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Pedro Barateiro: É só uma ferida

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Cristina Sanchez-Kozyreva

Um grito pela liberdade

— online e offline

 

Ocupando quatro salas da Fundação Carmona e Costa, a exposição individual de Pedro Barateiro É só uma ferida, com curadoria de João Mourão e Luís Silva, dá as boas-vindas aos visitantes através de um ecrã de grandes dimensões no qual uma cabeça animada pronuncia um acolhedor "Olá!". Esta animação a preto e branco, intitulada Monologue for a Monster (2021), apresenta ao espectador uma personagem nonchalant que se descreve como um monstro, uma criatura adorável, um recetáculo, um poema, com propensão a mudanças e oscilações de humor e com um gosto especial pela dança. O monstro é uma cabeça não binária, sem olhos (com nariz, boca e copiosas e longas pestanas) e com um par de braços que funcionam como pernas. O monstro não acredita no bem nem no mal, nem tampouco em impingir a sua opinião aos outros, mas mostra claramente uma necessidade de autoexpressão, numa encantadora manifestação existencialista. Apoderando-se da atmosfera da exposição, a voz do monstro, inusitadamente balizada entre o amigável e o depressivo, com a convincente interpretação do cantor e compositor português Conan Osiris, explica o que faz da vida — processamento de grandes quantidades de informação, transformando-a em diferentes narrativas adquiridas por toda a gente — e o que tem ao seu dispor — um ecrã e um teclado —, num monólogo tendencialmente melancólico, ao jeito de uma canção de embalar. No final, a sua essência, ou talvez seja isto apenas uma possível interpretação, passa por um destilador desenhado e é transformada num líquido que é bebido por uma boca no ecrã. De facto, o monstro fala extensivamente de se encontrar num estado de transformação, pelo que talvez apenas esteja a beber-se a si próprio, como que mudando de pele, em mutação.

Aparentemente, esta figura tem vindo a ganhar vida ao longo dos últimos anos na prática artística de Barateiro. Os elementos que a moldaram surgiram em vários trabalhos anteriores — em particular, uma série em guache e tinta-da-china sobre papel que o artista executou em 2015. Figuram nesta exposição 43 peças, incluindo É só uma ferida, o único desenho realizado em 2019, que é apresentado na mesma sala que a animação e dá título à exposição. Barateiro executou os desenhos no seu ateliê-cave, na Rua da Madalena, num bairro lisboeta descrito pelo artista como uma das partes mais antigas da cidade, com ruínas, artefactos e restos mortais, bem como toda uma história de mudança que vai do terramoto de 1755 até à expansão da cultura do empreendedorismo espoletada pela recente chegada das massas turísticas e dos imigrantes gentrificadores.

Pendurados à mesma altura nas paredes das salas, os desenhos parecem contar uma história, ou um conjunto de histórias, passadas num universo enigmático e emocional que mistura ficção poética com alguns elementos da realidade.

A aparência do monstro mantém-se inalterada nos desenhos — assim como a das pestanas, que condensam o seu eu, ou configuram uma espécie de logótipo. Na verdade, o monstro de Barateiro também é designado como empreendedor, o que poderia servir para descrever uma criatura gananciosa, tal como o capitalismo o define, ou então aquele que pense e faça de forma independente — ou, como diz Barateiro na contracapa do catálogo que acompanha a exposição, "um empreendedor das minhas próprias acções".

Barateiro também refere a influência que o ensaio "The Transformation of Silence", da feminista e escritora norte-americana Audre Lorde, teve para a realização deste vídeo. De facto, o monstro faz-lhe ampla alusão, tanto quando confidencia que os seus silêncios não o protegem como quando diz que a linguagem e a ação conduzem à autorrevelação — um caminho que será uma causa provável da sua loquacidade. Em última instância, o monstro tenta fazer sentido de si mesmo e daquilo que o rodeia, procurando autodiagnosticar o seu estado de espírito, a que chama solastalgia — uma nova palavra para designar a angústia existencial causada pelas alterações climáticas. Também grande parte dos desenhos fazem referência direta às noções contemporâneas de computação e tecnologia sem fios. Neste sentido, Free the Internet representa uma mão que segura uma tabuleta que diz exatamente isso; Code apresenta uma figura líquida com pestanas em vez de ombros a mexer em dois teclados numéricos com as suas mãos sem dedos; e Data Monster mostra uma pequena massa-corpo cor de laranja sobre um fundo da mesma cor com "Data" escrito, e com braços e pernas ao jeito de banda desenhada. Tendencialmente, não obstante o seu carácter chistoso, estes desenhos, detentores de uma fluidez composicional particular, fazem questão de sublinhar que a cloud / a internet / o éter tecnológico (o meio em que o monstro vive) devem continuar a ser recursos descentralizados, gratuitos e de livre acesso, tal como o sol.

Aliás, recorrendo à observação especulativa, tal como se faria para averiguar o significado de um poema: parece que muitos dos desenhos mostram o sol a procurar divertir-se, como é o caso de Three Sunsets, em que três sóis se põem sobre um fundo vermelho, ou de Sun Levitation, em que uma figura humanoide parece levantar uma esfera (o sol) do chão. Esta peça, e relembrando o contexto do misterioso estúdio enmasmorrado de Barateiro, que este batizou como "Spirit Shop", faz-me lembrar a primeira carta do baralho de Tarot: o mago, que, com as ferramentas e os símbolos de que dispõe, com a palma de uma mão virada para o sol e a outra para a terra, se vê prestes a converter energia em matéria. Se pensarmos bem, o arquétipo do mago, tal como o do monstro, também é o de um empreendedor. Em última análise, estes tipos de alter egos desfrutam da vantagem da imortalidade, o que, por sua vez, possibilita uma instância continuada de auto-atualização, transformação, adaptabilidade histórica e novos começos infindáveis. Assim, afinal, não obstante a tristeza que o assola ou qualquer receio ou obstáculo com que se venha a deparar, a viagem do monstro reveste-se de esperança e criatividade.

 

 

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Pedro Barateiro

Fundação Carmona e Costa

 

Cristina Sanchez-Kozyreva é uma autora com experiência em relações internacionais e estratégia. Viveu na Ásia durante 15 anos. Actualmente trabalha e vive entre Lisboa e Hong Kong. É co-fundadora e editora-chefe da revista de arte Pipeline, com sede em Hong Kong (impressão 2011-2016). Contribui, regularmente, para várias publicações na Ásia, Europa e EUA, como Artforum, Frieze e Hyperallergic.

 

Tradução do EN por Diogo Montenegro

 

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Pedro Barateiro: É só uma ferida. Vistas gerais da exposição na Fundação Carmona e Costa. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Fundação Carmona e Costa. 

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