019: May you live in interesting times foi, em grande medida, o epifenómeno sobre a incerteza do fim. Sem ter sido especialmente marcante, com pouco emaranhado histórico, demasiado estreitamento do campo da experiência, e carente de passado (qual o interesse em apresentar apenas artistas vivos?), a bienal sintetizou as pautas transversais ao presente. Em primeiro lugar, a urgência climática (que inclui as migrações), em segundo, a ascensão dos populismos e, finalmente, a revisão do cânone artístico (através das identidades de raça e de género e da pauta das restituições coloniais); estes foram os tópicos de 2019, que se consolidarão na próxima década, acompanhando as urgências locais e a geopolíticas de poder: o Sul Global (onde são preponderantes as pautas “identitárias” e o combate aos populismos) e o Norte do globo (com a urgência climática e a história colonial).

Finalmente, foi prolixo, em 2019, o impulso revisionista da história da arte canónica. De Nova Iorque a São Paulo, de Bruxelas a Sydney, abundaram projetos, tendo sido especialmente relevante o MoMa de Nova Iorque que, no final deste ano, não só aumentou em 30% o seu espaço expositivo, como reposicionou as velhas narrativas hegemónicas da arte que remontam a Alfred Barr, o seu primeiro director. Estas estratégias terão certamente um efeito multiplicador na próxima década mas ressalta-se o perigo de rapidamente se tornarem novos modelos a exportar, homogeneizando as potências das histórias locais (exemplos propositivos e inovadores chegam-nos do México e do Brasil, em especial). 

No caso português, 2019 foi um ano pouco expressivo em diálogos globais, faltaram os grandes projetos aglutinadores, sendo que as boas iniciativas dissolveram-se no calendário anual sem muita reverberação. 2019 culmina uma década de precarização acelerada das instituições públicas e das condições de trabalho do grupo artístico, para além do esvaziamento cultural do interior do país. Nenhum compromisso sério do Ministério da Cultura. Nenhuma ideia concreta, antes o já previsível número de magia iludindo as percentagens. Por isso mesmo citar aqui iniciativas esparsas soará episódico e contingente, desviando-nos daquilo que é verdadeiramente importante em Portugal e que tarda em chegar: uma política para as artes... Por tudo isto, desejar feliz 2020 não é tarefa simples, mas a próxima década não pode tardar.

Exposições

Nacionais

— Em simultâneo: programações anuais do Oporto e da ZDB, em Lisboa, e Sismógrafo, no Porto.

— Adriana Proganó, Bad Behaviour, Galeria da Boavista, Galerias Municipais. Lisboa. + info

Trabalho Capital # Ensaio Sobre Gestos e Fragmentos. Centro de Arte Oliva. São João da Madeira. + info

— Rolando Castellón, Anonima Art Project, Pitões das Júnias. 

— David Hammons, Ted Joans: Exquisite Corpse, Maumaus Lumiar Cité, Lisboa. + info

Internacionais

— Galeria Reocupa, projeto artístico de gestão compartilhada na Ocupação 9 de Julho com o Movimento Sem Teto do Centro, São Paulo, Brasil.

— Em simultâneo: Laura Lima, Ballet Literal, Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro e Maxwell Alexandre, Pardo é papel, Museu de Arte do Rio de Janeiro, Brasil.

— Miriam Cahn, Everything is equally important, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha. + info 

— Lina Bo-Bardi, Habitat, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo, Brasil. + info

Neither Nor: The challenge to the Labyrinth | Pavilhão italiano na 58ª Exposição Internacional de Arte, La Biennale di Venezia; Veneza, Itália. + info

 

Marta Mestre. Curadora. Formada em História da Arte e em Cultura e Comunicação. Atualmente trabalha em projetos de curadoria com instituições culturais no Brasil e em Portugal. Foi curadora no Instituto Inhotim, Minas Gerais/Brasil (2016-2017), curadora-assistente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/Brasil (2010-2015), curadora-convidada e docente na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro/Brasil (2015-2016) e coordenadora do Centro de Artes de Sines/Portugal (2005-2008).

 

Imagem: Adriana Proganó. Exposição Bad Behavior (detalhe). Galeria da Boavista, Galerias Municipais de Lisboa. Cortesia da artista e Galerias Municipais/Egeac.

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