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Centro de Arte Oliva     

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Isabel Nogueira

Duas exposições, com conteúdos e opções curatoriais bem distintos e com trabalhos pertencentes a duas colecções, são apresentadas no espaço do Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira. Na base da programação deste espaço encontram-se as duas relevantes e premiadas colecções particulares residentes, as quais, por conseguinte, foram tornadas de acesso público. Trata-se da Colecção Norlinda e José Lima, particularmente vocacionada para a arte contemporânea, e da Colecção Treger/Saint Silvestre, que reúne um importante espólio de artes consideradas mais marginais, de que são exemplos a Arte Bruta/Outsider e Arte Singular. O acto de tornar uma colecção privada de acesso público contém generosidade intelectual, ao mesmo tempo que, por outro lado, permite a sua reinvenção, através da intervenção dos curadores, dos seus olhares, critérios, princípios, que fazem estar subjacentes ao acto de dar a ver. E o modo de mostrar, de mediar um conjunto de obras com o público, define uma curadoria e, portanto, a linguagem de uma exposição.   

Detenhamo-nos na marca Oliva, que dá nome ao antigo complexo industrial onde se encontram as exposições, e que se associa, de imediato, às célebres máquinas de costura, que se estabeleceram como marcos de um tempo em que a máquina de costura era um dos elementos presentes na casa portuguesa, naturalmente ligado à altura em que a mulher era dona de casa e que a costura era uma das suas actividades.  Os reclamos tonaram-se icónicos, quer dizer, reconhecíveis, tanto no país como no espaço das, à época, colónias ultramarinas.

Contudo, e além da conhecida máquina, a fábrica Oliva, fundada em 1925 por António José Pinto de Oliveira, produziria os mais variados produtos metalúrgicos, a título de exemplo, alfaias agrícolas, forjas portáteis, equipamento para a indústria da chapelaria, tubos para canalizações, fogões em ferro fundido, ferros de engomar, máquinas para padarias, radiadores e salamandras, motores de explosão de pequena cilindrada, etc. Foi efectivamente uma empresa pioneira na forma como divulgava os seus produtos, recorrendo a campanhas publicitárias — nomeadamente em filmes, como A costureirinha da Sé, de Manuel de Guimarães (1958) — e à promoção de concursos destinados ao público feminino —  o “Vestidos de Chita” e o concurso anual para eleição da “Miss Oliva” —, que era preciso cativar, no expectável cumprimento do espírito de um Portugal conservador. Aliás, no ano a seguir à fundação da fábrica, era instituída a ditadura, antecâmara do Estado Novo.

Mas, e apesar de a empresa habitar este Portugal, conseguiu, do ponto de vista da organização do trabalho, da forma de produção e promoção de produtos, assim como da perspectiva do investimento na formação adequada de quadros e de uma boa política salarial, contribuir para uma certa modernidade na produção industrial num país francamente atrasado a diversos níveis. E esta contextualização leva-nos à primeira das duas exposições sobre as quais nos debruçamos: Trabalho Capital: Ensaio sobre Gestos e Fragmentos, com curadoria de Paulo Mendes, que propõe um diálogo da Colecção Norlinda e José Lima com obras executadas para o projecto em causa, assim como com material documental e museológico — filmes, fotografias, entrevistas, material técnico e historiográfico — que traça a história da Oliva, debatendo-se a ideia de Trabalho num espaço em “(re)construção, evocando-se as reminiscências do passado industrial em confronto com a produção contemporânea de cultura”, como afirma o curador no texto de sala. Participam mais de uma centena de artistas de diversas nacionalidades.

Trabalho assalariado e Capital (Lohnarbeit und Kapital) é o título da obra de Karl Marx, publicada em 1849, que reflecte sobre as condições do trabalho na sociedade capitalista e o conceito de mais-valia — absoluta ou relativa —, realizada pela diferença entre o custo do produto — os meios de produção somados ao valor do trabalho — e o valor que a mercadoria gera para o proprietário. Marx desenvolvia simultaneamente o conceito de alienação, no sentido de o trabalhador ser estranho ao produto, que pertence ao proprietário. A alienação do trabalhador conduziria, em última instância, à sua alienação enquanto ser humano na sua essência participativa e orgânica. A escolha do tema da exposição é absolutamente pertinente nos dias em que vivemos, nos quais toda a dimensão do modo de produção se foi alterando e complexificando, inclusivamente, pela volatilidade do trabalho na actualidade, sobretudo percebida em tempos de crise. Tornou-se fácil ficar sem trabalho. Tornou-se fácil ficar sem habitação condigna ou sistema de saúde eficiente. E isto é um problema real e maior, o qual, portanto, implica um sério comprometimento, reflexão e, claro, medidas.

A exposição comissariada por Paulo Mendes segue a sua linha de trabalho nos espaços de arqueologia industrial, e cumpre referir que o espaço Oliva é um belo complexo desta natureza, bem requalificado. A entrada para a exposição faz-se por entre tapumes e andaimes, da autoria do próprio Paulo Mendes e de Nuno Pimenta, sonorizada por um martelar de fundo evocativo do trabalho braçal e da construção. O próprio artista é um construtor de arte, de ideias e de objectos. Várias vezes ao longo da mostra esta ideia é claramente referenciada e efectivamente conseguida, por exemplo, nos trabalhos de Arlindo Silva (O Profeta, 2012), de Nuno Ramalho (Salário, 2006), de Inês Norton (Archivilization, 2015), de Ângela Ferreira (From the ‘sites and services’ series, 1991), de André Guedes (Mundo agrícola, 2008), de Maria Trabulo (História da persistência, 2015), de Jérémy Pajeanc (Comboio de lata, 2012 e À luz do dia, 2018), de António Olaio (5 minutes before lucnh break, 2019), entre outros.

As obras da colecção e da exposição possuem uma inequívoca qualidade, não obstante muitas delas, e do ponto de vista da proposta curatorial, não estipulem uma efectiva ligação ao universo do trabalho e das suas condições. Assim, só parcialmente é estabelecido um real diálogo com a temática e com a própria – e interessante e historiograficamente válida – parte documental da mostra em causa. Por outro lado, a fruição é, por vezes, difícil, devido ao não respirar do espaço. Por estes motivos, a exposição poderia comportar efectivamente menos obras, embora reconheçamos que é um legítimo estilo curatorial. De facto, estamos perante duas exposições com conteúdos de qualidade e relevo, mas com opções e modos de mostrar completamente distintos, como referimos no início deste texto. 

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E avançamos para Extravaganza, com curadoria de Antonia Gaeta e a partir da Colecção Treger/Saint Silvestre. Como contextualiza a curadora na folha de sala: "Extravaganza assenta na estranheza, na obsessão pelo obsceno e nonsense, na recusa de regras lógicas onde há espaço para abstracções, no gosto pelo absurdo, incongruência e todo tipo de paradoxos". Ou, diremos nós, verifica-se a procura de uma certa marginalidade, no sentido do afastamento do expectável ou do definível. As obras expostas apresentam, a seu modo, estas características, tanto pela deformação anatómica das figuras como pelo tema, ou ainda pela forma da coloração, ou mesmo pelo traço ou pela mancha, entre outros aspectos. O visitante é convidado a relacionar-se com obras incorporadoras de estranheza e de inquietante subjectividade. Curiosamente esta inquietação é contrabalançada pelo depuramento e limpidez da proposta expositiva, o que, a seu modo, faz aumentar a perplexidade perante o que se vê.

As obras apresentam-se agrupadas nas paredes, e pontualmente uma ou outra peça escultórica confere ritmo ao espaço. Estão representados os artistas Mose Tolliver, Agatha Wojciechowsky, Friedrich Schröder-Sonnenstern, Derrick Alexis Coard, da Marilena Pelosi, Giovanni Galli, Hugh Weiss, Miroslav Tichý, Terry Turrell, entre outros. Por entre a brancura do espaço vemos alusões eróticas, por vezes num belo horrível sedutor, perigoso, até um pouco assustador, numa transgressão do belo tradicional, expectável, classicista, se preferirmos. De algum modo, mas aqui no sentido inverso ao da beleza clássica, recordamos a procura das partes mais belas da Natureza — o “belo reunido” —, de que o neoclássico Jean-Dominique Ingres foi o grande representante. Como o próprio entendia,  a função do pintor seria continuar os tipos que a Natureza oferecia, interpretando-os com a sinceridade vinda do coração. Esta sinceridade aqui surge afinal, e agora ao contrário do que preconizava Ingres, sob a forma de extravagância plástica e visual.

E concluímos do modo como iniciámos esta reflexão. O Centro de Arte Oliva mostra duas competentes exposições, nas quais se destacam duas colecções relevantes e duas abordagens curatoriais absolutamente diferentes e, a seu modo, perfeitamente legítimas, mas que importa interpelar. O modo como com elas nos relacionados pode, por conseguinte, possuir diversos enfoques, sensibilidades e filões, ou seja, estamos face a curadorias com forte cariz autoral. Uma colecção, inclusivamente a de um museu, tem que se reinventar periodicamente, encontrar novos desafios e formas de se comunicar com o público, contribuindo, a seu modo, para a fundamental oxigenação do tecido artístico e cultural, assim como para a  conquista e formação de novos públicos ou o fomento do efeito de contágio junto de novos agentes, no sentido de impulsionar emergentes realidades artísticas. É determinante continuar a incrementar uma conduta curatorial de pesquisa e de modernidade, num convite permanente à reflexão sobre o actual estado do mundo e das artes.

Centro de Arte Oliva

Coleção Norlinda e José Lima

Coleção Treger Saint Silvestre 

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

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Primeiro bloco de imagens:

— Vistas da exposição Trabalho Capital: ensaios sobre gestos e fragamentos. Obras da Coleção Norlinda e José Lima. Centro de Arte Oliva. São João da Madeira. Fotos: Dinis Santos. Cortesia de Coleção Norlinda e José Lima, Paulo Mendes Archive Studio e Centro de Arte Oliva. 

Segundo bloco de imagens:

— Vistas da exposição Extravaganza. Obras da Coleção Treger Saint Silvestre. Centro de Arte Oliva. São João da Madeira. Fotos: Dinis Santos. Cortesia Coleção Treger Saint Silvestre e  Centro de Arte Oliva. 

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