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Fernanda Fragateiro: A Monotonia é Fixe [Monotony is Nice]

Foto de exposição Galeria Filomena Soares (4).jpg
Sérgio Fazenda Rodrigues

O equilíbrio da tensão

A exposição que Fernanda Fragateiro apresenta na Galeria Filomena Soares dá-nos a ver um conjunto de esculturas de média e grande dimensão, dispostas na sala principal deste espaço. Adoptando como título a frase “Monotony is Nice” que Charlotte Posenenske proferiu em relação à uniformidade de uma paisagem plana, a exposição apoia-se na pesquisa que Fragateiro tem vindo a desenvolver sobre o trabalho de várias artistas e no modo como estas assumiram uma reacção contra o sistema artístico, político e social onde surgiram.

Fernanda Fragateiro cruza um conjunto de referências em torno de Agnes Martin (com particular atenção ao seu desenho “Aspiration” de 1960), Charlotte Posenenske e Cady Noland, operando sobre a noção de construção e repetição. A artista procede à transformação da ideia de norma e série, manipulando a disposição das obras e a configuração da galeria (cobrindo um dos seus acessos laterais), e cria uma intervenção que cruza a escala do objecto com a escala da arquitectura. Trabalhando sobre a leitura e a percepção do espaço, mas também sobre as questões inerentes à constituição física dos elementos apresentados (que a génese da escultura problematiza), Fragateiro elabora uma reflexão em torno da ideia de contrário. E, contrariando solidez e transparência, robustez e delicadeza, equaciona o limite entre o óbvio e o subtil.

Se a artista vai buscar a Agnes Martin a referência à inclinação da grelha, deturpando a previsibilidade da sua repetição, é em Posenenske que se baseia para a modulação da estrutura que a constrói. Introduzindo novas possibilidades para a sua multiplicação e adaptação, entendida não só como uma questão compositiva, mas também como uma acção que contraria a exclusividade, Fragateiro delineia uma proposta de contornos estéticos, mas sobretudo um olhar imbuído de carga política, reforçado ainda pela aproximação a Cady Noland e aos seus dispositivos de gestão de poder. Assim, nestas obras, promove-se um olhar que indaga o formato e a marcação da fronteira, ou o acto de delimitar, questionando um sistema de rápido consumo e desgaste, ao qual se contrapõe a proposta de um tempo cruzado, que é lento, repetido (modular) e adaptável.

As esculturas que nos são apresentadas compõem-se por longas superfícies planas que se articulam entre si, trabalhando a lógica do que se afasta e do que é complanar. Quando as superfícies são unas, elas afiguram-se a paredes que guiam a nossa deslocação e libertam o nosso olhar. Aqui, a ideia de barreira é alterada e as obras agem como filtros que permitem ver para o outro lado. Quando as superfícies se compõem de diferentes camadas, na sua forma, dimensão e posição, elas agem sobre o interstício que engendram e capturam esse vazio para o corpo da obra. A expressividade vive da sobreposição de planos, cores e quadriculas que se apreendem no espaço, mas também das sombras que se combinam e se projectam nas paredes brancas da sala. A posição e a cadência adoptada induzem, ainda, uma deslocação diagonal e uma leitura contínua que, em profundidade, atravessa o espaço da galeria.

Compostas por chapas e tubos de metal lacado que recortam e constroem várias grelhas, as esculturas remetem-nos para um imaginário de grades, cercas e vedações que barram acessos e limitam construções. Obras como Barreira antimotim (2020), Janela (2020), ou Escadas (2020) invocam diversos elementos do atelier da artista, adoptando o mesmo desenho e a mesma cor, enquanto Structures of Thought 1 (2020), Structures of Thought 2 (2020), Sem título (2020) e Sem título (2019-2020) adquirem um maior grau de abstracção.

Na verdade, as esculturas exploram uma repetição que se expande de modo vertical e horizontal, tridimensionalizando a experiência da leitura e o entendimento da sua constituição. Com uma assertividade ímpar, a organização das obras denota rigor e leveza, aproximando-as à percepção de um desenho corporizado, ou à manifestação de um pensamento espacializado. Contudo, em Barreira antimotim (2020), ou em Negative Dialetics (2020), a artista incorpora elementos directamente extraídos ao universo da construção (uma base de apoio para serralharia e um sistema tubular de suporte) que contradizem a esbelteza circundante e conduzem a abstracção de volta ao real.

De forma deliberada, Fragateiro averigua os contornos de uma aparente oposição e convoca os escritos de Theodor Adorno, integrando o seu livro Negative Dialetics (1966) numa escultura que detém o mesmo nome. Quando o faz, a dicotomia entre o que é uma barreira e o que surge permeável, ou a diferença entre a delicadeza da abstracção e a crueza da realidade, adquire um novo sentido. Na verdade, as obras exploram uma ideia de contrário recorrendo ao limite do esforço e da resistência do material. Assim, uma grade antimotim revela-se frágil e cuidadosa, apoiando-se num rubusto suporte industrial, e uma pequena quadricula, originalmente desenhada sobre papel, ganha a força de uma estrutura de ferro que se ombreia à parede.

Da extrapolação de uma ideia, à manipulação do material e do conhecimento da construção, à consciência do espaço, as obras de Fernanda Fragateiro instauram uma reflexão em torno da própria escultura. Uma reflexão que cruza tempos, autores, escalas e disciplinas, para formar um campo de novas fronteiras. Um campo subtil que funciona num equilíbrio de formas, ideias, movimentos e olhares, onde a repetição equaciona uma outra paisagem.

 

Fernanda Fragateiro

Galeria Filomena Soares

 

Sérgio Fazenda Rodrigues é Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu, com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da coleção de arte contemporânea do Arquipélago – C.A.C.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Foto de exposição (1)
Foto de exposição Galeria Filomena Soares (2)
Foto de exposição Galeria Filomena Soares (3)

Fernanda Fragateiro: A Monotonia é Fixe [Monotony is Nice]. Vistas gerais da exposição na Galeria Filomena Soares. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia da artista e Galeria Filomena Soares.

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